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No desfile da Marquês de Sapucaí a letra de um samba pode cantar a harmonia, ao passo que um carro alegórico sugere visualmente o conflito, ou vice-versa
O divórcio entre o samba e a alegoria
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
especial para a Folha
O desfile carnavalesco é fluxo. Fluxo
de corpos que dançam, cantam, batucam, trocam o dia pela noite, a rotina
pela festa. Corpos de todos os tipos e formas, esbeltos e sensuais, magros e gordos, bonitos e feios. Todo mundo pode
ter aqui a sua vez e a sua hora, seu encontro pessoal com a inesquecível experiência da folia. Ao mesmo tempo, o desfile é
padrão e regularidade, pois é preciso
preencher de sentido coletivo esse fragmento especial de tempo. Em cada noite,
as escolas de samba reproduzem o modelo estético consagrado ao longo do século 20 -contar um enredo anualmente
variado em forma de samba e visual.
Festas associadas
Pois neste ano
2000, a celebração carnavalesca associou-se oficialmente a outra celebração, a
dos 500 anos do descobrimento do Brasil, e todas as escolas do grupo especial
trouxeram como enredo temas da história do país. Em São Paulo, etapas cronologicamente alinhadas foram sorteadas
entre as escolas. No Rio de Janeiro, 21 tópicos históricos foram propostos e livremente escolhidos pelas 14 escolas.
Esse debruçar-se do rito sobre a história do Brasil revela o fascinante processo
de criação coletiva empreendido pela
festa. No reinado de Momo, a história é
triturada pelo inexorável trabalho do rito
e reconstruída a partir da ótica e das regras características de um tempo extraordinário. A palavra e os fatos, na luta
da memória com o esquecimento, submetem-se à lógica do mito e da carnavalização. Essa "trituração" criativa ocorre
ao longo do intrincado ciclo de preparo
anual do desfile.
Tudo começa com a natureza ficcional
do enredo de escola de samba, que comunica de modo surpreendente conhecimento erudito e cultura popular. Cada
enredo, por sua vez, fornece a base para a
confecção de inúmeros sambas. Dessas
diversas leituras de um mesmo enredo,
produzidas em forma de samba pelos
compositores de cada escola, apenas
uma alcançará o público amplo: o samba
campeão a ser cantado no desfile.
No conjunto carioca, duas concepções
de história forneceram como que dois
pólos em torno dos quais se alinharam
os enredos e sambas. A primeira elegeu
episódios e fatos caracterizadores de
marcos da história nacional (e compareceram nas bibliografias dos enredos autores como José Murilo de Carvalho, Fernando Henrique Cardoso, Helio Silva,
Alzira Vargas Peixoto, Edgard Carone,
Angela de Castro, Nelson Werneck Sodré, Capristano de Abreu, Rocha Pombo, Eduardo Silva, Jorge Caldeira, entre
outros).
A Acadêmicos do Salgueiro cantou a
vinda da família real portuguesa para o
Brasil e a elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal e Algarves. A Mangueira, o
lado negro e popular do Segundo Império em sua homenagem a Dom Obá, que
viu, em seu delírio, "no morro da Mangueira/ sambar de Porta-Bandeira a
Princesa Isabel". A Unidos do Porto da
Pedra, a proclamação da República e "os
republicanos que buscaram na França
idéias para o Brasil mudar e, sem se importar com o apoio do povo, poder queriam conquistar". A Tradição, o negro e
seus costumes no Rio de Janeiro do século 19; a Portela, a era Vargas -"apesar da
censura, não existe mal sem cura, viva o
trabalhador!"; a Caprichosos de Pilares e
a União da Ilha, a ditadura militar de
1964.
A segunda idéia de história elegeu o fato original do Descobrimento como
ponto de partida rumo às idéias de origem e ancestralidade na formação do
povo (e a bibliografia trouxe, além de enciclópédias, manuais e da carta de Caminha, clássicos do folclore, da antropologia, do pensamento social: Luis da Câmara Cascudo, Edison Carneiro, Roger
Bastide, Arthur Ramos, Manuel Querino, João do Rio, Nina Rodrigues, Berta
Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda).
Situam-se aqui a Vila Isabel, cantando
o Brasil antes do Descobrimento, inspirada na imagem romântica do índio associado à pureza da natureza; e o conjunto das escolas que elegeram o próprio
Descobrimento. A Unidos da Tijuca enfatizou o encontro nativos/portugueses,
com a travessia, a descoberta, a carta e a
primeira missa. A Mocidade brincou
com a idéia de passado, presente e futuro. Aborígenes cibernéticos, índios que
partiram da Terra Brasilis, voltavam do
futuro 500 anos depois. Com eles, percorremos o território nacional pintado
nas cores da bandeira.
A Viradouro começou seu Carnaval
"na era medieval", contrastando diferentes paraísos e infernos -o medieval, o
dos índios, o dos negros. A Grande Rio
englobou a travessia, o Descobrimento e
a primeira missa com seu "carnaval à vista", pois os índios já festejavam antes da
chegada dos portugueses. A Beija-Flor,
num enredo de fundo espírita, associou a
descoberta a outras invasões, e viu na
união das três raças em nossa história
um "fato muito antes planejado nas mais
altas esferas astrais". Finalmente, a bicampeã Imperatriz Leopoldinense deteve-se também nas grandes navegações,
na travessia do mar Tenebroso e no Descobrimento.
Considerando os dois blocos, nossa
história tem vários pontos de origem: começa ou aqui mesmo na América, ou na
África, ou na Europa, e a idéia do encontro das três raças, com matizes e ênfases
diversos, se destaca. Vale observar a tendência a integrar os negros dentro da história pós-colonial e a de situar os índios
na nossa origem remota. Notável é também a ausência da Independência no
conjunto dos episódios políticos selecionados. E, incrível, é a popularidade da
Princesa Isabel, que chega ao ano 2000
vencendo o teste do enredo crítico da
Mangueira, baseado nas oposições rico x
pobre, negro x branco.
No desfile, ao enredo e ao samba se sobrepõe ainda a multiplicidade das mensagens visuais das alegorias e das fantasias. Com elas, o enredo ganha excepcional abertura de sentido, e o processo da
carnavalização se completa. A letra de
um samba pode cantar a harmonia, ao
passo que um carro alegórico sugere visualmente o conflito, ou vice-versa. Aqui
se exerce o talento dos carnavalescos.
Índios festeiros
A Grande Rio, por
exemplo, falava dos índios festeiros que
receberam os portugueses. Entretanto o
abre-alas de Max Lopes acoplava, à representação da primeira missa, uma
grande alegoria da floresta que subvertia
essa idéia. Casais índios nada românticos, entre agressivos e assustados, nos inquiriam imóveis, com olhos penetrantes
realçados pela pintura corporal. A Beija-Flor, cujo samba homenageou o negro
como "o braço forte que ergueu nosso
país", representou sua chegada com um
tenebroso navio negreiro, digno de Castro Alves. Negros acorrentados formavam o pano das velas da caravela. No
convés, arrastando-se entre sofridos gemidos, eles tentavam escapar aos horrores da chibata do algoz branco. Na parte
traseira do carro/galera, assistimos perplexos e incomodados a uma encenação
que sugeria o estupro de uma jovem negra por três marinheiros. De quando em
quando, a jovem debruçava-se sobre a
murada suplicando socorro.
Renato Lage, por sua vez, no carro
abre-alas da Mocidade, acentuava o caráter onírico do enredo cósmico e eminentemente visual: a nave indígena-sideral, que nos conduzia no desfile, era um
belíssimo carro com leves estruturas
prateadas, pontilhadas por quadrados de
luzes neon piscando nas cores da bandeira. Essas estruturas sustentavam integrantes do grupo circense Intrépida Trupe, os índios cibernéticos que, também
em prateado, executavam malabarismos
em câmera lenta.
E a campeã Imperatriz Leopoldinense?
Magnífica. Um samba quente, com o
mote da marchinha de Lamartine Babo
-"Foi seu Cabral quem descobriu o
Brasil, dois meses depois do Carnaval"-, cantava a nossa "terra iluminada", e "o branco, o negro e o índio, no encontro a origem da nação". As alegorias,
entretanto, contrapunham-se à ênfase
ufanista do samba.
Rosa Magalhães, com esmero barroco
característico, elaborou um visual exótico. Relativos ao "ouro da África" e às "especiarias da Índia", os carros traziam sedas coloridas, deuses, templos e marajás
hindus ou marfins, ouro, búzios, girafas
e elefantes. Na caravela do luxuoso seu
Cabral, os tripulantes tropeçavam bêbados ou enjoados, atirando camundongos
ao mar, e no porão degredados sambavam atrás de grades.
Na sobreposição dançada do samba ao
visual, a excitação dos sentidos chega ao
paroxismo, tamanha a quantidade de informações simultâneas e sucessivas. Excitação quase extática, estimulada pela
poderosa pulsação da bateria e moderada pela repetição do samba-enredo, que
coordena, ensina, ativa o corpo e, no limite, supera a exaustão. A impiedosa
cronometragem define a festa como uma
disputa dentro da qual cada escola dispõe de segmentos temporais formalmente idênticos. A excepcionalidade
desse tempo tão precioso quanto efêmero acentua-se: no desfile cada minuto é
pleno de fruição e desempenho, e passa
inexoravelmente. Já passou, lá se foi a
marcante e insólita folia patriota.
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti é antropóloga, autora de "O Rito e o Tempo - Ensaios sobre o
Carnaval" (Civilização Brasileira) e "Carnaval Carioca -Dos Bastidores ao Desfile" (Funarte/Ed UFRJ).
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