São Paulo, domingo, 19 de abril de 1998

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A FERIDA FRANCESA


Processo contra secretário-geral de polícia Maurice Papon, que autorizou a deportação de judeus na Segunda Guerra, expõe as relações ambíguas da França com o nazismo
RODRIGO AMARAL
de Paris

Foi uma novela de 17 anos, em que só os capítulos decisivos duraram quase seis meses, acompanhados por um longo debate na imprensa francesa e européia. No final, o julgamento de Maurice Papon, 87, condenado no último dia 2 a dez anos de prisão por ter colaborado com a deportação de judeus na Segunda Guerra, acabou deixando à mostra feridas da sociedade francesa que mais de meio século não foi capaz de curar.
O debate sobre o processo Papon tornou-se tanto mais grave depois dos recentes avanços eleitorais da Frente Nacional, o partido ultradireitista de Le Pen, que defende teses como a expulsão de imigrantes e a revisão do Holocausto.
Nada perturba mais o país do que o embaraçoso episódio do governo de Vichy, instalado após a derrota para a Alemanha de Adolf Hitler, em junho de 1940.
Na época, a França foi dividida em duas partes. Uma permaneceu sob ocupação nazista; na outra, conhecida como "França Livre", foi instalado o novo governo francês, na cidade de Vichy.
Mas o governo de Vichy, comandado pelo marechal Henri Philippe Pétain, herói da Primeira Guerra Mundial, nada fazia sem o beneplácito nazista. Pelo contrário, tomou decisões para adequar o país ao ideário de Hitler -como a restrição da liberdade aos judeus.
Também foram autorizadas deportações para os campos de concentração. É o caso de Papon, que foi secretário-geral da polícia de Bordeaux, subordinado ao governo de Vichy, de 1942 a 1944. No período, 1.590 judeus foram deportados da cidade, em oito comboios, para as mãos dos nazistas.
O caso representa bem a ambiguidade da reação da sociedade francesa diante do nazismo. Com o fim da guerra, em 1945, os partidários do governo de Vichy foram tachados pelo senso comum de colaboracionistas com o nazismo e até condenados pela Justiça.
Mas, em abril de 1944, Pétain foi recebido em triunfo em Paris. Menos de quatro meses antes da liberação da cidade, o símbolo máximo do colaboracionismo era popular na capital francesa. Em agosto de 1945, foi condenado à morte pelo governo oriundo da Resistência. Mais tarde, a pena foi comutada.
Mais do que outros julgamentos da guerra realizados na França, o processo Papon funcionou como um símbolo dessa ambiguidade. Afinal, após a guerra, Papon seguiu uma brilhante carreira no serviço público francês. Foi eleito deputado em pleno 1968 e, em 1978, oficialmente reconhecido como resistente ao nazismo, tornava-se ministro do Orçamento.
A trajetória foi interrompida três anos depois, quando o periódico satírico "Le Canard Enchaîné" trouxe um dossiê com revelações sobre as ações de Papon na guerra.
As querelas judiciais começaram em seguida, mas somente no fim de 1995 o Ministério Público de Bordeaux chegou à conclusão de que Papon deveria ser julgado pelas deportações. As audiências do processo começaram em outubro de 1997. Ele foi condenado a dez anos de prisão por cumplicidade em crime contra a humanidade, além de ter de pagar uma reparação a representantes das vítimas.
Mas Papon continua livre. No começo do processo, foi beneficiado por uma decisão da Justiça, que o manteve em liberdade devido a seu estado de saúde e idade. Como o processo agora vai ser apreciado pela corte de cassação, instância máxima do Judiciário francês, a decisão continua valendo. Talvez Papon nem venha a ser preso. Nesse caso, o final do processo terá também o seu simbolismo.



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