São Paulo, domingo, 19 de abril de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Heresia barroquizante

Associated Press
Salman Rushdie, autor de "Os Versos Satânicos", livro publicado em 1988 que está sendo lançado agora no Brasil




Profusão de imagens de "Os Versos Satânicos", de Rushdie, desorienta o leitor
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Este romance aparece traduzido no Brasil dez anos depois de publicado na Inglaterra e nove anos depois do célebre "fatwa" -o decreto do aiatolá Khomeini condenando à morte, por blasfêmia, seu autor. A curiosidade em torno do caso Rushdie certamente arrefeceu, e mais de um leitor haverá de olhar este grosso volume com alguma preguiça e ceticismo.
A perseguição do fanatismo islâmico -que obriga Salman Rushdie a levar até hoje uma vida clandestina- não deixou de ter efeitos paradoxais sobre a fama do romance. De um lado, o mundo inteiro já ouviu falar de "Os Versos Satânicos". Por outro lado, a superexposição jornalística do livro, quase que no sentido de reafirmar a censura muçulmana: de uma obra tão comentada e palpitante, duvidou-se que tivesse valor literário permanente. Valeria a pena, afinal, ler "Os Versos Satânicos" só porque despertou a cólera do aiatolá? Mas não lê-lo, exatamente por isso, não seria obedecer por via indireta à odiosa proibição?
O demônio da dúvida paira sobre nossas cabeças; desempenha também um papel importante no próprio enredo do romance. A começar pelo trecho que foi considerado herético pelas autoridades iranianas. É quando o profeta Mahound (ou Maomé) anuncia ao povo de Jahilia, a cidade de areia, novos versos no Alcorão. Fica permitido o culto a três deusas, Lat, Uzza e Manat: "Elas são os pássaros exaltados, e sua intercessão é de fato desejada". Certamente, uma brecha no monoteísmo islâmico.
Mas logo em seguida a dúvida assalta o profeta. Esses versos, que supunha terem sido ditados pelo arcanjo Gibreel, foram na verdade obra de Satã. Novo transe místico, e a heresia se dissipa. Mahound se convence de que o Diabo viera ter com ele na forma de arcanjo, "e portanto os versos que memorizara (...) não eram verdadeiros, mas o seu oposto diabólico, não divinos, mas satânicos. Ele volta à cidade o mais depressa que pode, para expurgar os versos infames que fedem a súlfur e a enxofre, para apagá-los por todo o sempre".
A heresia esboçada estaria, assim, sendo desfeita no próprio enredo do romance. Mas Rushdie faz aqui uma intervenção terrível, corruptora. Dá a palavra ao arcanjo Gibreel, que diz: "Fui eu as duas vezes: de minha boca, tanto a declaração quanto o repúdio, versos e conversos, universos e reversos, a coisa toda". O próprio arcanjo, que inspira o profeta, não é portanto muito confiável.
Parece pouco, em todo caso, para tanta celeuma e ranger de dentes. A um leigo, pelo menos, o texto de Rushdie não parece abertamente herético ou panfletário, mas sobretudo astucioso, desnorteante, ambíguo até a medula.
Basta, contudo, de discussões teológicas. O episódio dos encontros de Mahound com o arcanjo ocupa um décimo, se tanto, do livro; a maior parte da história se passa em Londres, e não nos desertos da Arábia. A reconstrução de um ambiente exótico, a entonação visionária, o "orientalismo" algo paródico ("Jahilia hoje é toda perfume. Os aromas ... pairam no ar: bálsamo, cássia, canela, incenso, mirra. Os peregrinos bebem o vinho da tamareira e passeiam pela grande feira do festival de Ibrahim"), a profusão de personagens e referências religiosas, tudo nesse trecho vai logo se tornando cansativo e não corresponde ao melhor do talento de Rushdie.
O romance está centrado na história meio fantástica, meio realista, de dois atores. Um, Gibreel Farishta, é um ídolo do cinema indiano. O outro, Saladin Chamcha, vive há anos em Londres, e graças a seu talento na imitação de sotaques e vozes, faz sucesso como dublador em desenhos animados de publicidade. Ambos caem de um avião, depois de um ataque terrorista. Sobrevivem miraculosamente. Logo transformações estranhas começam a ocorrer.
Uma auréola surge em torno da cabeça de Farishta: ele está virando um arcanjo. Saladin vê crescerem dois chifres em sua testa; olha para os pés, e encontra cascos de bode. Sim, para seu próprio horror, transmutou-se em demônio.
Este é o ponto de partida de "Os Versos Satânicos". A tendência do leitor contemporâneo será, provavelmente, torcer o nariz diante do recurso, tão desgastado, à narrativa fantástica. Rushdie não hesita em explorar as possibilidades do gênero: fantasmas escoceses, mulheres em tapete voador, Londres sob os efeitos de um clima tropical, enchentes milagrosas, virgens que se alimentam de borboletas, trompetes mágicos, enfim, toda a aparelhagem multicolorida e tediosa do delírio barroquizante é conjurada mais uma vez aqui.
Ocorre que o autor sabe opor, a essas visões sobrecarregadas, passagens de puro realismo. Conta, em "flashbacks", a vida dos dois protagonistas antes do acidente. E a imaginação de Rushdie parece mais exuberante nesses trechos. Cada personagem secundário que surge -uma alpinista apaixonada por Gibreel, a mulher inglesa de Saladin, um pregador antidarwinista, um produtor cinematográfico, um professor exilado e suas filhas que se dedicam às artes marciais- dá origem a narrativas paralelas, em que a riqueza da caracterização psicológica, a capacidade de criar surpresas e de gerar empatia no leitor atestam, para quem não estiver convencido, o grande talento deste romancista.
O que faz de "Os Versos Satânicos" um livro fascinante é justamente essa oscilação entre o realismo e o fantástico. Mais do que isto: o narrador não parece acreditar em nenhum dos dois registros que adota. Em que medida a transformação de Farishta em arcanjo é um delírio do personagem? Em que medida é "real"? Não sabemos ao certo. O ceticismo de Rushdie, se pareceu blasfemo ao clero islâmico, não deixa de solapar também o naturalismo, o bom senso, a boa e velha verossimilhança da tradição ocidental.
Tudo poderia ser visto como apenas mais um truque no mercado das inovações literárias, mas Rushdie claramente não parece estar investindo nisso. Ao oscilar dessa maneira, o romance na verdade reproduz, em sua forma, o tema mais profundo que o orienta. Trata-se da questão, bem contemporânea, aliás, da "identidade".
Não é que um personagem vire anjo e o outro, demônio simplesmente. Saladin Chamcha -o demônio- se vê num pesadelo, sem saber o que foi feito de si mesmo e sem dispor de poderes especiais que compensem sua perdição. Gibreel Farishta às vezes é o arcanjo que acredita ser; outras vezes, é apenas um louco que acredita ser arcanjo. A Londres de Rushdie parece situar-se num Terceiro Mundo relido por Charles Dickens. O Oriente, em alguns trechos, é uma cópia degradada da civilização capitalista; quando quer reencontrar-se, entretanto, é um inferno fanático e irracional.
Todas essas ambiguidades, num romance de grandes dimensões, profuso e detalhista, não raro desorientam o leitor. Quando menos se espera, a história envereda por um caso de amor no pampa argentino, ou pelas aventuras de um casal de escroques em Nova York; quando não volta à cidade de Jahilia, onde novos surtos de misticismo testarão a nossa perseverança. Mesmo o destino de Farishta e Saladin dá a impressão de ser insolúvel: não há, à primeira vista, saídas esteticamente persuasivas para a fantástica enrascada que o autor lhes armou.
Já se aproximando do final do livro, Rushdie se apieda um pouco do leitor desconcertado. Em que consiste essa oposição entre anjo e demônio? Na verdade, a oposição se dá entre Saladin, que quer passar por inglês, imita qualquer sotaque, nega seu passado indiano, desesperando-se com a transformação que sofreu, e um Farishta que, julgando-se arcanjo, quer transformar ele próprio o mundo inteiro. Gibreel Farishta, explica o autor, "sempre permaneceu contínuo -isto é, preso a seu passado e resultante dele... ele teme acima de tudo os estados alterados... de forma que o eu dele ainda é o que podemos descrever como verdadeiro... enquanto Saladin Chamcha é uma criatura de descontinuidades escolhidas, uma reinvenção voluntária; sendo a sua revolta intencional contra a história o que o torna... falso..., essa falsidade do eu é que possibilita a existência em Chamcha de uma falsidade pior e mais profunda que podemos chamar de mal".
O mal como descontinuidade, como desejo de interrupção..., mas essa descontinuidade é justamente o que afeta a estrutura do livro. Podemos ver no paradoxo uma última reviravolta deste romancista extremamente astucioso e irônico. Ironia satânica, talvez; mas com certa má vontade crítica podemos ver aqui outro sinal de uma intencionalidade um tanto pesada, também. E a longa explicação transcrita acima, com a qual o autor interrompe a narrativa numa espécie de desespero didático, tantos os fios que parecem soltos e cambiantes no romance, é ao mesmo tempo uma vitória do seu brilho intelectual e de seu excesso, de seu descontrole estético. Ficamos em dúvida; mas a graça está nisso mesmo.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.