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Ponto de fuga
O Paraíso e os primitivos
Jorge Coli
especial para a Folha
Esplêndida a exposição que se encerrou há pouco na Pinacoteca do Estado, em São Paulo. Enfocava setores
bem diversos da arte sacra no Brasil:
bustos-relicários que saíram da catedral de Salvador; telas vinculadas à
igreja do Bonfim; imagens de santos e
pratarias existentes em São Paulo desde o século 17. Belas obras que, na sua
maioria, viajam muito raramente.
A coerência da mostra não derivou
de um projeto claramente intencional. Ela veio antes de uma mise-en-scène eloquente, como a Pinacoteca
vem fazendo, muito bem, já há algum
tempo. Nela, a intimidade entre os
objetos fluía pelo percurso, revelando
um certo parentesco. Quase todos
possuem um caráter que pode ser
chamado de "primitivo", no melhor e
mais sofisticado sentido da palavra:
basta ver os leões "chineses" do Embu, as Nossas Senhoras "afro" de Batatuba ou de Guararema. Algumas
pratarias vieram talvez da Europa.
Não importa: todas são carregados
por um luxo "primitivo" de religiosidade ostentatória.
Os pintores -mesmo o maravilhoso Franco Velasco, que modela em
dourados luminosos e cuja pincelada
tem a desenvoltura dos tempos de
Fragonard- são todos tardios: eles
prolongam, em pleno século 19, as
técnicas do último barroco, com um
certo desajeitamento saboroso. De
maneira impressionante, os bustos-relicários variam a calma extática dos
olhos abertos. Contemplam um céu
arcaico que, de certo, hoje já não existe mais.
Perfume exótico - Detestado pela
crítica e odiado pelos ecologistas, "A
Praia", de Danny Boyle, é, de fato, um
filme descosturado, com personagens
sem profundidade. Tanto que Leonardo DiCaprio transmuta-se facilmente num boneco de videogame.
Mas, talvez, seu acesso seja por uma
outra porta. Boyle parece não ter uma
alta idéia da humanidade, capaz de
"fagocitar" a tudo e a si próprio. Não
que haja denúncia ou alguma utopia
possível. Há algo, com o perdão da
palavra, de baudelairiano. O lixo moderno invade e contamina sem limites. O único lugar do paraíso desejado
("Uma ilha preguiçosa onde a natureza oferece/ Árvores singulares e frutos
saborosos") é o desejo dos inquietos:
Baudelaire sonha sua ilha no colo da
amada, numa viagem sem embarque.
Nada das velhas ilusões rousseaunianas ou hippies: o mochileiro de
hoje encontra Shangri-la e seu avesso.
No final, volta para um refúgio, que
não é o colo da amada, mas o colo da
Internet. O diretor tem prazer nessa
perversão amarga e, é verdade, o espectador também. Sintoma dentro e
fora da ficção, ao realizar o Éden impossível, dissemina-se o inferno -a
própria produção do filme, comprometendo uma reserva natural na Tailândia, é a prova.
Whodunit? - Em "Dogma", os personagens valem mais que o filme. Em
"O Colecionador de Ossos", de Phillip
Noyce, o filme vale muito mais que
seus personagens esquemáticos. Foi
considerado um sub-"Silêncio dos
Inocentes", um sub-"Seven". Ele superpõe antes Sherlock Holmes a Nero
Wolf, projetando o raciocínio abstrato entre passado e presente, no qual o
corpo, num sentido muito concreto,
insere-se em relações que produziram
uma ocultada história da cidade. Tudo -pessoas, locais, objetos, livros,
computadores- ramifica-se e prolonga-se em natureza orgânica.
Ginga - Já há muitos anos, Arthur
Moreira Lima gravava Ernesto Nazareth, em interpretações de sutileza
etérea. Era uma revelação: o velho
pianeiro se sofisticava. Mas com o ganho vinha também uma perda. Basta
compará-lo com o CD de Eudóxia de
Barros (Paulinas/Comep), "Este Brasil que Eu Amo". Ele trás de volta um
som carnudo e sensual, um sentido
saboroso do ritmo, que dá corpo a
obras de Nazareth e de alguns outros.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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