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+ brasil 503 d.C.
Homenagem a Drummond
por Luiz Costa Lima
Seria impossível a nomeação
exaustiva do que se tem publicado
sobre a obra drummondiana, desde que nos aproximamos de seu
centenário de nascimento (31/10/2002).
Como os livros de Vagner Camilo
("Drummond - Da Rosa do Povo à Rosa
das Trevas", Ateliê) e de Davi Arrigucci
("Coração Partido", Cosac & Naify) já se
acham bastante divulgados, restrinjo-me a dois textos mais recentes: o "Dossiê
Carlos Drummond de Andrade", no nš
13 da revista "Inimigo Rumor" (segundo
semestre de 2002), formado por artigos e
depoimentos de poetas e ensaístas portugueses, e a coletânea reunida em
"Drummond Revisitado" (Unimarco
Editora).
Quanto ao dossiê, seu próprio projeto
deve ser de início ressaltado: ver Brasil e
Portugal como "duas margens do mesmo oceano" supõe reverter o crescente
esgarçamento de contatos pela intensificação da relação entre públicos e autores
que usam a mesma língua. A proposta é
lançada a partir de um poeta que oscila
"entre claros enigmas e lições de coisas"
-ao apresentador português basta uma
metade de frase para que precise os dois
lugares emblemáticos da poesia drummondiana. É claro que nem todas as contribuições têm a mesma pregnância. E é
sintomático que, no "Dossiê" e em
"Drummond Revisitado", as análises sobre a série de "Boitempo" não estejam
entre as mais significativas. Nas palavras
certeiras de Osvaldo Manuel Silvestre,
"de "Alguma Poesia" (1930) a "Lição de
Coisas" (1962), Drummond produziu livros" e, daquela data até "Farewell"
(1996), "poemas esparsos". Declará-lo
sem falsas diplomacias é uma maneira
de lembrar que a comemoração tem por
objeto uma obra e não o elogio do autor.
Em ambos os textos, poetas e ensaístas
são convocados para formular o que
pensam de um poeta que têm tido entre
seus livros de cabeceira. No "Dossiê", são
14 contribuições, desde simples testemunhos até análises cerradas de um único
poema. Destaco os ensaios de Gustavo
Rubim e Abel Barros Baptista. O primeiro escolhe o poema "Ser" (de "Claro
Enigma"). Sublinho dois elementos: (a)
acentuando os primeiros versos "O Filho
que não fiz/ hoje seria homem./ Ele corre
na brisa,/ Sem carne, sem nome", Rubim
nota que, pelo dêitico "ele", "Drummond se deixa converter-em-obra-da-língua". O sujeito empírico declara o que
não fez e se converte na persona que produz. Não que se estabeleça uma "esquizofrênica" divisão. A persona contém a
sombra do que de fato vivera e a metamorfoseia em palavras; (b) deste modo o
título "Ser" aponta "para qualquer coisa
de semelhante a uma ontologia poética
que encontraria a sua especificidade enquanto ontologia do virtual ou do espectral". (A reflexão indiretamente se articula com o que desenvolve Eduardo
Sterzi, em "Drummond Revisitado").
Escrita densa
Porém o ensaio mais
destacável no "Dossiê" pertence a Abel
Barros Baptista -autor de dois livros
notáveis sobre Machado de Assis. Abel
Baptista escolhe outro poema de "Claro
Enigma", "Oficina Irritada". Sua escrita é
tão densa que tenho de extremar a telegrafia. A análise se baseia nas contradições constitutivas do poema. Há assim
uma "contradição performativa": por
um lado, sendo o "Eu quero", da abertura do primeiro verso, parte da língua,
mas não exclusiva da feitura de uma forma poética, o soneto é acidental. Por outro lado, "o
soneto, essencial, resiste
ao apagamento e à intenção". A contradição, instrumento, no caso, de riqueza expressiva, ecoa sobre o próprio título: "Na
primeira (acepção), o
poeta dispõe-se contra a
oficina e no limite dispensa-a; na segunda, a oficina
ressurge indispensável e
subjuga o poeta". Como
então fica a oficina em estado de irritação? Estaria
"agastada, enfurecida" ou
"estimulada, excitada"?
Mas a irritação seria da
oficina ou do eu que a faz
trabalhar? Se for do eu, a
crise se instala na oficina;
se for de seu lugar de trabalho, a crise é da oficina.
As duas possibilidades
são válidas. A crise que
envolve ambos os termos
diz da própria condição
da poesia contemporânea. Isso porque,
não contando a poesia pós-romântica
com uma poética que contivesse as chaves de seu entendimento, ela tende a ser
dura, obscura, agressiva quanto ao leitor,
diversificando-se em poéticas individuais. Daí aprendermos a ler melhor seu
segundo quarteto: "Quero que meu soneto, no futuro,/ não desperte nenhum
prazer./ E que, no seu maligno ar imaturo,/ ao mesmo tempo saiba ser, não ser".
Duplicidade porque, sendo, não fala de
coisas (cenas, estados etc.), mas de fantasmas.
Embora discorde da conclusão do ensaio -as duas leituras se resolvem em
indecidibilidade, "caso extremo de poética individualista ou exemplo irônico de
poética individualista"-, nele reconheço uma das peças a partir de agora indispensáveis para a compreensão que devemos à poesia drummondiana.
Tática distinta
Já o "Drummond
Revisitado" é composto por seis ensaios
de jovens autores brasileiros. De alguns
deles, ainda ouviremos falar. À diferença
de seus colegas portugueses, adotam
uma tática distinta de abordagem: em
vez de focalizarem um único poema, optam por uma visão ampla da obra. No caso de Sergio Alcides, trata-se de percorrer o Drummond até "Lição de Coisas"
sob o prisma da melancolia. Fazê-lo significava observar a obra de nosso poeta
na contramão da tradição ibérica e brasileira, em que "confessionalismo e lassidão propiciados pelo enfoque melancólico fizeram larga fortuna em maus poemas"; viragem possível porque, desde
sua estréia, "a oscilação melancólica em
Drummond" não favorecia estados depressivos versus exaltantes do eu, mas
sim entre "aflição e participação, negatividade e responsabilidade".
Eduardo Sterzi, por sua vez, também
parte de um largo parâmetro, de que extrai sua base: Drummond compõe uma
"poética da interrupção". Interrupção
do que, nunca se esquecendo "da vida
que efetivamente é", implica "o compromisso ético (e trágico) do poeta com o
obstáculo"; condição, pois, de verificar
que, textualmente, o fim é apenas sinal
do que não se resolveu.
Assim adquire surpreendente realce a
observação feita por Sérgio Buarque,
ainda em 1953, sobre os poemas do autor: "Não é (...) uma indefinida procura o
que eles nos oferecem, mas um esforço
de exaustiva elucidação". A elucidação
sempre interrompida supõe o engano
dos que identificam a poesia drummondiana como de "reflexão filosófica". Na
verdade, ela está em seu antípoda. A indagação radical da beleza revela o "malogro da cognição". A poesia drummondiana é uma irmã hostil ao propósito da
filosofia: seu impulso termina por afirmar o colapso da reflexão.
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor
de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao
Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros.
Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".
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