São Paulo, domingo, 19 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

No desfile da Marquês de Sapucaí a letra de um samba pode cantar a harmonia, ao passo que um carro alegórico sugere visualmente o conflito, ou vice-versa
O divórcio entre o samba e a alegoria

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
especial para a Folha

O desfile carnavalesco é fluxo. Fluxo de corpos que dançam, cantam, batucam, trocam o dia pela noite, a rotina pela festa. Corpos de todos os tipos e formas, esbeltos e sensuais, magros e gordos, bonitos e feios. Todo mundo pode ter aqui a sua vez e a sua hora, seu encontro pessoal com a inesquecível experiência da folia. Ao mesmo tempo, o desfile é padrão e regularidade, pois é preciso preencher de sentido coletivo esse fragmento especial de tempo. Em cada noite, as escolas de samba reproduzem o modelo estético consagrado ao longo do século 20 -contar um enredo anualmente variado em forma de samba e visual.

Festas associadas
Pois neste ano 2000, a celebração carnavalesca associou-se oficialmente a outra celebração, a dos 500 anos do descobrimento do Brasil, e todas as escolas do grupo especial trouxeram como enredo temas da história do país. Em São Paulo, etapas cronologicamente alinhadas foram sorteadas entre as escolas. No Rio de Janeiro, 21 tópicos históricos foram propostos e livremente escolhidos pelas 14 escolas. Esse debruçar-se do rito sobre a história do Brasil revela o fascinante processo de criação coletiva empreendido pela festa. No reinado de Momo, a história é triturada pelo inexorável trabalho do rito e reconstruída a partir da ótica e das regras características de um tempo extraordinário. A palavra e os fatos, na luta da memória com o esquecimento, submetem-se à lógica do mito e da carnavalização. Essa "trituração" criativa ocorre ao longo do intrincado ciclo de preparo anual do desfile. Tudo começa com a natureza ficcional do enredo de escola de samba, que comunica de modo surpreendente conhecimento erudito e cultura popular. Cada enredo, por sua vez, fornece a base para a confecção de inúmeros sambas. Dessas diversas leituras de um mesmo enredo, produzidas em forma de samba pelos compositores de cada escola, apenas uma alcançará o público amplo: o samba campeão a ser cantado no desfile. No conjunto carioca, duas concepções de história forneceram como que dois pólos em torno dos quais se alinharam os enredos e sambas. A primeira elegeu episódios e fatos caracterizadores de marcos da história nacional (e compareceram nas bibliografias dos enredos autores como José Murilo de Carvalho, Fernando Henrique Cardoso, Helio Silva, Alzira Vargas Peixoto, Edgard Carone, Angela de Castro, Nelson Werneck Sodré, Capristano de Abreu, Rocha Pombo, Eduardo Silva, Jorge Caldeira, entre outros). A Acadêmicos do Salgueiro cantou a vinda da família real portuguesa para o Brasil e a elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal e Algarves. A Mangueira, o lado negro e popular do Segundo Império em sua homenagem a Dom Obá, que viu, em seu delírio, "no morro da Mangueira/ sambar de Porta-Bandeira a Princesa Isabel". A Unidos do Porto da Pedra, a proclamação da República e "os republicanos que buscaram na França idéias para o Brasil mudar e, sem se importar com o apoio do povo, poder queriam conquistar". A Tradição, o negro e seus costumes no Rio de Janeiro do século 19; a Portela, a era Vargas -"apesar da censura, não existe mal sem cura, viva o trabalhador!"; a Caprichosos de Pilares e a União da Ilha, a ditadura militar de 1964. A segunda idéia de história elegeu o fato original do Descobrimento como ponto de partida rumo às idéias de origem e ancestralidade na formação do povo (e a bibliografia trouxe, além de enciclópédias, manuais e da carta de Caminha, clássicos do folclore, da antropologia, do pensamento social: Luis da Câmara Cascudo, Edison Carneiro, Roger Bastide, Arthur Ramos, Manuel Querino, João do Rio, Nina Rodrigues, Berta Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda). Situam-se aqui a Vila Isabel, cantando o Brasil antes do Descobrimento, inspirada na imagem romântica do índio associado à pureza da natureza; e o conjunto das escolas que elegeram o próprio Descobrimento. A Unidos da Tijuca enfatizou o encontro nativos/portugueses, com a travessia, a descoberta, a carta e a primeira missa. A Mocidade brincou com a idéia de passado, presente e futuro. Aborígenes cibernéticos, índios que partiram da Terra Brasilis, voltavam do futuro 500 anos depois. Com eles, percorremos o território nacional pintado nas cores da bandeira. A Viradouro começou seu Carnaval "na era medieval", contrastando diferentes paraísos e infernos -o medieval, o dos índios, o dos negros. A Grande Rio englobou a travessia, o Descobrimento e a primeira missa com seu "carnaval à vista", pois os índios já festejavam antes da chegada dos portugueses. A Beija-Flor, num enredo de fundo espírita, associou a descoberta a outras invasões, e viu na união das três raças em nossa história um "fato muito antes planejado nas mais altas esferas astrais". Finalmente, a bicampeã Imperatriz Leopoldinense deteve-se também nas grandes navegações, na travessia do mar Tenebroso e no Descobrimento. Considerando os dois blocos, nossa história tem vários pontos de origem: começa ou aqui mesmo na América, ou na África, ou na Europa, e a idéia do encontro das três raças, com matizes e ênfases diversos, se destaca. Vale observar a tendência a integrar os negros dentro da história pós-colonial e a de situar os índios na nossa origem remota. Notável é também a ausência da Independência no conjunto dos episódios políticos selecionados. E, incrível, é a popularidade da Princesa Isabel, que chega ao ano 2000 vencendo o teste do enredo crítico da Mangueira, baseado nas oposições rico x pobre, negro x branco. No desfile, ao enredo e ao samba se sobrepõe ainda a multiplicidade das mensagens visuais das alegorias e das fantasias. Com elas, o enredo ganha excepcional abertura de sentido, e o processo da carnavalização se completa. A letra de um samba pode cantar a harmonia, ao passo que um carro alegórico sugere visualmente o conflito, ou vice-versa. Aqui se exerce o talento dos carnavalescos.

Índios festeiros
A Grande Rio, por exemplo, falava dos índios festeiros que receberam os portugueses. Entretanto o abre-alas de Max Lopes acoplava, à representação da primeira missa, uma grande alegoria da floresta que subvertia essa idéia. Casais índios nada românticos, entre agressivos e assustados, nos inquiriam imóveis, com olhos penetrantes realçados pela pintura corporal. A Beija-Flor, cujo samba homenageou o negro como "o braço forte que ergueu nosso país", representou sua chegada com um tenebroso navio negreiro, digno de Castro Alves. Negros acorrentados formavam o pano das velas da caravela. No convés, arrastando-se entre sofridos gemidos, eles tentavam escapar aos horrores da chibata do algoz branco. Na parte traseira do carro/galera, assistimos perplexos e incomodados a uma encenação que sugeria o estupro de uma jovem negra por três marinheiros. De quando em quando, a jovem debruçava-se sobre a murada suplicando socorro.
Renato Lage, por sua vez, no carro abre-alas da Mocidade, acentuava o caráter onírico do enredo cósmico e eminentemente visual: a nave indígena-sideral, que nos conduzia no desfile, era um belíssimo carro com leves estruturas prateadas, pontilhadas por quadrados de luzes neon piscando nas cores da bandeira. Essas estruturas sustentavam integrantes do grupo circense Intrépida Trupe, os índios cibernéticos que, também em prateado, executavam malabarismos em câmera lenta.
E a campeã Imperatriz Leopoldinense? Magnífica. Um samba quente, com o mote da marchinha de Lamartine Babo -"Foi seu Cabral quem descobriu o Brasil, dois meses depois do Carnaval"-, cantava a nossa "terra iluminada", e "o branco, o negro e o índio, no encontro a origem da nação". As alegorias, entretanto, contrapunham-se à ênfase ufanista do samba.
Rosa Magalhães, com esmero barroco característico, elaborou um visual exótico. Relativos ao "ouro da África" e às "especiarias da Índia", os carros traziam sedas coloridas, deuses, templos e marajás hindus ou marfins, ouro, búzios, girafas e elefantes. Na caravela do luxuoso seu Cabral, os tripulantes tropeçavam bêbados ou enjoados, atirando camundongos ao mar, e no porão degredados sambavam atrás de grades.
Na sobreposição dançada do samba ao visual, a excitação dos sentidos chega ao paroxismo, tamanha a quantidade de informações simultâneas e sucessivas. Excitação quase extática, estimulada pela poderosa pulsação da bateria e moderada pela repetição do samba-enredo, que coordena, ensina, ativa o corpo e, no limite, supera a exaustão. A impiedosa cronometragem define a festa como uma disputa dentro da qual cada escola dispõe de segmentos temporais formalmente idênticos. A excepcionalidade desse tempo tão precioso quanto efêmero acentua-se: no desfile cada minuto é pleno de fruição e desempenho, e passa inexoravelmente. Já passou, lá se foi a marcante e insólita folia patriota.


Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti é antropóloga, autora de "O Rito e o Tempo - Ensaios sobre o Carnaval" (Civilização Brasileira) e "Carnaval Carioca -Dos Bastidores ao Desfile" (Funarte/Ed UFRJ).


Texto Anterior: Jurandir Freire Costa: A ansiedade da opulência
Próximo Texto: + memória - José Roberto de Andrade: O modernista esquecido
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.