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Elio Gaspari disseca a década inicial
da ditadura militar nos primeiros
volumes de "As Ilusões Armadas"
A LONGA NOITE DA REPRESSÃO
Daniel Aarão Reis Filho
especial para a Folha
No começo foi a queda: de uma
quartelada sem futuro e de
uma tempestade de boatos,
fez-se uma ditadura que iria
durar, no cálculo mais modesto, quase 15
anos. O homem a abater era João Goulart
e o regime que ele representava. Quando
a noite cobriu o primeiro dia da rebelião,
o exército dormiu janguista, mas, na manhã seguinte, haveria de acordar golpista
ou, no jargão dos vitoriosos da época,
"revolucionário" (Cordeiro de Farias).
Venceram o medo (da quebra da hierarquia e da disciplina, do comunismo,
da baderna, da canalha) e as direitas.
Perderam o vigor da retórica e a falta de
convicções as esquerdas. Lideradas por
um presidente primitivo, um pobre de
caráter (Celso Furtado). Não era propriamente um covarde, mas se habituara
a contornar os caminhos da coragem
(Gaspari). Seu governo não foi derrubado, desmanchou-se, a um custo de sete
vidas, todas civis, nenhuma em combate.
Um desmoronamento.
Em linguagem ágil e envolvente, com
ironia impiedosa, Gaspari mostra a gênese da longa noite que então alvorecia.
Ao contrário do que habitualmente se
imagina, não houve ali o triunfo de articulações calculadas, mas da improvisação, uma frente social e politicamente
heterogênea, acionada pela ousadia e pela decisão de uns quantos civis e militares, liderados por um chefe que se intitulava alegremente vaca fardada (Mourão
Filho).
No entanto, no fundo do quadro, como
pressuposto daquela vitória fulminante e
daquela derrota desmoralizante, históricas, o apoio da sociedade aos vitoriosos,
a força da teia que uma rebelião temerária tirara da clandestinidade. Esse
apoio, às vezes fissurado, sobretudo na
conjuntura de 1966-1968, manteve-se
por muitos anos. Ao longo do tempo, entre a sociedade e a ditadura estabeleceu-se uma relação construtiva, embora
complexa. Através de inúmeros flashes,
não aprofundados, mas expressivos, e de
um curto capítulo ("O Milagre e a Mordaça"), vão-se desvelando as pontas da
energia submersa, qual imenso iceberg,
que sustentou os militares no poder: no
alto, a grande maioria da oficialidade das
Forças Armadas, dos empresários e dos
políticos, e mesmo grande parte da Igreja
Católica, pelo menos até 1971. Embaixo,
por sobre eventuais murmúrios, a permanência de uma assombrosa indiferença (Herbert Daniel).
Gaspari propõe uma chave para compreender o doloroso fenômeno: a ditadura teria executado uma política de
desmobilização e de desinstitucionalização da sociedade. Desestruturada, esta
teria ficado inerte, incapaz de reagir. Mas
ele próprio admite: "O silêncio e a tolerância que o governo Médici obteve foram maiores do que aqueles que a coerção direta poderia assegurar...". A verdade, lembra o autor, é que, "passados mais
de 30 anos, o milagre brasileiro e os anos
de chumbo continuam negando-se.
Quem acha que houve um não acredita
(ou não gosta de admitir) que houve o
outro". Anos de chumbo, mas também
anos de ouro. Enquanto não for possível
encarar e estudar essa mistura com serenidade e rigor, a ditadura no Brasil continuará sendo um "cadáver no armário".
Poucos, muito poucos, levantaram-se
decididamente contra ela. De um lado, as
organizações da esquerda armada de ilusões, mais do que de armas, com seus escassíssimos efetivos (algumas centenas
de militantes, a grande maioria de jovens
de menos de 25 anos). De outro, os que
resistiram sem recorrer à violência: professores, advogados, eclesiásticos, políticos. Porém, como diria um deles, não havia nada a fazer. E, realmente, não havia
(Pedroso Horta). Para quem quisesse lutar, efetivamente, só havia porta batendo
na cara (José de Araújo Barreto).
A ditadura radicalizou-se com o tempo. Aprofundou-se. Escancarou-se. A
prática da tortura, iniciada e denunciada
ainda no governo Castelo Branco, este
improvável liberal, cujo renome se deve
mais ao horror que o sucedeu do que a
suas próprias e escassas virtudes, foi se
convertendo, pouco a pouco, em política
de Estado. No processo, predominariam
cada vez mais a truculência, a criminalidade e a "anarquia" da sinistra "comunidade de informações". Derivando em
delinquência, da qual seriam tipos emblemáticos o delegado Fleury e o capitão
Ailton Guimarães, celebrados pelo regime. Uma gangrena.
A metáfora dos porões, empregada pelo autor, assombrando e atemorizando
as gentes, sugere atividades ocultas, segredo. Será adequada? As evidências
abundantes, relacionadas no texto de
Gaspari, mostram desde o início a conciliação do regime com a tortura. Mais do
que isso: a conivência. Ainda: o estímulo,
a proteção, a racionalização (uma decorrência da política de segurança e um recurso funcional), o elogio, a condecoração. As torturas não eram produto da
anarquia, mas derivavam de uma ordem, encarnavam a Ordem. Onde seria
mais próprio figurá-las? Nos porões? Ou
nas salas de estar -ou de reunião- onde se decidiam?
Na análise da esquerda armada, Gaspari desafia mais uma vez as teses correntes, mostrando à exaustão que seus
militantes nunca foram "braço armado"
da resistência democrática, mas partidários de uma revolução violenta cujo programa -e ambição- era fazer do Brasil
um país socialista, um Cubão, na maneira jocosa do autor, o que não deixará de
atrair a ira dos mais ortodoxos, que teimam em não reconhecer que "direitos
humanos" e "democracia" só se converteram em valores para amplos setores
das esquerdas (armados e desarmados) a
partir da segunda metade dos anos 70 (e
"encore"!). Problemática é uma certa
tendência a apresentar, em muitos momentos, a esquerda armada como "equivalente", pela esquerda, dos chamados
"porões", pela direita. Considerando a
desproporção de forças, e o fato de que
um lado tinha o Estado do seu lado, trata-se de um exercício discutível, para dizer o menos.
Está assim proposta uma história política da ditadura, de 1964 a 1973, com ênfase nas elites e nas contra-elites, construída com base em arquivos ainda pouco explorados ou mesmo inéditos. Gaspari a terá redigido, "malgré lui-même",
porque se propunha apenas a elaborar
um preâmbulo da história de dois personagens que o interessam e que são protagonistas principais de uma outra fase, a
que se estende de 1974 a 1979: Geisel e
Golbery, grandes responsáveis, segundo
ele, pelo desmantelamento da ditadura
que ajudaram a criar. Ainda faltam três
volumes, mas o já feito é uma síntese
exaustiva de tudo o que foi publicado,
em diálogo constante com os autores e
memorialistas que mais se destacaram
na reflexão sobre o assunto. Uma narração polêmica, sempre irônica, saudavelmente obcecada com a informação, checada e verificada, na boa tradição de repórteres, detetives e historiadores. A partir de agora, um texto incontornável.
Daniel Aarão Reis Filho é professor de história
na Universidade Federal Fluminense e autor de,
entre outros, "Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade" (Jorge Zahar).
A Ditadura Envergonhada
As Ilusões Armadas v.1
424 págs., R$ 40,00
de Elio Gaspari. Companhia das Letras (r. Bandeira
Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel.
0/xx/ 11/ 3846-0801).
A Ditadura Escancarada
As Ilusões Armadas v. 2
512 págs., R$ 44,00
de Elio Gaspari. Companhia das Letras
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