São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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Em "Por Onde Anda a Virtude?" a italiana Fernanda Pivano ficcionaliza os temas da virada feminista

A arte do fingimento

Maria Betânia Amoroso
especial para a Folha

Ao terminar a leitura do primeiro romance de Fernanda Pivano, "Por Onde Anda a Virtude?", escrito aos 67 anos, em 1986, duas cartas recolhidas nos volumes da correspondência do escritor italiano Cesare Pavese (1908-1950) surgem na lembrança, de modo especial. Pavese e Pivano foram muito próximos. Seu professor no colegial, foi ele quem sugeriu a ela que se dedicasse aos estudos da literatura americana. Quando escreve seu primeiro romance, Pavese já está morto há muito tempo -e o mundo se transformara. O que hoje chama a atenção nas cartas é o que delas reaparece, em forma literária, neste romance. Por essa razão, aqui se começa pelas cartas, e não pelo romance.
São, na verdade, dois textos em prosa que têm como centro a figura da ex-aluna: "Análise Amorosa de F." e "Os Medos de F.". As datas das cartas, 20 de outubro de 1940 e 15 de março de 1941.
Em ambas Pavese observa de perto, e num estilo inconfundível, os detalhes psicológicos da personalidade exibida pela jovem, então com 23, 24 anos. Um desses detalhes é a insistente divisão da vida em duas partes, em um "antes" e um "depois", separadas por uma "crise": antes, quando morava em Gênova, e agora, que está em Turim; antes, quando era rica, e agora, que é pobre; quando era contemplativa, e agora, que é ativa; quando era feminina, e agora, que é masculinizada.
Pavese entretanto aponta para a ausência de toda explicação -citada por Pivano ou imaginável por quem a ouve- para tal transformação. E conclui que se trata não de uma lembrança de algo que ocorreu, mas de um desejo, de uma decisão, de um programa. As confissões ensaiadas com os amigos nunca chegam a se configurar enquanto tais: Fernanda jovem se vigia, se exibe com muita consciência e muito pouco se fica sabendo da sua verdadeira natureza.
A associação involuntária da narrativa de Pivano às cartas se dá por vários motivos.
Por exemplo, pela divisão do romance em partes. Na primeira, a jovem mulher viaja pelo mundo com o marido, colhendo olhares e gestos dos homens que a desejam. Observa também o pouco interesse, a pouca atenção do homem que está a seu lado, distraído com suas máquinas fotográficas. Na segunda, há a separação informal do casal que, para a narradora, é o elemento diferenciador de duas fases de sua vida, assim apresentada: "Eis a ruptura necessária a um romance, dizem os críticos, para que seja um verdadeiro romance. Aconteceu quando Lino me fez o pedido típico da andropausa: o "espaço". Jurou-me que, se lhe desse espaço, nunca me abandonaria" (pág. 112). Esse mesmo argumento duplo -a crise matrimonial e a crise no romance- vai reaparecer na pág. 147, já na terceira parte, quando o marido sai definitivamente de casa.
A primeira e a segunda partes são definidas por uma espécie de fronteira, um antes e um depois da separação, que são também os tempos pré-feministas seguidos pelo feminista. Teríamos então a mulher mais velha que teve suas primeiras experiências do amor e do sexo antes das décadas da liberação feminina no século 20. Uma crise, a escritura de um romance, o fim do casamento. E uma outra mulher?
Ocorre que, emprestando à narradora muitos de seus dados biográficos, Fernanda Pivano faz da personagem uma mulher muito bem-sucedida, assediada por fãs, por pretendentes, por amigos. Alguém que convive com a geração beat americana -Jack Kerouac, Allen Ginsberg, entre outros-, que é reconhecida, não só na Itália, como a amiga dos escritores americanos famosos e uma das responsáveis, como tradutora premiada, pela divulgação da obra de Faulkner e Hemingway na Itália, que vive intensamente a contracultura dos anos 60. O protótipo da mulher moderna.
A segunda razão pela qual lembramos de Pavese desenhando o perfil da jovem amiga é que no livro, na verdade, não chegamos a saber nada sobre "a verdadeira natureza" da narradora. Há um pudor que constrange. Exibe uma série infindável de homens seduzidos pela sua figura quase virginal, anunciando-os pelos subtítulos dos capítulos como "Robert, o Almofadinha"; "Aldo, o Diretor"; "Alberto, o Michê"; ou ainda "A Gruta de Alex" e "O Tobogã de Neno".
Seria até possível ver na enumeração de homens assim nomeados uma irônica referência a características do gênero pornográfico, mas o sorriso maroto dessa narradora que deveria ser velha, mas é pueril como uma criança, vem acompanhado pela exibição de suas jóias, bijouterias, roupas, casaco de pele, das viagens exóticas pelo mundo onde o outro, se for homem, é só mais um seduzido ou então é o espelho invertido do europeu. E há a distribuição generosa do adjetivo "delicioso" que tão bem retrata o vocabulário das senhoras "per bene" italianas.
Não falta, portanto, o que criticar nessa personagem feminina que Fernanda Pivano cria a partir, irrefutavelmente, da sua própria vida. Antipática, como boa histérica ela posterga tanto a entrega amorosa, tão desejada e tão temida, que nós, leitores e leitoras da tarda modernidade, cansamos de esperar. Contudo na terceira parte do livro (talvez a síntese, a da transformação final?) surge um diálogo significativo entre ela e um amigo psicanalista que, depois de ler as histórias que a narradora-escritora escrevera, faz a crítica à sexofobia ali implícita. A narradora se defende usando a ficcionalidade a seu favor: as histórias são inventadas e sinceras. Astutamente, a autora exibe aqui o conhecimento dos pontos vulneráveis da sua narrativa -o que era "vício" no perfil psicológico traçado por Pavese se transforma em estilo. O resultado literário deste livro é mais "esperto" do que "bom". Talvez esteja na mestria na arte de escamotear o interesse deste romance. Essa é a sua grande virtude.


Maria Betânia Amoroso é professora do departamento de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autora do livro "A Paixão pelo Real - Pasolini e a Crítica Literária" (Edusp).


Por Onde Anda a Virtude?
238 págs., R$ 29,00
de Fernanda Pivano. Trad. Mariarosaria Fabris. Ilustrações de Luis Paulo Baravelli. Berlendis & Vertecchia Editores (r. Moacir Piza, 63, CEP 01421-030, SP, tel 0/xx/11/3085-9583).



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