São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 2006

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A QUEDA DO PATRIARCA

Tony Gentile-1º.jan.2004/Reuters
Italiano mergulha no rio Tigre, em Roma, durante as comemorações do Ano Novo


O SOCIÓLOGO SUECO GÖRAN THERBORN ATACA A MERCANTILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SEXUAIS NO OCIDENTE E AFIRMA QUE O PATRIARCADO SOFREU UM DURO GOLPE NO SÉCULO 20, MAS PODE RESSURGIR COM OS NOVOS FUNDAMENTALISMOS RELIGIOSOS

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

O predomínio do patriarcado está retrocedendo em escala global, mas há uma "reação masculina" em conseqüência de fundamentalismos religiosos. A fecundidade e o casamento tendem a diminuir, mas reversões de tendências surpreendem em alguns países -como na "avançada" sociedade dinamarquesa.
Essas são algumas conclusões do sociólogo sueco Göran Therborn, que está lançando no Brasil uma obra essencial para o estudo da evolução da família e do patriarcado como regulador das relações sociais ao longo do século 20.
"Sexo e Poder - A Família no Mundo, 1900-2000" (ed. Contexto, tradução de Elisabete Dória Bilac, 512 págs., R$ 65) faz um extenso estudo sobre os gêneros no século 20 e aponta os enormes avanços da emancipação feminina, mas indica que o patriarcado ainda está longe da extinção.
Para sua análise, Therborn adotou um critério "geocultural" -em analogia à geopolítica-, diminuindo o peso da religião, por exemplo. Analisou sexualidade, casamento e fecundidade em cinco sistemas familiares globais e dois sistemas "intersticiais" -um dos dois é a América crioula, que compreende o Brasil.
Para Therborn, em outras palavras, América Latina e sul dos EUA são muito semelhantes historicamente quando se fala em poder masculino. Em entrevista à Folha por e-mail, Therborn fala de seu livro e da decadência do movimento feminista -que, contudo, ainda pode renascer, prevê.
 

Folha - O século 20 foi marcado pela emancipação feminina. Atualmente, 40 anos depois da revolução sexual, o senhor acha que o papel masculino nas famílias está voltando a se fortalecer no Ocidente?
Göran Therborn -
O patriarcado foi um dos grandes perdedores no século 20. Como eu afirmo no livro, isso não significa que os padrões familiares estejam convergindo no mundo. As mudanças tenderam a caminhar na mesma direção, mas numa profundidade bem diferente.
Há uma certa reação masculina alimentada pela ascensão de fundamentalismos religiosos -cristão, judeu, muçulmano e hindu. Mas esse movimento ainda precisa alcançar alguma vitória significativa.

Folha - Relações sexuais e pessoais estão se tornando mercadoria?
Therborn -
Há claramente uma tendência para a transformação das relações pessoais e sexuais em mercadorias. Há uma mercantilização das relações sociais no capitalismo. E há um novo narcisismo, secularizado e "desideologizado". A mídia tem um grande papel nisso, de que é exemplo o sucesso dos "reality shows".

Folha - O sr. analisa sexo e poder a partir do patriarcado, do casamento e da fecundidade. Quais são as tendências para o século 21? E especificamente em relação ao Brasil?
Therborn -
Ainda que esteja sendo desafiado, o patriarcado ainda é preponderante na maior parte do interior do Ásia Oriental, do sul da Ásia, da Ásia Ocidental -com exceção da Turquia urbana- e na maioria da África -urbana e rural-, ainda que lá a pobreza das favelas, as drogas e a pobreza estejam quebrando as regras familiares e outras.
Mas o poder masculino está em retração, como você pode notar pelo crescente nível educacional das mulheres e pelo casamento cada vez mais tardio. O casamento ainda é virtualmente universal na maioria da Ásia, exceto em algumas grandes cidades como Bancoc, na Tailândia, e Tóquio. Está em queda na maior parte do resto do mundo, mas isso pode se reverter parcialmente.
A taxa de casamentos na Dinamarca, por exemplo, inverteu seu declínio há poucas décadas. A taxa de fecundidade, globalmente, continuará a decrescer, mas em alguns países pode haver mudanças.
O Brasil está se aproximando da estabilidade em sua população, mas seu peso demográfico no mundo -e o da América Latina- crescerá até 2050, provavelmente. O problema crucial do Brasil é a desigualdade entre crianças e entre famílias assim como entre classes sociais, raças, homens e mulheres.

Folha - Por que o enfraquecimento da tradição familiar não interrompeu a discriminação contra as mulheres?
Therborn -
Porque não apenas famílias mas também sistemas educacionais, mercados de trabalho e espaço público diferenciam homens e mulheres.

Folha - Por que o sr. optou pelo critério "geocultural", em analogia à geopolítica, para analisar o patriarcado, em detrimento da religião, por exemplo?
Therborn -
Religião e família são as instituições sociais mais antigas da humanidade. É natural que estejam interconectadas. Contudo religiões se distribuem desigualmente pelo mundo, dentro de diferentes culturas com experiências históricas distintas. "Geocultura" é um conceito para levar em conta, por exemplo, que a família católica africana tende a ser mais africana do que católica, assim como acontece na Itália.
Ou que havia mais afinidades do ponto de vista da sexualidade e da família entre protestantes proprietários de escravos e seus dependentes no sul dos EUA e proprietários de escravos brasileiros do que com protestantes da Europa.
Analogamente, católicos brasileiros tinham menos afinidades com os católicos europeus.

Folha - Qual a relação do casamento com o comportamento sexual?
Therborn -
O casamento é uma instituição para o controle da sexualidade. Regula quem pode, quem deve e quem não pode ter sexo -e com quem. Uniões consensuais ou coabitações tendem a ser similares aos casamentos, mas menos formais e com normas não-ritualizadas.

Folha - O comunismo enfraqueceu o patriarcado? Por que seu livro aponta a Europa do Leste como uma das regiões de "vanguarda" atualmente?
Therborn -
O desmantelamento do patriarcado, ainda que incompleto, foi provavelmente a realização mais positiva e mais duradoura do comunismo. Foi dirigido por uma ideologia secular moderna -o marxismo- e foi fundado na socialização da propriedade familiar e na participação feminina no mercado de trabalho, com creches para as crianças.

Folha - A sociedade pós-patriarcal pode prover ganhos iguais para homens e mulheres?
Therborn -
Não acho que seja impossível, mas será necessária uma luta dura para isso, dada a profunda desigualdade entres os sexos, que ocorre no sistema escolar e no mercado de trabalho.

Folha - Seu ponto de vista não é centrado em uma percepção de família "escandinava"?
Therborn -
Ninguém ainda me criticou por isso. A maioria das pessoas que leram o livro ficou positivamente surpreendida com minha abordagem literalmente global.

Folha - O sr. acha que o movimento feminista -que perdeu um de seus ícones, Betty Friedan, no último dia 4- está em crise ou decadente?
Therborn -
Depois do avanço nos anos 70 e 80, há menos dinamismo na Europa e nas Américas. Por outro lado, parece estar ganhando força na África e na Ásia. Provavelmente, num futuro não muito distante, haverá o renascimento de um vigoroso movimento feminista na Europa do Leste contra as correntes antifeministas e pós-comunistas.

Folha - O Brasil tinha em 1900 cerca de 17 milhões de habitantes. Em 2000, superou 169 milhões. Como o sr. considerou a "maior nação católica do mundo" em sua pesquisa?
Therborn -
Em 1900, o Brasil era uma sociedade patriarcal explícita, com uma informalidade sexual advinda da dominação machista masculina, que levava em conta a raça. O patriarcado explícito não existe mais, com a Constituição de 1988 e com o novo Código Civil.
Atualmente a velha "prática crioula" de uniões consensuais está de volta e é tão freqüente no Brasil quanto nos países protestantes escandinavos. Mas há ainda no Brasil uma forte desigualdade entre homens e mulheres. A remuneração das mulheres representa menos da metade do ganho masculino.

Folha - O sr. cita em seu livro a "zona crioula" nas Américas. A América anglo-saxã não difere da América ibérica? A América portuguesa não difere da espanhola? O sr. considerou as teses de Gilberto Freyre sobre mestiçagem e democracia racial?
Therborn -
Naturalmente eu cito Gilberto Freyre em meu livro. Ele era um grande observador social, embora fosse inclinado ao romantismo. Toda sociedade tem suas especificidades. Mas, em termos de família e sexualidade, há algumas similaridades muito importantes dentro da zona das "plantations" de mão-de-obra escrava, da Virginia (EUA) à Bahia e ao Rio. Isso independe da língua dos "senhores" ser o português, o espanhol ou o inglês.
Também havia grandes similaridades ao longo da região andina e em suas áreas internas, como no trabalho indígena servil nas "haciendas" e minas. A total dominação econômico-sexual de senhores cristãos sobre negros cativos e populações indígenas -e de homens sobre mulheres- criou um sistema particular de família crioula e de sociedade nas Américas.


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