São Paulo, domingo, 19 de março de 2000


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Ponto de fuga

O Paraíso e os primitivos

Jorge Coli
especial para a Folha

Esplêndida a exposição que se encerrou há pouco na Pinacoteca do Estado, em São Paulo. Enfocava setores bem diversos da arte sacra no Brasil: bustos-relicários que saíram da catedral de Salvador; telas vinculadas à igreja do Bonfim; imagens de santos e pratarias existentes em São Paulo desde o século 17. Belas obras que, na sua maioria, viajam muito raramente.
A coerência da mostra não derivou de um projeto claramente intencional. Ela veio antes de uma mise-en-scène eloquente, como a Pinacoteca vem fazendo, muito bem, já há algum tempo. Nela, a intimidade entre os objetos fluía pelo percurso, revelando um certo parentesco. Quase todos possuem um caráter que pode ser chamado de "primitivo", no melhor e mais sofisticado sentido da palavra: basta ver os leões "chineses" do Embu, as Nossas Senhoras "afro" de Batatuba ou de Guararema. Algumas pratarias vieram talvez da Europa. Não importa: todas são carregados por um luxo "primitivo" de religiosidade ostentatória.
Os pintores -mesmo o maravilhoso Franco Velasco, que modela em dourados luminosos e cuja pincelada tem a desenvoltura dos tempos de Fragonard- são todos tardios: eles prolongam, em pleno século 19, as técnicas do último barroco, com um certo desajeitamento saboroso. De maneira impressionante, os bustos-relicários variam a calma extática dos olhos abertos. Contemplam um céu arcaico que, de certo, hoje já não existe mais.

Perfume exótico - Detestado pela crítica e odiado pelos ecologistas, "A Praia", de Danny Boyle, é, de fato, um filme descosturado, com personagens sem profundidade. Tanto que Leonardo DiCaprio transmuta-se facilmente num boneco de videogame. Mas, talvez, seu acesso seja por uma outra porta. Boyle parece não ter uma alta idéia da humanidade, capaz de "fagocitar" a tudo e a si próprio. Não que haja denúncia ou alguma utopia possível. Há algo, com o perdão da palavra, de baudelairiano. O lixo moderno invade e contamina sem limites. O único lugar do paraíso desejado ("Uma ilha preguiçosa onde a natureza oferece/ Árvores singulares e frutos saborosos") é o desejo dos inquietos: Baudelaire sonha sua ilha no colo da amada, numa viagem sem embarque.
Nada das velhas ilusões rousseaunianas ou hippies: o mochileiro de hoje encontra Shangri-la e seu avesso. No final, volta para um refúgio, que não é o colo da amada, mas o colo da Internet. O diretor tem prazer nessa perversão amarga e, é verdade, o espectador também. Sintoma dentro e fora da ficção, ao realizar o Éden impossível, dissemina-se o inferno -a própria produção do filme, comprometendo uma reserva natural na Tailândia, é a prova.

Whodunit? - Em "Dogma", os personagens valem mais que o filme. Em "O Colecionador de Ossos", de Phillip Noyce, o filme vale muito mais que seus personagens esquemáticos. Foi considerado um sub-"Silêncio dos Inocentes", um sub-"Seven". Ele superpõe antes Sherlock Holmes a Nero Wolf, projetando o raciocínio abstrato entre passado e presente, no qual o corpo, num sentido muito concreto, insere-se em relações que produziram uma ocultada história da cidade. Tudo -pessoas, locais, objetos, livros, computadores- ramifica-se e prolonga-se em natureza orgânica.

Ginga - Já há muitos anos, Arthur Moreira Lima gravava Ernesto Nazareth, em interpretações de sutileza etérea. Era uma revelação: o velho pianeiro se sofisticava. Mas com o ganho vinha também uma perda. Basta compará-lo com o CD de Eudóxia de Barros (Paulinas/Comep), "Este Brasil que Eu Amo". Ele trás de volta um som carnudo e sensual, um sentido saboroso do ritmo, que dá corpo a obras de Nazareth e de alguns outros.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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