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Do mesmo modo que afirma a culpa coletiva, o processo
Papon a relega ao passado
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A justiça do passado
JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha
Durante seis meses a França oficial parece ter sido dominada por
um único acontecimento: o processo movido contra Maurice Papon, antigo funcionário de Estado
francês do marechal Pétain, por
sua cumplicidade na captura, entre 1942 e 1944, de mulheres,
crianças e homens judeus, desaparecidos nos campos de concentração. Esse processo teria podido
restringir-se a um confronto simples. De um lado, os parentes dos
deportados exigiam uma reparação pelo crime perpetrado contra
seus familiares. De outro, um funcionário que cumprira sua função
num Estado colaboracionista, sem
fervor nem excesso de zelo. Ele assinara ordens de prisão e deportação que se achavam sob sua alçada, sem se empenhar pessoalmente em organizar a caça aos judeus
nem saber o que era feito dos deportados. Uma pena de dez anos
de prisão selou essa responsabilidade inegável e bem circunscrita.
Mas aqui a simplicidade dos fatos começa a turvar-se. Que relação de comensurabilidade existe
entre dez anos de prisão infligidos
-50 anos depois dos fatos- a um
homem de 87 anos e o martírio daqueles que foram assassinados em
massa nos campos de concentração? E por que um processo que
não podia chegar a nenhum veredicto capaz de estabelecer uma
proporção entre um indivíduo e o
crime de massas assumiu tamanha
importância?
Essa falta de proporção mostra,
de início, a função singular que
hoje desempenha o Poder Judiciário. Todo assunto político sobre o
certo ou o errado, sobre a justiça
ou a injustiça, adota a forma de
um processo movido perante um
tribunal, real ou imaginário. Ao
mesmo tempo que os franceses,
dia após dia, informavam-se do
desenrolar do processo Papon,
eles podiam contemplar nas vitrines das livrarias o "Livro Negro do
Comunismo", envolto numa tira
publicitária vermelha, que anunciava: "85 milhões de mortos".
Alguns contestaram as cifras: como cifrar exatamente as vítimas
chinesas da fome? É certo computá-las como vítimas do comunismo, o mesmo título que os fuzilados ou os mortos nos campos?
Mas esse não é o ponto principal.
A função da cifra é mais judiciária
do que estatística. De Volin a Solzhenitsyn, não faltaram homens
para revelar os crimes dos regimes
comunistas. Contudo, eles o faziam politicamente. Seu testemunho, como vítimas do comunismo, denunciava o regime em nome de um ideal político diferente
-do anarquismo ou do "verdadeiro" comunismo ou da restauração da antiga ordem monárquica e
religiosa. Hoje, trata-se de outra
coisa: o cômputo dos mortos identifica-se a um tribunal da história
que resolveu o litígio, que enuncia
o veredicto não de um regime,
mas de uma ideologia -quer dizer, de um tempo em que ainda se
acreditava nas ideologias. O tribunal da história soma as cifras do
presente às cifras de outro tempo,
o de Volin e Solzhenitsyn ou de
Lênin e Stálin: o tempo da política,
em suma.
Pode-se dizer, de igual forma,
que o processo Papon é um acerto
de contas dos franceses com o Estado francês de Vichy e sua participação na empreitada de extermínio nazista. Com isso, o processo
de um indivíduo transforma-se no
processo do passado. Ele se identifica a um tribunal da história, encarregado de enunciar uma verdade capaz de, a uma só vez, afirmar
a culpabilidade coletiva e trancafiá-la no passado, rompendo, enfim, o laço que nos prende à história. Os dez anos de prisão infligidos a um funcionário de Estado
francês confirmam, de uma vez
por todas, a culpa desse Estado como tal. Eles marcam, ao mesmo
tempo, a distância que o transforma para nós em puro objeto de
julgamento. Mas justamente essa
equivalência é enganadora. Converter o processo de um funcionário em processo de seu Estado é
um ato contraditório: acusá-lo, ao
mesmo tempo, pelo que fez como
funcionário desse Estado globalmente culpável e pelo que não fez,
na condição de indivíduo: desobedecer ao Estado de que era funcionário.
Um funcionário, pela própria
definição, serve ao Estado. Maurice Papon serviu ao Estado colaboracionista. Após o quê serviu à república do general De Gaulle. O
Estado tem horror ao vazio, e a república gaullista buscou os servidores do Estado onde foi capaz de
encontrá-los: entre os servidores
do Estado que nada mais fizeram
senão servir ao Estado em geral,
sem excesso de zelo militante.
Maurice Papon tornou-se, com isso, um servidor exemplar da República francesa, sobretudo ao comandar, em outubro de 1961, a repressão de uma manifestação argelina, no correr da qual várias dezenas de manifestantes foram
mortos a pauladas e lançados no
Sena.
Esse último crime de Estado não
constava da pauta do processo; se
chegou a ser invocado, ele o foi
apenas nos limites de um silogismo significativo: como ele cometeu esse crime de nosso Estado republicano, que ninguém cogita
em levar a juízo, é bem possível
que tenha cometido um outro -o
do Estado colaboracionista. O fato
de que tenha sido um bom servidor de nosso Estado republicano
prova a sua incapacidade em geral
de não servir ao Estado e, portanto, o seu envolvimento no crime
daquele a que servia em 1942.
Há de se acreditar, então, que o
processo movido contra Papon é o
processo do Estado em geral e daqueles que não logram desobedecê-lo? E o tribunal da história, ao
infligir os dez anos de prisão à razão de Estado, teria decidido em
favor do "direito à desobediência", cuja legitimidade é a cruz dos
filósofos políticos? O fato seria
bastante estranho se nos reportássemos ao que ocorria, no mesmo
dia do veredicto, num aeroporto
parisiense: alguns passageiros do
vôo Paris-Bamako recusavam-se a
viajar em companhia de trabalhadores clandestinos, que o Ministério do Interior francês remetia à
força a seu país de origem. O ministro logo anunciou sua intenção
de processar esses passageiros recalcitrantes, por "entrave à circulação das aeronaves".
É pouco provável, portanto, que
o tribunal tenha desejado, por seu
veredicto, consagrar o direito de
desobedecer. A condenação do
servidor demasiado fiel do Estado
remete, em vez disso, à obrigação
de desobedecer no passado: não
somente no contexto repressivo
do Estado de Vichy, mas num
tempo em que obedecer e desobedecer tinham um sentido. Ela nos
diz: naquele tempo, obedecer ou
desobedecer era uma escolha dos
indivíduos. Ela nos remete, em suma, à atmosfera da época existencialista. Naquele tempo, Sartre era
capaz de pronunciar a frase que
suscitou tanto escândalo e tanto
alarde: "Jamais fomos tão livres
quanto sob a ocupação alemã".
Era o tempo do engajamento e da
responsabilidade, em que cada um
decidia "por todos" e era "responsável de tudo perante todos". A
conjunção entre a condenação (no
passado) do tribunal e as ameaças
(no presente) do ministro do Interior rechaçam esse tempo para seu
lugar no passado. Hoje, obedecer
ou desobedecer ao Estado não é
mais um problema. Não apenas
porque o Estado é legítimo, mas
porque, de forma mais profunda,
ele pretende não desejar mais nada, não ser mais que o humilde
executor de uma necessidade impessoal. No Estado que nada comanda e só obedece à circulação
dos fluxos, que sentido haveria em
desobedecer? No tempo de Platão,
o sofista Antífon contrapusera a
justiça da natureza à da lei, segundo este princípio bem simples:
aquele que infringe a lei só será
castigado se for visto. Mas aquele
que vai contra a natureza suportará o castigo em toda sua força. É
essa lógica, em suma, que nossos
Estados retomaram sob seus auspícios: eles nos dizem que as suas
regras são apenas a obediência às
leis naturais da circulação bem
equilibrada das riquezas e das populações. Os passageiros que, naquele dia, se recusaram a seguir
para Bamako, tornaram-se culpados, perante o Estado francês, de
uma rebelião que não é nem mais
nem menos do que "um entrave à
circulação das aeronaves".
Assim se opera o acerto de contas com o passado: a desobediência teve seu tempo: aquele em que
os indivíduos se opunham à vontade de outros indivíduos ou de
Estados -o tempo, enfim, da política e das ideologias. A justiça
saúda esse tempo e nos faz saber
que ele passou. De alguma forma,
o veredicto do processo Papon é
uma cerimônia de adeus ao existencialismo.
Jacques Rancière é filósofo francês, autor de "A
Noite dos Proletários" (Companhia das Letras) e
"O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele é
colaborador da
Folha, na qual escreve a cada
dois meses no Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.
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