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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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+ brasil 503 d.C.

Homenagem a Drummond

por Luiz Costa Lima

Seria impossível a nomeação exaustiva do que se tem publicado sobre a obra drummondiana, desde que nos aproximamos de seu centenário de nascimento (31/10/2002). Como os livros de Vagner Camilo ("Drummond - Da Rosa do Povo à Rosa das Trevas", Ateliê) e de Davi Arrigucci ("Coração Partido", Cosac & Naify) já se acham bastante divulgados, restrinjo-me a dois textos mais recentes: o "Dossiê Carlos Drummond de Andrade", no nš 13 da revista "Inimigo Rumor" (segundo semestre de 2002), formado por artigos e depoimentos de poetas e ensaístas portugueses, e a coletânea reunida em "Drummond Revisitado" (Unimarco Editora). Quanto ao dossiê, seu próprio projeto deve ser de início ressaltado: ver Brasil e Portugal como "duas margens do mesmo oceano" supõe reverter o crescente esgarçamento de contatos pela intensificação da relação entre públicos e autores que usam a mesma língua. A proposta é lançada a partir de um poeta que oscila "entre claros enigmas e lições de coisas" -ao apresentador português basta uma metade de frase para que precise os dois lugares emblemáticos da poesia drummondiana. É claro que nem todas as contribuições têm a mesma pregnância. E é sintomático que, no "Dossiê" e em "Drummond Revisitado", as análises sobre a série de "Boitempo" não estejam entre as mais significativas. Nas palavras certeiras de Osvaldo Manuel Silvestre, "de "Alguma Poesia" (1930) a "Lição de Coisas" (1962), Drummond produziu livros" e, daquela data até "Farewell" (1996), "poemas esparsos". Declará-lo sem falsas diplomacias é uma maneira de lembrar que a comemoração tem por objeto uma obra e não o elogio do autor. Em ambos os textos, poetas e ensaístas são convocados para formular o que pensam de um poeta que têm tido entre seus livros de cabeceira. No "Dossiê", são 14 contribuições, desde simples testemunhos até análises cerradas de um único poema. Destaco os ensaios de Gustavo Rubim e Abel Barros Baptista. O primeiro escolhe o poema "Ser" (de "Claro Enigma"). Sublinho dois elementos: (a) acentuando os primeiros versos "O Filho que não fiz/ hoje seria homem./ Ele corre na brisa,/ Sem carne, sem nome", Rubim nota que, pelo dêitico "ele", "Drummond se deixa converter-em-obra-da-língua". O sujeito empírico declara o que não fez e se converte na persona que produz. Não que se estabeleça uma "esquizofrênica" divisão. A persona contém a sombra do que de fato vivera e a metamorfoseia em palavras; (b) deste modo o título "Ser" aponta "para qualquer coisa de semelhante a uma ontologia poética que encontraria a sua especificidade enquanto ontologia do virtual ou do espectral". (A reflexão indiretamente se articula com o que desenvolve Eduardo Sterzi, em "Drummond Revisitado").

Escrita densa
Porém o ensaio mais destacável no "Dossiê" pertence a Abel Barros Baptista -autor de dois livros notáveis sobre Machado de Assis. Abel Baptista escolhe outro poema de "Claro Enigma", "Oficina Irritada". Sua escrita é tão densa que tenho de extremar a telegrafia. A análise se baseia nas contradições constitutivas do poema. Há assim uma "contradição performativa": por um lado, sendo o "Eu quero", da abertura do primeiro verso, parte da língua, mas não exclusiva da feitura de uma forma poética, o soneto é acidental. Por outro lado, "o soneto, essencial, resiste ao apagamento e à intenção". A contradição, instrumento, no caso, de riqueza expressiva, ecoa sobre o próprio título: "Na primeira (acepção), o poeta dispõe-se contra a oficina e no limite dispensa-a; na segunda, a oficina ressurge indispensável e subjuga o poeta". Como então fica a oficina em estado de irritação? Estaria "agastada, enfurecida" ou "estimulada, excitada"? Mas a irritação seria da oficina ou do eu que a faz trabalhar? Se for do eu, a crise se instala na oficina; se for de seu lugar de trabalho, a crise é da oficina. As duas possibilidades são válidas. A crise que envolve ambos os termos diz da própria condição da poesia contemporânea. Isso porque, não contando a poesia pós-romântica com uma poética que contivesse as chaves de seu entendimento, ela tende a ser dura, obscura, agressiva quanto ao leitor, diversificando-se em poéticas individuais. Daí aprendermos a ler melhor seu segundo quarteto: "Quero que meu soneto, no futuro,/ não desperte nenhum prazer./ E que, no seu maligno ar imaturo,/ ao mesmo tempo saiba ser, não ser". Duplicidade porque, sendo, não fala de coisas (cenas, estados etc.), mas de fantasmas. Embora discorde da conclusão do ensaio -as duas leituras se resolvem em indecidibilidade, "caso extremo de poética individualista ou exemplo irônico de poética individualista"-, nele reconheço uma das peças a partir de agora indispensáveis para a compreensão que devemos à poesia drummondiana.

Tática distinta
Já o "Drummond Revisitado" é composto por seis ensaios de jovens autores brasileiros. De alguns deles, ainda ouviremos falar. À diferença de seus colegas portugueses, adotam uma tática distinta de abordagem: em vez de focalizarem um único poema, optam por uma visão ampla da obra. No caso de Sergio Alcides, trata-se de percorrer o Drummond até "Lição de Coisas" sob o prisma da melancolia. Fazê-lo significava observar a obra de nosso poeta na contramão da tradição ibérica e brasileira, em que "confessionalismo e lassidão propiciados pelo enfoque melancólico fizeram larga fortuna em maus poemas"; viragem possível porque, desde sua estréia, "a oscilação melancólica em Drummond" não favorecia estados depressivos versus exaltantes do eu, mas sim entre "aflição e participação, negatividade e responsabilidade".
Eduardo Sterzi, por sua vez, também parte de um largo parâmetro, de que extrai sua base: Drummond compõe uma "poética da interrupção". Interrupção do que, nunca se esquecendo "da vida que efetivamente é", implica "o compromisso ético (e trágico) do poeta com o obstáculo"; condição, pois, de verificar que, textualmente, o fim é apenas sinal do que não se resolveu.
Assim adquire surpreendente realce a observação feita por Sérgio Buarque, ainda em 1953, sobre os poemas do autor: "Não é (...) uma indefinida procura o que eles nos oferecem, mas um esforço de exaustiva elucidação". A elucidação sempre interrompida supõe o engano dos que identificam a poesia drummondiana como de "reflexão filosófica". Na verdade, ela está em seu antípoda. A indagação radical da beleza revela o "malogro da cognição". A poesia drummondiana é uma irmã hostil ao propósito da filosofia: seu impulso termina por afirmar o colapso da reflexão.


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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