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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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Elio Gaspari disseca a década inicial da ditadura militar nos primeiros volumes de "As Ilusões Armadas"

A LONGA NOITE DA REPRESSÃO

Daniel Aarão Reis Filho
especial para a Folha

No começo foi a queda: de uma quartelada sem futuro e de uma tempestade de boatos, fez-se uma ditadura que iria durar, no cálculo mais modesto, quase 15 anos. O homem a abater era João Goulart e o regime que ele representava. Quando a noite cobriu o primeiro dia da rebelião, o exército dormiu janguista, mas, na manhã seguinte, haveria de acordar golpista ou, no jargão dos vitoriosos da época, "revolucionário" (Cordeiro de Farias).
Venceram o medo (da quebra da hierarquia e da disciplina, do comunismo, da baderna, da canalha) e as direitas. Perderam o vigor da retórica e a falta de convicções as esquerdas. Lideradas por um presidente primitivo, um pobre de caráter (Celso Furtado). Não era propriamente um covarde, mas se habituara a contornar os caminhos da coragem (Gaspari). Seu governo não foi derrubado, desmanchou-se, a um custo de sete vidas, todas civis, nenhuma em combate. Um desmoronamento.
Em linguagem ágil e envolvente, com ironia impiedosa, Gaspari mostra a gênese da longa noite que então alvorecia. Ao contrário do que habitualmente se imagina, não houve ali o triunfo de articulações calculadas, mas da improvisação, uma frente social e politicamente heterogênea, acionada pela ousadia e pela decisão de uns quantos civis e militares, liderados por um chefe que se intitulava alegremente vaca fardada (Mourão Filho).
No entanto, no fundo do quadro, como pressuposto daquela vitória fulminante e daquela derrota desmoralizante, históricas, o apoio da sociedade aos vitoriosos, a força da teia que uma rebelião temerária tirara da clandestinidade. Esse apoio, às vezes fissurado, sobretudo na conjuntura de 1966-1968, manteve-se por muitos anos. Ao longo do tempo, entre a sociedade e a ditadura estabeleceu-se uma relação construtiva, embora complexa. Através de inúmeros flashes, não aprofundados, mas expressivos, e de um curto capítulo ("O Milagre e a Mordaça"), vão-se desvelando as pontas da energia submersa, qual imenso iceberg, que sustentou os militares no poder: no alto, a grande maioria da oficialidade das Forças Armadas, dos empresários e dos políticos, e mesmo grande parte da Igreja Católica, pelo menos até 1971. Embaixo, por sobre eventuais murmúrios, a permanência de uma assombrosa indiferença (Herbert Daniel).
Gaspari propõe uma chave para compreender o doloroso fenômeno: a ditadura teria executado uma política de desmobilização e de desinstitucionalização da sociedade. Desestruturada, esta teria ficado inerte, incapaz de reagir. Mas ele próprio admite: "O silêncio e a tolerância que o governo Médici obteve foram maiores do que aqueles que a coerção direta poderia assegurar...". A verdade, lembra o autor, é que, "passados mais de 30 anos, o milagre brasileiro e os anos de chumbo continuam negando-se. Quem acha que houve um não acredita (ou não gosta de admitir) que houve o outro". Anos de chumbo, mas também anos de ouro. Enquanto não for possível encarar e estudar essa mistura com serenidade e rigor, a ditadura no Brasil continuará sendo um "cadáver no armário".
Poucos, muito poucos, levantaram-se decididamente contra ela. De um lado, as organizações da esquerda armada de ilusões, mais do que de armas, com seus escassíssimos efetivos (algumas centenas de militantes, a grande maioria de jovens de menos de 25 anos). De outro, os que resistiram sem recorrer à violência: professores, advogados, eclesiásticos, políticos. Porém, como diria um deles, não havia nada a fazer. E, realmente, não havia (Pedroso Horta). Para quem quisesse lutar, efetivamente, só havia porta batendo na cara (José de Araújo Barreto).
A ditadura radicalizou-se com o tempo. Aprofundou-se. Escancarou-se. A prática da tortura, iniciada e denunciada ainda no governo Castelo Branco, este improvável liberal, cujo renome se deve mais ao horror que o sucedeu do que a suas próprias e escassas virtudes, foi se convertendo, pouco a pouco, em política de Estado. No processo, predominariam cada vez mais a truculência, a criminalidade e a "anarquia" da sinistra "comunidade de informações". Derivando em delinquência, da qual seriam tipos emblemáticos o delegado Fleury e o capitão Ailton Guimarães, celebrados pelo regime. Uma gangrena.
A metáfora dos porões, empregada pelo autor, assombrando e atemorizando as gentes, sugere atividades ocultas, segredo. Será adequada? As evidências abundantes, relacionadas no texto de Gaspari, mostram desde o início a conciliação do regime com a tortura. Mais do que isso: a conivência. Ainda: o estímulo, a proteção, a racionalização (uma decorrência da política de segurança e um recurso funcional), o elogio, a condecoração. As torturas não eram produto da anarquia, mas derivavam de uma ordem, encarnavam a Ordem. Onde seria mais próprio figurá-las? Nos porões? Ou nas salas de estar -ou de reunião- onde se decidiam?
Na análise da esquerda armada, Gaspari desafia mais uma vez as teses correntes, mostrando à exaustão que seus militantes nunca foram "braço armado" da resistência democrática, mas partidários de uma revolução violenta cujo programa -e ambição- era fazer do Brasil um país socialista, um Cubão, na maneira jocosa do autor, o que não deixará de atrair a ira dos mais ortodoxos, que teimam em não reconhecer que "direitos humanos" e "democracia" só se converteram em valores para amplos setores das esquerdas (armados e desarmados) a partir da segunda metade dos anos 70 (e "encore"!). Problemática é uma certa tendência a apresentar, em muitos momentos, a esquerda armada como "equivalente", pela esquerda, dos chamados "porões", pela direita. Considerando a desproporção de forças, e o fato de que um lado tinha o Estado do seu lado, trata-se de um exercício discutível, para dizer o menos.
Está assim proposta uma história política da ditadura, de 1964 a 1973, com ênfase nas elites e nas contra-elites, construída com base em arquivos ainda pouco explorados ou mesmo inéditos. Gaspari a terá redigido, "malgré lui-même", porque se propunha apenas a elaborar um preâmbulo da história de dois personagens que o interessam e que são protagonistas principais de uma outra fase, a que se estende de 1974 a 1979: Geisel e Golbery, grandes responsáveis, segundo ele, pelo desmantelamento da ditadura que ajudaram a criar. Ainda faltam três volumes, mas o já feito é uma síntese exaustiva de tudo o que foi publicado, em diálogo constante com os autores e memorialistas que mais se destacaram na reflexão sobre o assunto. Uma narração polêmica, sempre irônica, saudavelmente obcecada com a informação, checada e verificada, na boa tradição de repórteres, detetives e historiadores. A partir de agora, um texto incontornável.


Daniel Aarão Reis Filho é professor de história na Universidade Federal Fluminense e autor de, entre outros, "Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade" (Jorge Zahar).



A Ditadura Envergonhada
As Ilusões Armadas v.1

424 págs., R$ 40,00

de Elio Gaspari. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3846-0801).

A Ditadura Escancarada
As Ilusões Armadas v. 2

512 págs., R$ 44,00

de Elio Gaspari. Companhia das Letras



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