São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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Com a edição de "As Excelências do Governador", preparada por Stuart Schwartz e Alcir Pécora, a historiografia recupera uma importante fonte sobre o Brasil Colônia

Uma construção retórica do herói

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

Tem-se, no Brasil, o mau hábito de pensar que a atividade de "garimpar" e editar documentos está reservada ou a pesquisadores ainda demasiado presos aos cânones do positivismo ou a arquivistas incapazes de produzir um "saber analítico". Tal preconceito, herança, talvez, de uma velha e improdutiva concepção da atividade do historiador, que conjugava o pouco apreço pela pesquisa de arquivos com o desmedido apego a "filosofias da história" importadas de além-mar, desestimulou em muito a publicação sistemática de fontes e, por consequência, causou, e ainda vem causando, um enorme prejuízo para a historiografia brasileira.
Felizmente essa visão restritiva e empobrecedora tem dado sinais de desgaste ultimamente. Prova disso é a reedição, ainda em curso, do jornal "Correio Brasiliense" (de Hipólito José da Costa) ou a edição de obras como "A Travessia de Calunga Grande", "Diário de Navegação de Teotônio José Juzarte", "Brasil 1500 - 40 documentos" e deste "As Excelências do Governador", que acaba de ser publicado pela Companhia das Letras. "Excelências" traz, em edição primorosa, a primeira tradução portuguesa de um documento seiscentista, escrito em espanhol, intitulado "Panegírico Fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia 1676)", tradução devidamente apresentada e anotada pelos pesquisadores Stuart B. Schwartz e Alcir Pécora.
O manuscrito, a bem da verdade, não é completamente desconhecido dos historiadores brasileiros, pois o mesmo Schwartz, em 1979, organizou, em parceria com a pesquisadora Ruth T. Jones, uma edição em língua inglesa do documento, com o título "A Governor and His Image in Baroque Brazil" [Um Governante e Sua Imagem no Brasil Barroco". A presente versão em português, porém, compensa o atraso com uma qualidade excepcional, qualidade dos ensaios introdutórios, da tradução (assinada por Pécora e Cristina Antunes), das notas, dos apêndices e mesmo do projeto gráfico. No tocante aos esclarecedores ensaios de apresentação, o primeiro deles, de Schwartz, oferece ao leitor um quadro sintético: trata-se, afinal, de uma apresentação da Bahia em que viveu o espanhol Juan Lopes Sierra e, sobretudo, o seu homenageado, o governador Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça.
Depois de tecer algumas notas sobre a colonização portuguesa no Brasil entre 1530 e 1671, especialmente sobre a colonização da Bahia, Schwartz dedica-se a mapear o governo de Furtado (1671-1675), um nobre com muitos, mas não brilhantes, serviços prestados à coroa portuguesa que, malgrado os elogios contidos no panegírico de Sierra, não foi um administrador de encher os olhos. Explica-nos o brasilianista que duas foram as preocupações centrais da administração desse governador: a busca de metais e pedras preciosas essenciais, naquela altura, para compensar as perdas ocasionadas pela decadência da indústria açucareira e o combate ao gentio, missão na qual o "herói" Furtado, como revela o manuscrito do espanhol, parece ter sido mais bem-sucedido.
O segundo ensaio, de autoria de Alcir Pécora, introduz o leitor no coração mesmo do manuscrito. Pécora não somente situa historicamente o "panegírico fúnebre", definindo os contornos que o gênero tinha na época e o lugar social que ocupava, mas também promove um minucioso esquadrinhamento do escrito de Sierra, apontando os lugares-comuns que põe em cena, arrolando os seus temas mais recorrentes e, sobretudo, analisando as suas divisões internas.
Em linhas muito gerais, o pesquisador procura demonstrar no seu ensaio, de maneira bastante minuciosa, que o panegírico em homenagem ao "herói" Furtado apresenta, seguindo uma espécie de modelo de época, uma divisão bastante rígida: na primeira parte, nos deparamos com o que Pécora denomina "liminares discursivas" (título, dedicatória e prólogo); na segunda, são cantados os feitos do "herói" durante o período em que este governou a Bahia (1671-1675); na terceira, é narrado o "exemplar" comportamento do homenageado durante a sua doença, agonia e morte; na quarta, aparece a descrição das cerimônias fúnebres do governador; e, por fim, numa quinta seção, encontramos a refutação de algumas críticas dirigidas ao governo do homenageado e uma exortação para que todos copiem as suas muitas virtudes.
Para além desses dois esclarecedores ensaios e da tradução portuguesa do escrito de Sierra, "Excelências", como mencionamos, traz ainda cinco apêndices, um dos quais contendo a versão diplomática do panegírico, muitas notas e uma série de ilustrações. Trata-se, como se pode notar, de uma obra preparada para se consolidar como obra de consulta indispensável por todos os estudiosos da sociedade brasileira colonial.
Façamos votos de que, inspirados em edições como esta, pesquisadores e editoras locais se encarreguem de dar continuidade ao ainda muito incompleto trabalho de recuperação e publicação de documentos relativos à história pátria e que, em breve, possamos dispor de séries documentais mais consistentes, indispensáveis para que se escreva uma história de qualidade. Afinal, nunca é demais lembrar, em defesa de tais esforços, que a divulgação de documentos ocupou um espaço enorme na obra do mestre Capistrano de Abreu e que, para mencionarmos um entre tantos exemplos, o instigante "A Invenção da América", do historiador mexicano Edmond O'Gorman, nasceu, segundo conta o próprio autor, das pesquisas para a reedição do clássico do padre José de Acosta, "História Natural e Moral das Índias".


Jean Marcel Carvalho França é professor de história da Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), e autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/ Casa da Moeda) e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).


As Excelências do Governador
440 págs., R$ 39,00
de Stuart Schwartz e Alcir Pécora (orgs.). Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3167-0801).



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