São Paulo, domingo, 19 de março de 2000


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O Mais! publica, com exclusividade, um trecho de "Fábulas da Identidade ", do crítico canadense Northrop Frye, que está sendo lançado neste mês pela Nova Alexandria
Os arquétipos da literatura

Northrop Frye

Algumas artes se movem no tempo, como a música; outras são apresentadas no espaço, como a pintura. Em ambos os casos, o princípio organizador é a recorrência, que é chamada de ritmo quando é temporal, e padrão, quando é espacial. Assim, falamos do ritmo da música e do padrão da pintura: mas depois, para exibir nossa sofisticação, podemos começar a falar em ritmo da pintura e padrão da música. Em outras palavras, todas as artes podem ser concebidas tanto temporal quanto espacialmente. A partitura de uma composição musical pode ser estudada toda de uma vez; um quadro pode ser visto como trilha de uma intrincada dança do olho. A literatura parece ser intermediária entre a música e a pintura: suas palavras formam ritmos que se aproximam de uma sequência musical de sons numa de suas fronteiras e formam padrões que se aproximam da imagem pictórica ou hieroglífica na outra. As tentativas de se chegar tão próximo quanto possível dessas fronteiras formam o corpo principal daquilo que se chama de escrita experimental. Podemos chamar o ritmo da literatura de narrativa, e o padrão, a apreensão mental simultânea da estrutura verbal, de significado ou de significação. Ouvimos e escutamos uma narrativa, mas quando compreendemos o padrão total de um escritor "vemos" o que ele quer dizer.
A crítica da literatura é muito mais dificultada pela falácia representacional do que até mesmo a crítica da pintura. Por isso, estamos inclinados a pensar na narrativa como uma representação sequencial de acontecimentos numa "vida" exterior e no significado como um reflexo de alguma "idéia" externa. Usados adequadamente como termos críticos, a narrativa de um autor é seu movimento linear; seu significado é a integridade de sua forma completa. Da mesma forma, uma imagem não é simplesmente uma réplica verbal de um objeto externo, mas qualquer unidade de uma estrutura verbal vista como parte de um padrão ou de um ritmo total. Até mesmo as letras com que o autor grafa suas palavras fazem parte de seu sistema de imagens, embora só em casos especiais (tal como a aliteração) elas exigiriam atenção crítica. Dessa forma, narrativa e significado tornam-se, respectivamente, para emprestar termos musicais, os contextos melódico e harmônico do sistema de imagens.
O ritmo, ou o movimento recorrente, se funda fortemente no ciclo natural e tudo na natureza que pensamos ter alguma analogia com obras de arte, como a flor ou a canção do pássaro, nasce a partir de uma profunda sincronização entre um organismo e os ritmos de seu meio ambiente, especialmente aquele do ano solar.
Entre os animais, algumas expressões de sincronização, como as danças de acasalamento dos pássaros, poderiam quase ser chamadas de rituais. Mas na vida humana, o ritual parece ser um certo esforço voluntário (daí o elemento mágico nele) de recapturar uma comunicação perdida com o ciclo natural. Um fazendeiro deve fazer sua colheita num certo período do ano, mas, porque isso é involuntário, a própria colheita não é exatamente um ritual. É a expressão deliberada de um desejo de sincronizar energias humanas e naturais naquele momento que produz as canções, os sacrifícios e os costumes populares da colheita que chamamos de ritual. No ritual, portanto, podemos encontrar a origem da narrativa, sendo o ritual uma sequência temporal de atos na qual o significado ou a significação consciente está latente: pode ser visto por um observador, mas é em grande parte ocultado dos próprios participantes. O impulso do ritual é em direção à narrativa pura que, se pudesse haver tal coisa, seria repetição automática e inconsciente. Deveríamos notar também a tendência regular do ritual de se tornar enciclopédico. Todas as recorrências importantes na natureza -o dia, as fases da lua, as estações e os solstícios do ano, as crises da existência do nascimento à morte- têm rituais vinculados a elas e a maioria das religiões superiores são equipadas com um corpo total definitivo de rituais que sugerem, se podemos dizer assim, a gama inteira de ações potencialmente significativas na vida humana.
Padrões imagéticos, por outro lado, ou fragmentos de significação, são oraculares na origem e derivam do momento epifânico -o lampejo de compreensão instantânea sem referência direta ao tempo-, cuja importância está indicada por Cassirer em "Mito e Linguagem". Quando os recebemos, na forma de provérbios, enigmas, mandamentos e contos populares etiológicos, já há um elemento considerável de narrativa neles. Também são enciclopédicos em tendência, construindo uma estrutura total de significação, ou doutrina, a partir de fragmentos aleatórios e empíricos. Assim como a narrativa pura seria um ato inconsciente, a significação pura seria um estado incomunicável de consciência, pois a comunicação começa por meio da construção da narrativa.
O mito é o poder central inspirador que dá significação arquetípica ao ritual e narrativa arquetípica ao oráculo. Consequentemente, o mito é o arquétipo, embora fosse conveniente dizer mito somente quando nos referimos à narrativa e arquétipo quando falamos de significação. No ciclo solar do dia, no ciclo sazonal do ano e no ciclo orgânico da vida humana, há um único padrão de significação, a partir do qual o mito constrói uma narrativa central em torno de uma figura que é em parte o sol, em parte fertilidade vegetativa e em parte um deus ou um ser humano arquetípico. A importância crucial desse mito foi imposta aos críticos literários, particularmente por Jung e Frazer, mas os vários livros agora disponíveis sobre ele não são sempre sistemáticos em sua abordagem, razão pela qual forneço o seguinte quadro de suas frases:
1. A frase da aurora, primavera e nascimento. Mitos do nascimento do herói, de restabelecimento e ressurreição, de criação e (porque as quatro fases constituem um ciclo) da derrota das forças das trevas, inverno e morte. Personagens subordinados: o pai e a mãe. O arquétipo do romanesco e da maior parte da poesia ditirâmbica e rapsódica.
2. A fase do zênite, verão e casamento ou triunfo. Mitos de apoteose, do casamento sagrado e da entrada no Paraíso. Personagens subordinados: o companheiro e a noiva. O arquétipo da comédia, pastoral e idílio.
3. A fase do crepúsculo, outono e morte. Mitos da queda, do deus que morre, de morte e sacrifício violentos e do isolamento do herói. Personagens subordinados: o traidor e a sereia. O arquétipo da tragédia e da elegia.
4. A fase das trevas, inverno e dissolução. Mitos do triunfo desses poderes; mitos de dilúvios e o retorno do caos, da derrota do herói, e mitos do Götterdämmerung. Personagens subordinados: o ogro e a bruxa. O arquétipo da sátira (veja, por exemplo, a conclusão de "The Dunciad").
A busca do herói tende também a assimilar o oracular e as estruturas verbais aleatórias, como podemos ver quando assistimos ao caos de lendas locais resultante de epifanias proféticas que se consolidam numa mitologia narrativa de deuses regionais. Na maioria das religiões superiores, isso, por sua vez, tornou-se o mesmo mito central de busca que emerge do ritual, assim como o mito do Messias tornou-se a estrutura narrativa dos oráculos do judaísmo. Um dilúvio local pode acidentalmente gerar um conto popular, mas uma comparação de histórias de dilúvio mostrará quão rapidamente tais contos tornam-se exemplos do mito da dissolução. Finalmente, a tendência, tanto do ritual quanto da epifania de se tornarem enciclopédicos se concretiza no corpo definitivo de mito que constitui as sagradas escrituras da religião. Essas sagradas escrituras são, consequentemente, os primeiros documentos que o crítico literário deve estudar para obter uma visão abrangente de seu assunto. Depois de ter entendido sua estrutura, ele pode descer dos arquétipos aos gêneros e ver como o drama emerge do aspecto ritual do mito e a lírica, de seu aspecto epifânico ou fragmentado, enquanto a épica leva avante a estrutura enciclopédica central.


Tradução de Sandra Vasconcelos


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