São Paulo, domingo, 19 de abril de 1998

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Do mesmo modo que afirma a culpa coletiva, o processo Papon a relega ao passado
A justiça do passado

JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

Durante seis meses a França oficial parece ter sido dominada por um único acontecimento: o processo movido contra Maurice Papon, antigo funcionário de Estado francês do marechal Pétain, por sua cumplicidade na captura, entre 1942 e 1944, de mulheres, crianças e homens judeus, desaparecidos nos campos de concentração. Esse processo teria podido restringir-se a um confronto simples. De um lado, os parentes dos deportados exigiam uma reparação pelo crime perpetrado contra seus familiares. De outro, um funcionário que cumprira sua função num Estado colaboracionista, sem fervor nem excesso de zelo. Ele assinara ordens de prisão e deportação que se achavam sob sua alçada, sem se empenhar pessoalmente em organizar a caça aos judeus nem saber o que era feito dos deportados. Uma pena de dez anos de prisão selou essa responsabilidade inegável e bem circunscrita.
Mas aqui a simplicidade dos fatos começa a turvar-se. Que relação de comensurabilidade existe entre dez anos de prisão infligidos -50 anos depois dos fatos- a um homem de 87 anos e o martírio daqueles que foram assassinados em massa nos campos de concentração? E por que um processo que não podia chegar a nenhum veredicto capaz de estabelecer uma proporção entre um indivíduo e o crime de massas assumiu tamanha importância?
Essa falta de proporção mostra, de início, a função singular que hoje desempenha o Poder Judiciário. Todo assunto político sobre o certo ou o errado, sobre a justiça ou a injustiça, adota a forma de um processo movido perante um tribunal, real ou imaginário. Ao mesmo tempo que os franceses, dia após dia, informavam-se do desenrolar do processo Papon, eles podiam contemplar nas vitrines das livrarias o "Livro Negro do Comunismo", envolto numa tira publicitária vermelha, que anunciava: "85 milhões de mortos".
Alguns contestaram as cifras: como cifrar exatamente as vítimas chinesas da fome? É certo computá-las como vítimas do comunismo, o mesmo título que os fuzilados ou os mortos nos campos? Mas esse não é o ponto principal. A função da cifra é mais judiciária do que estatística. De Volin a Solzhenitsyn, não faltaram homens para revelar os crimes dos regimes comunistas. Contudo, eles o faziam politicamente. Seu testemunho, como vítimas do comunismo, denunciava o regime em nome de um ideal político diferente -do anarquismo ou do "verdadeiro" comunismo ou da restauração da antiga ordem monárquica e religiosa. Hoje, trata-se de outra coisa: o cômputo dos mortos identifica-se a um tribunal da história que resolveu o litígio, que enuncia o veredicto não de um regime, mas de uma ideologia -quer dizer, de um tempo em que ainda se acreditava nas ideologias. O tribunal da história soma as cifras do presente às cifras de outro tempo, o de Volin e Solzhenitsyn ou de Lênin e Stálin: o tempo da política, em suma.
Pode-se dizer, de igual forma, que o processo Papon é um acerto de contas dos franceses com o Estado francês de Vichy e sua participação na empreitada de extermínio nazista. Com isso, o processo de um indivíduo transforma-se no processo do passado. Ele se identifica a um tribunal da história, encarregado de enunciar uma verdade capaz de, a uma só vez, afirmar a culpabilidade coletiva e trancafiá-la no passado, rompendo, enfim, o laço que nos prende à história. Os dez anos de prisão infligidos a um funcionário de Estado francês confirmam, de uma vez por todas, a culpa desse Estado como tal. Eles marcam, ao mesmo tempo, a distância que o transforma para nós em puro objeto de julgamento. Mas justamente essa equivalência é enganadora. Converter o processo de um funcionário em processo de seu Estado é um ato contraditório: acusá-lo, ao mesmo tempo, pelo que fez como funcionário desse Estado globalmente culpável e pelo que não fez, na condição de indivíduo: desobedecer ao Estado de que era funcionário.
Um funcionário, pela própria definição, serve ao Estado. Maurice Papon serviu ao Estado colaboracionista. Após o quê serviu à república do general De Gaulle. O Estado tem horror ao vazio, e a república gaullista buscou os servidores do Estado onde foi capaz de encontrá-los: entre os servidores do Estado que nada mais fizeram senão servir ao Estado em geral, sem excesso de zelo militante. Maurice Papon tornou-se, com isso, um servidor exemplar da República francesa, sobretudo ao comandar, em outubro de 1961, a repressão de uma manifestação argelina, no correr da qual várias dezenas de manifestantes foram mortos a pauladas e lançados no Sena.
Esse último crime de Estado não constava da pauta do processo; se chegou a ser invocado, ele o foi apenas nos limites de um silogismo significativo: como ele cometeu esse crime de nosso Estado republicano, que ninguém cogita em levar a juízo, é bem possível que tenha cometido um outro -o do Estado colaboracionista. O fato de que tenha sido um bom servidor de nosso Estado republicano prova a sua incapacidade em geral de não servir ao Estado e, portanto, o seu envolvimento no crime daquele a que servia em 1942.
Há de se acreditar, então, que o processo movido contra Papon é o processo do Estado em geral e daqueles que não logram desobedecê-lo? E o tribunal da história, ao infligir os dez anos de prisão à razão de Estado, teria decidido em favor do "direito à desobediência", cuja legitimidade é a cruz dos filósofos políticos? O fato seria bastante estranho se nos reportássemos ao que ocorria, no mesmo dia do veredicto, num aeroporto parisiense: alguns passageiros do vôo Paris-Bamako recusavam-se a viajar em companhia de trabalhadores clandestinos, que o Ministério do Interior francês remetia à força a seu país de origem. O ministro logo anunciou sua intenção de processar esses passageiros recalcitrantes, por "entrave à circulação das aeronaves".
É pouco provável, portanto, que o tribunal tenha desejado, por seu veredicto, consagrar o direito de desobedecer. A condenação do servidor demasiado fiel do Estado remete, em vez disso, à obrigação de desobedecer no passado: não somente no contexto repressivo do Estado de Vichy, mas num tempo em que obedecer e desobedecer tinham um sentido. Ela nos diz: naquele tempo, obedecer ou desobedecer era uma escolha dos indivíduos. Ela nos remete, em suma, à atmosfera da época existencialista. Naquele tempo, Sartre era capaz de pronunciar a frase que suscitou tanto escândalo e tanto alarde: "Jamais fomos tão livres quanto sob a ocupação alemã". Era o tempo do engajamento e da responsabilidade, em que cada um decidia "por todos" e era "responsável de tudo perante todos". A conjunção entre a condenação (no passado) do tribunal e as ameaças (no presente) do ministro do Interior rechaçam esse tempo para seu lugar no passado. Hoje, obedecer ou desobedecer ao Estado não é mais um problema. Não apenas porque o Estado é legítimo, mas porque, de forma mais profunda, ele pretende não desejar mais nada, não ser mais que o humilde executor de uma necessidade impessoal. No Estado que nada comanda e só obedece à circulação dos fluxos, que sentido haveria em desobedecer? No tempo de Platão, o sofista Antífon contrapusera a justiça da natureza à da lei, segundo este princípio bem simples: aquele que infringe a lei só será castigado se for visto. Mas aquele que vai contra a natureza suportará o castigo em toda sua força. É essa lógica, em suma, que nossos Estados retomaram sob seus auspícios: eles nos dizem que as suas regras são apenas a obediência às leis naturais da circulação bem equilibrada das riquezas e das populações. Os passageiros que, naquele dia, se recusaram a seguir para Bamako, tornaram-se culpados, perante o Estado francês, de uma rebelião que não é nem mais nem menos do que "um entrave à circulação das aeronaves".
Assim se opera o acerto de contas com o passado: a desobediência teve seu tempo: aquele em que os indivíduos se opunham à vontade de outros indivíduos ou de Estados -o tempo, enfim, da política e das ideologias. A justiça saúda esse tempo e nos faz saber que ele passou. De alguma forma, o veredicto do processo Papon é uma cerimônia de adeus ao existencialismo.


Jacques Rancière é filósofo francês, autor de "A Noite dos Proletários" (Companhia das Letras) e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele é colaborador da Folha, na qual escreve a cada dois meses no Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.



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