São Paulo, domingo, 19 de abril de 1998

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Raízes do antijudaísmo da igreja se confundem com a origem do cristianismo
Cristãos e judeus

EDUARDO HOORNAERT
especial para a Folha

A recente declaração do Vaticano a respeito da atitude de "filhos e filhas da igreja" frente aos judeus durante a Segunda Guerra suscitou vivas reações nos meios rabínicos. E com razão. O texto é largamente insuficiente, pois não aprofunda a relação histórica entre judeus e cristãos, que toca no cerne da própria definição do cristianismo como religião. Para os cristãos, o ecumenismo com os judeus é o primeiro dos ecumenismos. Sem ele, o cristianismo permanece fechado em si mesmo.
Em primeiro lugar, e falando de forma estritamente histórica, é preciso dizer que até a década de 170 d.C. o cristianismo é uma dissidência no seio do judaísmo (1), uma das correntes de um judaísmo em processo de rabinização após os terríveis fatos do ano 70 -destruição do templo de Jerusalém- e os mais traumatizantes ainda do ano 135, quando, após sangrentos combates que custaram a vida de meio milhão de judeus, a Judéia deixou de existir como província do império. Os cristãos foram de tal modo atingidos por esses acontecimentos, que é preciso abandonar de vez o confuso termo judeu-cristianismo e substitui-lo pelo termo judaísmo cristão ou então seita cristã ou ainda dissidência cristã. A tese defendida por estudiosos cristãos até os anos 60, segundo a qual teria havido desde os inícios um cristianismo independente, cede paulatinamente diante das investigações dos últimos tempos, que estão dando uma crescente caraterização judaica não só à vida de Jesus, mas também às origens cristãs.
A razão pela qual os evangelhos são antijudaicos reside em grande parte na dinâmica do que se pode chamar de "afirmação presbiteral" dos anos 80 a 100, período de sua redação definitiva. Os presbíteros, na realidade "rabinos da dissidência", insistem nas diferenças, compram brigas com os rabinos ortodoxos, lutam por um espaço próprio. E, no meio da luta, mexem com textos, como por exemplo o relato da paixão de Jesus, responsabilizando o povo judeu pela morte de Jesus. As terríveis palavras "seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos" (Mateus 27, 25), até hoje não retiradas da liturgia da Semana Santa, dão a entender que o povo judeu teria "assassinado" Jesus, o que não corresponde à verdade, pois sabemos que Jesus foi condenado pelas autoridades romanas por meio de um tribunal romano, segundo procedimentos romanos.
Diversos trechos evangélicos relativos aos judeus, que foram interpretados de forma antijudaica, não significam desprezo da religião judaica em si, nem pressupõem o propósito de se formar uma religião independente. Assim como o termo judeu no evangelho de São João significa "os que não concordam com Jesus" (pois todos são judeus: Jesus, seus ouvintes e seus adversários), também o termo gentio em São Paulo pode ter o seguinte significado: "Os (judeus ou simpatizantes) que não praticam a circuncisão ou as restrições alimentares próprias do judaísmo ortodoxo, seja por viverem na diáspora (dispersão) ou por adotarem um estilo de vida helenístico, não mais estritamente palestino". Efetivamente, o cristianismo aproxima-se do judaísmo helenístico ou helenizante praticado por judeus que vivem fora da Palestina, principalmente em cidades grandes como Alexandria, Antioquia ou Roma, numa ampla diáspora. Esse helenismo não é bem visto aos olhos dos rabinos ortodoxos.
O apelo do filósofo romano Celso, na década de 170, no sentido de convidar os cristãos a dar sua contribuição na construção da sociedade romana, não encontra eco nas comunidades que ainda vivem no casulo judaico. Passam-se longos 70 anos antes que o teólogo cristão Orígenes finalmente responda, por volta de 245, e com imenso sucesso, que o imperador romano -e com ele a sociedade romana- entra no plano do único Deus dos judeus e dos cristãos. Orígenes simboliza o abandono do único referencial judaico, a abertura ao mundo amplo. O cristianismo aí espalha-se com tanta rapidez, que outro filósofo romano, Porfírio, apenas 20 anos mais tarde, declara que o cristianismo está presente "nos cantos mais afastados da terra habitada" e que a igreja está prestes a rivalizar com o próprio Estado.
Contudo, o sucesso do cristianismo não se deve principalmente à teologia, mas sim a fatores de ordem sociológica. Diante do desmantelo da antiga idéia de cidade pela presença de grupos sempre maiores de estrangeiros provenientes de toda parte -que migram de cidade em cidade e amedrontam os residentes, que se fecham em si-, a idéia cristã da caridade consegue criar novos laços, restabelecendo o tecido social. Eis um resultado do universalismo cristão, idéia advinda diretamente de Jesus e destoante da atitude mais particularista do judaísmo. Mas essa primeira vitória cristã acarreta uma crescente discriminação contra o povo judeu.
Praticamente todos os padres da igreja são antijudaicos, desde Orígenes e João Crisóstomo até Ambrósio e Agostinho. Na Idade Média cria-se uma síndrome antijudaica que perpassa toda a sociedade. Os judeus são considerados inimigos do Estado. E assim fica até os nossos dias. O anti-semitismo atual é uma sedimentação laicizada, mesclada de outros ingredientes ideológicos, do horror maniqueu dos judeus que o cristianismo propagou por toda parte no decorrer de sua longa história (2). Ainda em 1937, às vésperas da Segunda Guerra, o papa Pio 11 repete na sua encíclica "Mit brennender Sorge" que foi o povo judeu que pregou Jesus na cruz. Essa encíclica foi invocada em 1945 pelo seu sucessor Pio 12 como álibi para justificar os oito anos de pesado silêncio por parte do Vaticano sobre o que se passara em toda a Europa com os judeus.
Não se deve estranhar, no contexto de toda essa história, que o nazismo alemão tenha encontrado entre os cristãos um amplo consenso com a sua política antijudaica. Pois é sabido que muitos cidadãos alemães, cristãos na sua grande maioria, colaboraram de livre e espontânea vontade, com gozo e exaltação à humilhação e segregação dos judeus, e foram "executores benevolentes de Hitler", como realça um livro recentemente editado no Brasil (3). Mas não adianta concentrar as acusações exclusivamente no nazismo ou no povo alemão. As raízes do antijudaísmo são bem mais profundas e se confundem com as próprias raízes do cristianismo histórico. Eis a grande vergonha dos cristãos. Claro que a recente declaração do Vaticano é positiva, mas no nosso entender é apenas um começo que precisa de largo respaldo para alcançar o que todos, acredito, queremos.
Apesar de tudo isso, o cristianismo permanece uma religião semita. O aspecto positivo de toda essa história está no imaginário cristão, persistentemente judeu. Antes de ser uma instituição, um corpo doutrinal e/ou uma moral, o cristianismo é um complexo e diversificado mundo imaginário, e esse mundo permanece semita, apesar das sucessivas helenizações e ocidentalizações. Os primeiros textos cristãos estão repletos de lindas imagens multifacetadas. Jesus é um anjo descido do céu, é o segundo Adão, é uma vinha, o arcanjo Miguel enviado para defender a humanidade, a pedra rejeitada que virou pedra angular. A igreja, por sua vez, é uma esposa fiel, dedicada mãe de muitos filhos, uma uva, fruto delicioso da vinha, vinho derramado. Essa linguagem não define, não se encerra num só sentido, evoca e sugere. O destino da teologia cristã posterior resultou em um enquadramento das lindas e evocativas imagens polissêmicas do mundo semita numa linguagem especulativa, definidora, dogmática, imperativa, exclusiva e exclusivista, própria dos concílios do séculos 4º e 5º e da posterior tradição eclesiástica.
A Segunda Guerra não é puro passado, muitos fatores que botaram fogo no mundo nos anos 40 ainda agem no subconsciente das sociedades de hoje. Um deles é o anti-semitismo. Pensamos que os brasileiros podem contribuir com originalidade na superação desse anti-semitismo, pois não são tão ocidentais nem tampouco tão enquadrados em igrejas. Vivem em uma fértil fronteira com o Islã e numa mais fecunda ainda com os mundos africano e indígena. Podem colaborar criativamente com uma discussão que aparentemente não os toca diretamente.

Notas
1.Frend, W.H.C., "The Rise of Christianity", Darton, Longman & Todd, London, 1984 (defende a tese do caráter judaico do cristianismo até os anos 170).
2. Nikiprowetzky, V., "De l'Antijuda$sme Antique à l'Antisémitisme Contemporain", Presses Universitaires de Lille, Lille, 1979 (une pesquisa à militância).
3. Goldhagen, D.J., "Os Carrascos Voluntários de Hitler", Cia. das Letras, 1997.


Eduardo Hoornaert é historiador e ensaísta, autor de "O Movimento de Jesus" e "Cristãos da Terceira Geração" (Vozes), entre outros.



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