São Paulo, domingo, 19 de março de 2000


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+ memória
Ignorado pela crítica, Hugo Adami uniu as vanguardas do Brasil e da Itália
O modernista esquecido

José Roberto de Andrade
especial para a Folha

Uma parte da história do Brasil viveu escondida, durante anos, no bairro paulistano da Aclimação. O pintor Hugo Adami, morto em dezembro último, aos cem anos, foi o último modernista entre nós. Para quem teve o privilégio de conhecê-lo, já no fim da vida, cada encontro revelava uma surpresa. Sua memória ainda guardava as lembranças de amigos como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Menotti del Picchia, Lasar Segall e muitos outros, que com ele fizeram parte da vida artística brasileira nas décadas de 20 e 30. Tendo vivido muitos anos na Itália, a partir de 1922 Adami fez parte da trupe de jovens pintores que incluía, entre outros, Giorgio De Chirico e Ottone Rosai, agitando o mundo das artes ao tempo em que marcavam sua ascensão. A história de Hugo Adami guarda informações sobre momentos importantes da pintura brasileira e é no mínimo surpreendente descobrir que jamais tenha sido alvo de um estudo mais detalhado, seja por parte da crítica, seja pelo meio acadêmico. Ao longo da pesquisa que venho realizando sobre sua vida, há mais de um ano, não raro tenho a sensação de estar diante de um inexplicável esquecimento. Muito pode ser dito sobre Adami, e não é fácil seguir uma linha lógica na descrição de sua trajetória, pois, além da pintura, percorreu caminhos variados e muito diversos, como o teatro, com Flávio de Carvalho, e o cinema, com Humberto Mauro. Os eventos de que participou chamam a atenção de qualquer um, não apenas pela importância que hoje atribuímos à sua significação histórica, mas principalmente pela incrível distância no tempo.

Amizade com Mário
Quando se organizou a Semana de Arte Moderna de 1922, Adami já fazia parte do grupo de artistas responsável pelo acontecimento que foi um divisor de águas na arte brasileira e cultivava a amizade dos principais expoentes daquela geração. É desse ano o seu excelente retrato de Mário de Andrade, que Adami recorda ter pintado "em uma posada só", enquanto conversavam. A amizade entre ambos durou muitos anos, e Mário de Andrade chegou a dedicar-lhe três elogiosos artigos -muito pouco conhecidos- no "Diário Nacional", por ocasião de sua mostra individual em 1928.
Ainda em 1922, Hugo Adami partiu para sua primeira viagem de estudos à Europa, onde permaneceu por cinco anos, a maior parte do tempo na Itália, dedicando-se exclusivamente ao aperfeiçoamento de sua pintura. Esse é um fato que demonstra uma situação extremamente diferente de Adami em relação aos demais pintores ítalo-brasileiros daquela geração. Profissão e dinheiro não se misturaram em sua vida. Adami vinha de uma família abastada e sempre teve uma educação voltada para as artes.

A importância de Hugo Adami não reside apenas no papel de ponte de conhecimentos artísticos entre Brasil e Itália, mas sobretudo na qualidade que sua pintura atingiu


Não se pouparam recursos para que pudesse ter acesso ao melhor da arte de sua época, e só precisou trabalhar para obter alguma renda depois dos 50 anos. Chegando a Florença, naquele início de anos 20, o pintor rapidamente passou a frequentar o meio artístico local -então fervilhante da agitação social desencadeada com a ascensão dos fascistas ao poder- e travou conhecimento com nomes que se consagrariam na arte italiana deste século. Adami conheceu Giorgio De Chirico pouco tempo depois de desembarcar na capital toscana. Passados mais de 70 anos, em entrevista concedida no ano passado, Adami ainda foi capaz de recontar com grande vivacidade o momento do encontro com a arte metafísica de De Chirico. A emoção de assombro que teve diante dos quadros e as longas conversas entre ambos serviram de inspiração para que, mais tarde, no início dos anos 30, em seu segundo "séjour" europeu, Hugo pintasse uma série de quadros metafísicos, de grande sucesso. Consta que a mais célebre obra dessa fase, o óleo "Cabeça de Etrusco", esteve na coleção de Ivete Vargas. De Chirico e Adami voltariam a se encontrar, tempos depois, em Paris. Ottone Rosai, Felice Carena e Carlo Carrà são alguns outros pintores com quem Adami conviveu nos anos em que esteve na Itália. Naquela época o ponto de encontro de intelectuais e artistas florentinos era o café Giubbe Rosse -que até hoje está lá-, frequentado por ativistas políticos e anarquistas.

Mostras no exterior
Fala-se muito da arte de pintores ítalo-brasileiros, das influências que recebiam dos dois continentes e de sua afirmação nas artes plásticas brasileiras ao longo das primeiras décadas do modernismo, mas todos os discursos passam sem fazer menção a fatos extremamente relevantes, como a participação de Adami na primeira mostra do "Novecento Italiano", em 1926, em Milão, ou nas Bienais de Veneza, em 1924 e 1930. O "Novecento" foi um movimento que reuniu, dentro da pintura, alguns dos maiores nomes da Itália. Reagindo ao academismo, pregava uma estética de retorno à ordem construtiva em meio à crescente experimentação artística do entre-guerras. Adami foi o único brasileiro a participar do movimento e de sua principal mostra, tendo exposto três obras, o máximo permitido por artista. Uma de suas pinturas chegou até mesmo a ser destacada no catálogo do evento. Do mesmo modo, na Bienal de Veneza, Adami foi o primeiro pintor moderno a representar o Brasil. Em 1924, participando com um belíssimo e vigoroso auto-retrato, e, em 1930, com o seu "Rue St. Denis", Hugo Adami contribuiu para a inserção do nome do país no circuito da produção artística daqueles anos. É impressionante, portanto, verificar que a história e a crítica deixaram passar como invisíveis esses fatos. Pietro Maria Bardi já dizia isso havia mais de uma década. Tendo se fixado no Brasil, após 1932 Adami firmou-se rapidamente como pintor de intensa participação em todas as principais manifestações artísticas, aventurando-se não só pelas artes plásticas, mas também pelo cinema e teatro. Junto com Segall, Malfatti e outros, participou da fundação da Spal, dos Salões de Maio e diversas vezes do Salão Paulista de Belas-Artes, Salão Nacional de Belas-Artes e Mostra da Família Artística Paulista, para citar apenas alguns. Anos antes, já em 27, fora um dos poucos participantes do primeiro almoço do Clube de Antropofagia, em homenagem a Piolim. Durante os anos 30, Adami desdobrava-se entre o Rio de Janeiro e São Paulo para expor, ou participar como jurado, em todo tipo de mostras.

Ecletismo político
Politicamente, Adami também trafegava entre as faixas do espectro. Em um tempo de polarização política acentuada, foi eclético o bastante para manter amizade com extremos tão diversos como Di Cavalcanti, nas lutas de esquerda, e Plínio Salgado, no integralismo. Por influência de Adami, em maio de 1927, o crítico toscano Verano Magni, escrevia o artigo "L"Anta e il Selvaggio", tratando de duas revoluções intelectuais, no Brasil e na Itália, em um típico tom nacionalista afinado ao discurso da direita. Em 1935, por outro lado, encontramos o pintor entre os poucos e seletos escolhidos para participar da primeira Mostra de Arte Social, no Rio de Janeiro. Tratava-se de realização que abrigava a vanguarda da esquerda nas artes plásticas brasileiras, reunindo artistas que através do desenho e gravura se propunham a fazer da arte um instrumento de luta, dentro dos cânones do ideário comunista. O esquecimento que se verifica da obra de Adami pode, em parte, ser atribuído ao próprio retraimento do pintor da cena artística, a partir dos anos 40. A arte, para ele, nunca foi um meio de ascensão social e não lhe abriu portas que, de outro modo, estariam fechadas. Contando com recursos que permitiam que ele se dedicasse a outras atividades, o pintor passou a viver no Rio de Janeiro de 1937 até meados dos anos 60, incluindo em seu círculo Vittorio Gobbis, Portinari, Guignard e alguns outros amigos.

Saída de cena
Mantendo-se sempre fiel ao figurativo em sua obra e preservando certas conquistas formais do "Novecento", Adami exprimiu de modo bastante próprio uma visão quase documental da natureza. Seu duplo afastamento foi, portanto, de natureza física e conceitual. Sua drástica redução, ou não-participação em mostras, deu-se em um momento de institucionalização do moderno na arte brasileira e sem dúvida ajudou a retirar visibilidade de sua importante contribuição para o modernismo. Foi uma saída simultânea à historicização do papel dos modernistas. Além disso, a oscilação geográfica da atuação de Adami, entre Brasil e Itália, São Paulo e Rio de Janeiro, pintura, cinema e teatro, criou dificuldades adicionais ao entendimento de suas realizações artísticas. Mas é justamente nessa riqueza e diversidade que residem os aspectos fascinantes de sua vida. O grupo do Santa Helena e Hugo Adami também cruzaram trajetórias. Obras sobre contemporâneos (termo difícil quando se fala de Adami) como Mário Zanini e Aldo Bonadei se referem ao papel que Adami teve na transmissão de conhecimentos novos sobre a arte que se produzia na Itália. Há relatos, inclusive, de que Adami teria apresentado Bonadei a seu antigo professor, Felice Carena, durante viagem a Florença. Pintores do grupo do Santa Helena adquiriram conhecimento com Adami (notadamente sobre o "Novecento"), e sua participação na primeira Mostra da Família Artística Paulista aponta para um período de proximidade. Entretanto esses não são elementos suficientes para classificá-lo como sendo apenas mais um representante, em termos genéricos, dos ítalo-brasileiros. Apesar da semelhança na origem cultural, Adami teve uma posição social muito mais privilegiada que estes, tendo sido presença constante nos salões da elite dos anos 30.

Entre dois mundos
A importância de Hugo Adami não se resume somente ao papel de ponte de conhecimentos artísticos entre Brasil e Itália, mas reside, sobretudo, nos resultados que a qualidade de sua pintura atingiu. Nenhum outro pintor moderno brasileiro se viu tão envolvido com a transformação de dois mundos. Na Itália, ligado a nomes da vanguarda, partilhando da agitação do "ventennio", da pintura de exaltação do rural, da arte metafísica e presente em eventos tão significativos como o "Novecento" e a Bienal de Veneza. No Brasil, um modernista de estirpe única, ativo em praticamente tudo o que ocorria de importante nas artes plásticas.
É chegado o momento de fazer uma reflexão profunda sobre a obra de Hugo Adami. As verdades estabelecidas, seja pela crítica, seja pelos historiadores, não parecem ser guias adequados para tal missão. Outros modernistas, sem dúvida, alcançaram merecidamente maior projeção. Mas é pouco provável que Mário de Andrade, Luis Martins ou Pietro Maria Bardi -para citar apenas alguns daqueles que escreveram sobre o valor da arte de Hugo Adami- estivessem equivocados. Tampouco parece sensato crer que o pintor tenha passado incólume ao convívio que teve com pintores do porte de De Chirico, Carrà ou Rosai. Fosse assim, dificilmente teria participado de tantas mostras na Itália e sido alvo de tantos artigos por lá.
Nossa anestesia mental sobre sua obra precisa passar... Por justiça ao pintor e enriquecimento de nosso próprio conhecimento sobre a história das artes plásticas brasileiras.


José Roberto de Andrade é diplomata e mestrando em administração pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).


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