|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Obra de Celso Lafer discute as 30 metas do programa de governo do criador de Brasília
A CRIATIVIDADE POLÍTICA DE JUSCELINO
José Murilo de Carvalho
especial para a Folha
Foi com alguma reserva que abri
"JK e o Programa de Metas", o novo livro de Celso Lafer, posto que
conhecesse fragmentos dele já publicados. Apesar de ser intelectual respeitado, o autor cometeu uma ousadia
ao publicar pela primeira vez a versão
completa de sua tese de doutoramento
defendida em 1970 na Universidade de
Cornell (EUA). Desde então, publicou
apenas pedaços do trabalho original,
tendo voltado ao tema de JK pela última
vez em palestra feita em 1992, cujo texto
foi incluído na presente edição. A ousadia consiste em expor ao exame público
um texto que já exibe a respeitável idade
de 32 anos.
Como é natural, textos dessa idade correm o risco de envelhecer pela literatura
utilizada, pelas fontes disponíveis, pelo
foco da análise. O fato de termos comemorado em 2002 o centenário do nascimento de JK (1902-1976), pretexto para
celebrações e publicações de novos livros, como os de Cláudio Bojunga ["JK
-O Artista do Impossível", ed. Objetiva" e
Ronaldo Costa Couto ["Brasília Kubitschek de Oliveira", ed. Record", ajuda a
justificar a publicação, mas, ao mesmo
tempo, a coloca diante de produções
mais recentes, beneficiárias de melhores
tempos e fontes mais ricas.
Logo me tranquilizei. Embora parte da
literatura utilizada, na maior parte
oriunda da ciência política norte-americana, já não frequente as bibliografias
dos cientistas políticos de hoje, o tema e
os valores embutidos no trabalho de
1970 continuam atuais. O tema escolhido
-o Plano de Metas- ou, em perspectiva mais ampla, o problema da relação
entre sistema político e planejamento,
continua original. Os livros publicados
até agora sobre JK se concentraram em
outras dimensões de seu governo. Os valores também não envelheceram. Escrita
na pior fase da ditadura militar, a tese
não ocultou seu viés democrático e a crítica ao regime inaugurado em 1964. Assim é que, afinal, o livro de Celso Lafer
permanece leitura atual e, ao torná-lo
público, o autor presta um bom serviço a
todos os interessados em compreender
os dramas e promessas da política brasileira contemporânea, sobretudo no que
se refere às relações entre o jogo político
e condições de planejamento da ação governamental.
De particular interesse é o exame cuidadoso das 30 metas estabelecidas pelo
programa de JK, composto pelas áreas
de energia, transporte, alimentação, indústrias de base e educação. Em 1970,
quando a tese foi defendida, JK era um
político banido, perseguido e humilhado
em IPMs [Inquéritos Policiais Militares"
por militares fanáticos, acusado de corrupção e de ter deslanchado o processo
inflacionário. Era, então, importante
analisar com objetividade os resultados
do governo do ex-presidente. Celso Lafer
examina meta por meta, informa seus
custos e resultados. O balanço é muito
positivo, com exceção de algumas metas,
como a educação. No que se refere à inflação, admite que foi recurso a que JK se
viu obrigado a recorrer, com a consequência de que, a partir de 1959, sua taxa
de crescimento passou de 12% para 38%,
para não mais baixar até 1965, já durante
o regime militar.
Outro ponto importante, que ressalta
da análise, é a demonstração da extraordinária capacidade de JK de combinar o
novo e o velho, de utilizar ao máximo
pessoas e instituições disponíveis e criar
novos instrumentos de ação quando necessário. Utilizou os resultados de tentativas anteriores de planejamento, sobretudo as da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, presidida por Horácio Lafer,
ministro da Fazenda de Vargas [de 1951 a
1953". Congregou técnicos envolvidos
nessas tentativas, juntou-os a outros treinados no Banco do Brasil e no BNDE
(Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico), bem como aos que o acompanhavam desde Minas, como Lucas Lopes, ex-presidente da Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais).
Diante da ineficiência do serviço público federal, e na impossibilidade política
de reformá-lo a tempo, inventou uma
burocracia paralela formada por um
Conselho de Desenvolvimento, uma Comissão de Estudos e Projetos Administrativos, Grupos de Trabalho, Grupos
Executivos. Transformou o BNDE no
carro-chefe da execução de suas metas.
Segundo dados do autor, técnicos do
BNDE figuram 156 vezes na agenda de
audiências presidenciais.
Diante dessa exibição de criatividade
política, da capacidade de achar soluções
onde outros tinham fracassado, inclusive Vargas, pode-se perguntar se é correta
a conclusão do autor de que o êxito do
programa de JK esgotara a possibilidade
do estilo populista de planejamento de
atender às crescentes demandas populares por emprego, levando ao impasse
que gerou a renúncia de Jânio Quadros
em 1961 e a queda de Goulart em 1964. Jânio renunciou por causa dos obstáculos
ou por inapetência em enfrentá-los dentro das regras do jogo democrático? João
Goulart foi deposto apenas pelo esgotamento do estilo populista de planejar e
pela ação dos golpistas, ou também, e
muito, pela falta de habilidade política e
criatividade administrativa para enfrentar os problemas?
Nas pesquisas do Ibope da época, JK
era o preferido dos eleitores para as eleições presidenciais de 1965. Pode-se supor que o golpe de 1964 não era uma fatalidade. Pode-se imaginar uma outra história para o Brasil contemporâneo em
que figuraria um segundo quinquênio
JK entre 1966 e 1970. A maldição e a promessa de nosso presidencialismo é o
grande prêmio que coloca sobre a capacidade política da figura que exerce a
chefia do governo e do Estado.
José Murilo de Carvalho é professor titular do
departamento de história da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, autor de "Cidadania no Brasil"
(Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.", do Mais!.
JK e o Programa de Metas
256 págs., R$ 38,00
de Celso Lafer. Ed. FGV (praia de Botafogo, 190,
CEP 22253-900, RJ, tel. 0/21/2559-5542)
Texto Anterior: + livros: A longa noite da repressão Próximo Texto: Dilemas da invenção do Brasil Índice
|