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A QUEDA DO PATRIARCA
Tony Gentile-1º.jan.2004/Reuters
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Italiano mergulha no rio Tigre,
em Roma, durante
as comemorações do Ano Novo |
O SOCIÓLOGO SUECO
GÖRAN THERBORN
ATACA A MERCANTILIZAÇÃO
DAS RELAÇÕES SEXUAIS
NO OCIDENTE E AFIRMA
QUE O PATRIARCADO
SOFREU UM DURO GOLPE
NO SÉCULO 20, MAS PODE
RESSURGIR COM OS NOVOS
FUNDAMENTALISMOS
RELIGIOSOS
MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO
O
predomínio do patriarcado está retrocedendo em
escala global, mas há uma
"reação masculina" em
conseqüência de fundamentalismos
religiosos. A fecundidade e o casamento tendem a diminuir, mas reversões de tendências surpreendem
em alguns países -como na "avançada" sociedade dinamarquesa.
Essas são algumas conclusões do
sociólogo sueco Göran Therborn,
que está lançando no Brasil uma
obra essencial para o estudo da evolução da família e do patriarcado como regulador das relações sociais ao
longo do século 20.
"Sexo e Poder - A Família no Mundo, 1900-2000" (ed. Contexto, tradução de Elisabete Dória Bilac, 512
págs., R$ 65) faz um extenso estudo
sobre os gêneros no século 20 e
aponta os enormes avanços da
emancipação feminina, mas indica
que o patriarcado ainda está longe
da extinção.
Para sua análise, Therborn adotou
um critério "geocultural" -em analogia à geopolítica-, diminuindo o
peso da religião, por exemplo. Analisou sexualidade, casamento e fecundidade em cinco sistemas familiares
globais e dois sistemas "intersticiais"
-um dos dois é a América crioula,
que compreende o Brasil.
Para Therborn, em outras palavras, América Latina e sul dos EUA
são muito semelhantes historicamente quando se fala em poder
masculino. Em entrevista à Folha
por e-mail, Therborn fala de seu livro e da decadência do movimento
feminista -que, contudo, ainda pode renascer, prevê.
Folha - O século 20 foi marcado pela
emancipação feminina. Atualmente,
40 anos depois da revolução sexual, o
senhor acha que o papel masculino
nas famílias está voltando a se fortalecer no Ocidente?
Göran Therborn - O patriarcado foi
um dos grandes perdedores no século 20. Como eu afirmo no livro, isso
não significa que os padrões familiares estejam convergindo no mundo.
As mudanças tenderam a caminhar
na mesma direção, mas numa profundidade bem diferente.
Há uma certa reação masculina
alimentada pela ascensão de fundamentalismos religiosos -cristão,
judeu, muçulmano e hindu. Mas esse movimento ainda precisa alcançar alguma vitória significativa.
Folha - Relações sexuais e pessoais
estão se tornando mercadoria?
Therborn - Há claramente uma tendência para a transformação das relações pessoais e sexuais em mercadorias. Há uma mercantilização das
relações sociais no capitalismo. E há
um novo narcisismo, secularizado e
"desideologizado". A mídia tem um
grande papel nisso, de que é exemplo o sucesso dos "reality shows".
Folha - O sr. analisa sexo e poder a
partir do patriarcado, do casamento e
da fecundidade. Quais são as tendências para o século 21? E especificamente em relação ao Brasil?
Therborn - Ainda que esteja sendo
desafiado, o patriarcado ainda é preponderante na maior parte do interior do Ásia Oriental, do sul da Ásia,
da Ásia Ocidental -com exceção da
Turquia urbana- e na maioria da
África -urbana e rural-, ainda
que lá a pobreza das favelas, as drogas e a pobreza estejam quebrando
as regras familiares e outras.
Mas o poder masculino está em retração, como você pode notar pelo
crescente nível educacional das mulheres e pelo casamento cada vez
mais tardio. O casamento ainda é
virtualmente universal na maioria
da Ásia, exceto em algumas grandes
cidades como Bancoc, na Tailândia,
e Tóquio. Está em queda na maior
parte do resto do mundo, mas isso
pode se reverter parcialmente.
A taxa de casamentos na Dinamarca, por exemplo, inverteu seu
declínio há poucas décadas. A taxa
de fecundidade, globalmente, continuará a decrescer, mas em alguns
países pode haver mudanças.
O Brasil está se aproximando da
estabilidade em sua população, mas
seu peso demográfico no mundo
-e o da América Latina- crescerá até 2050, provavelmente. O problema crucial do Brasil é a desigualdade entre crianças e entre famílias assim como entre classes sociais, raças, homens e mulheres.
Folha - Por que o enfraquecimento da tradição familiar
não interrompeu a discriminação contra as mulheres?
Therborn - Porque não apenas famílias mas também
sistemas educacionais, mercados de trabalho e espaço
público diferenciam homens e mulheres.
Folha - Por que o sr. optou pelo critério "geocultural", em
analogia à geopolítica, para analisar o patriarcado, em detrimento da religião, por exemplo?
Therborn - Religião e família são as instituições sociais
mais antigas da humanidade. É natural que estejam interconectadas. Contudo religiões se distribuem desigualmente pelo mundo, dentro de diferentes culturas com
experiências históricas distintas. "Geocultura" é um conceito para levar em conta, por exemplo, que a família católica africana tende a ser mais africana do que católica,
assim como acontece na Itália.
Ou que havia mais afinidades do ponto de vista da sexualidade e da família entre protestantes proprietários de escravos e
seus dependentes no sul dos EUA e
proprietários de escravos brasileiros
do que com protestantes da Europa.
Analogamente, católicos brasileiros tinham menos afinidades com
os católicos europeus.
Folha - Qual a relação do casamento
com o comportamento sexual?
Therborn - O casamento é uma instituição para o controle da sexualidade. Regula quem pode, quem deve e quem não pode ter sexo -e
com quem. Uniões consensuais ou
coabitações tendem a ser similares
aos casamentos, mas menos formais
e com normas não-ritualizadas.
Folha - O comunismo enfraqueceu o
patriarcado? Por que seu livro aponta
a Europa do Leste como uma das regiões de "vanguarda" atualmente?
Therborn - O desmantelamento do
patriarcado, ainda que incompleto,
foi provavelmente a realização mais
positiva e mais duradoura do comunismo. Foi dirigido por uma ideologia secular moderna -o marxismo- e foi fundado na socialização
da propriedade familiar e na participação feminina no mercado de trabalho, com creches para as crianças.
Folha - A sociedade pós-patriarcal
pode prover ganhos iguais para homens e mulheres?
Therborn - Não acho que seja impossível, mas será necessária uma
luta dura para isso, dada a profunda
desigualdade entres os sexos, que
ocorre no sistema escolar e no mercado de trabalho.
Folha - Seu ponto de vista não é centrado em uma percepção de família
"escandinava"?
Therborn - Ninguém ainda me criticou por isso. A maioria das pessoas
que leram o livro ficou positivamente surpreendida com minha abordagem literalmente global.
Folha - O sr. acha que o movimento
feminista -que perdeu um de seus
ícones, Betty Friedan, no último dia
4- está em crise ou decadente?
Therborn - Depois do avanço nos
anos 70 e 80, há menos dinamismo
na Europa e nas Américas. Por outro
lado, parece estar ganhando força na
África e na Ásia. Provavelmente,
num futuro não muito distante, haverá o renascimento de um vigoroso
movimento feminista na Europa do
Leste contra as correntes antifeministas e pós-comunistas.
Folha - O Brasil tinha em 1900 cerca
de 17 milhões de habitantes. Em
2000, superou 169 milhões. Como o
sr. considerou a "maior nação católica
do mundo" em sua pesquisa?
Therborn - Em 1900, o Brasil era
uma sociedade patriarcal explícita,
com uma informalidade sexual advinda da dominação machista masculina, que levava em conta a raça. O
patriarcado explícito não existe
mais, com a Constituição de 1988 e
com o novo Código Civil.
Atualmente a velha "prática crioula" de uniões consensuais está de
volta e é tão freqüente no Brasil
quanto nos países protestantes escandinavos. Mas há ainda no Brasil
uma forte desigualdade entre homens e mulheres. A remuneração
das mulheres representa menos da
metade do ganho masculino.
Folha - O sr. cita em seu livro a "zona
crioula" nas Américas. A América anglo-saxã não difere da América ibérica? A América portuguesa não difere
da espanhola? O sr. considerou as teses de Gilberto Freyre sobre mestiçagem e democracia racial?
Therborn - Naturalmente eu cito
Gilberto Freyre em meu livro. Ele era
um grande observador social, embora fosse inclinado ao romantismo.
Toda sociedade tem suas especificidades. Mas, em termos de família e
sexualidade, há algumas similaridades muito importantes dentro da zona das "plantations" de mão-de-obra escrava, da Virginia (EUA) à
Bahia e ao Rio. Isso independe da
língua dos "senhores" ser o português, o espanhol ou o inglês.
Também havia grandes similaridades ao longo da região andina e
em suas áreas internas, como no trabalho indígena servil nas "haciendas" e minas. A total dominação
econômico-sexual de senhores cristãos sobre negros cativos e populações indígenas -e de homens sobre
mulheres- criou um sistema particular de família crioula e de sociedade nas Américas.
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