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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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Obra de Celso Lafer discute as 30 metas do programa de governo do criador de Brasília

A CRIATIVIDADE POLÍTICA DE JUSCELINO

José Murilo de Carvalho
especial para a Folha

Foi com alguma reserva que abri "JK e o Programa de Metas", o novo livro de Celso Lafer, posto que conhecesse fragmentos dele já publicados. Apesar de ser intelectual respeitado, o autor cometeu uma ousadia ao publicar pela primeira vez a versão completa de sua tese de doutoramento defendida em 1970 na Universidade de Cornell (EUA). Desde então, publicou apenas pedaços do trabalho original, tendo voltado ao tema de JK pela última vez em palestra feita em 1992, cujo texto foi incluído na presente edição. A ousadia consiste em expor ao exame público um texto que já exibe a respeitável idade de 32 anos.
Como é natural, textos dessa idade correm o risco de envelhecer pela literatura utilizada, pelas fontes disponíveis, pelo foco da análise. O fato de termos comemorado em 2002 o centenário do nascimento de JK (1902-1976), pretexto para celebrações e publicações de novos livros, como os de Cláudio Bojunga ["JK -O Artista do Impossível", ed. Objetiva" e Ronaldo Costa Couto ["Brasília Kubitschek de Oliveira", ed. Record", ajuda a justificar a publicação, mas, ao mesmo tempo, a coloca diante de produções mais recentes, beneficiárias de melhores tempos e fontes mais ricas.
Logo me tranquilizei. Embora parte da literatura utilizada, na maior parte oriunda da ciência política norte-americana, já não frequente as bibliografias dos cientistas políticos de hoje, o tema e os valores embutidos no trabalho de 1970 continuam atuais. O tema escolhido -o Plano de Metas- ou, em perspectiva mais ampla, o problema da relação entre sistema político e planejamento, continua original. Os livros publicados até agora sobre JK se concentraram em outras dimensões de seu governo. Os valores também não envelheceram. Escrita na pior fase da ditadura militar, a tese não ocultou seu viés democrático e a crítica ao regime inaugurado em 1964. Assim é que, afinal, o livro de Celso Lafer permanece leitura atual e, ao torná-lo público, o autor presta um bom serviço a todos os interessados em compreender os dramas e promessas da política brasileira contemporânea, sobretudo no que se refere às relações entre o jogo político e condições de planejamento da ação governamental.
De particular interesse é o exame cuidadoso das 30 metas estabelecidas pelo programa de JK, composto pelas áreas de energia, transporte, alimentação, indústrias de base e educação. Em 1970, quando a tese foi defendida, JK era um político banido, perseguido e humilhado em IPMs [Inquéritos Policiais Militares" por militares fanáticos, acusado de corrupção e de ter deslanchado o processo inflacionário. Era, então, importante analisar com objetividade os resultados do governo do ex-presidente. Celso Lafer examina meta por meta, informa seus custos e resultados. O balanço é muito positivo, com exceção de algumas metas, como a educação. No que se refere à inflação, admite que foi recurso a que JK se viu obrigado a recorrer, com a consequência de que, a partir de 1959, sua taxa de crescimento passou de 12% para 38%, para não mais baixar até 1965, já durante o regime militar.
Outro ponto importante, que ressalta da análise, é a demonstração da extraordinária capacidade de JK de combinar o novo e o velho, de utilizar ao máximo pessoas e instituições disponíveis e criar novos instrumentos de ação quando necessário. Utilizou os resultados de tentativas anteriores de planejamento, sobretudo as da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, presidida por Horácio Lafer, ministro da Fazenda de Vargas [de 1951 a 1953". Congregou técnicos envolvidos nessas tentativas, juntou-os a outros treinados no Banco do Brasil e no BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), bem como aos que o acompanhavam desde Minas, como Lucas Lopes, ex-presidente da Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais).
Diante da ineficiência do serviço público federal, e na impossibilidade política de reformá-lo a tempo, inventou uma burocracia paralela formada por um Conselho de Desenvolvimento, uma Comissão de Estudos e Projetos Administrativos, Grupos de Trabalho, Grupos Executivos. Transformou o BNDE no carro-chefe da execução de suas metas. Segundo dados do autor, técnicos do BNDE figuram 156 vezes na agenda de audiências presidenciais.
Diante dessa exibição de criatividade política, da capacidade de achar soluções onde outros tinham fracassado, inclusive Vargas, pode-se perguntar se é correta a conclusão do autor de que o êxito do programa de JK esgotara a possibilidade do estilo populista de planejamento de atender às crescentes demandas populares por emprego, levando ao impasse que gerou a renúncia de Jânio Quadros em 1961 e a queda de Goulart em 1964. Jânio renunciou por causa dos obstáculos ou por inapetência em enfrentá-los dentro das regras do jogo democrático? João Goulart foi deposto apenas pelo esgotamento do estilo populista de planejar e pela ação dos golpistas, ou também, e muito, pela falta de habilidade política e criatividade administrativa para enfrentar os problemas?
Nas pesquisas do Ibope da época, JK era o preferido dos eleitores para as eleições presidenciais de 1965. Pode-se supor que o golpe de 1964 não era uma fatalidade. Pode-se imaginar uma outra história para o Brasil contemporâneo em que figuraria um segundo quinquênio JK entre 1966 e 1970. A maldição e a promessa de nosso presidencialismo é o grande prêmio que coloca sobre a capacidade política da figura que exerce a chefia do governo e do Estado.


José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de "Cidadania no Brasil" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.", do Mais!.

JK e o Programa de Metas
256 págs., R$ 38,00

de Celso Lafer. Ed. FGV (praia de Botafogo, 190, CEP 22253-900, RJ, tel. 0/21/2559-5542)


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