São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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A ideologia do ressentimento

Reprodução
Away from the Flock" (Distante do Rebanho), instalação de Damien Hirst na mostra "Sensation", em Londres (1997)




A crítica à crise da arte atual se baseia em uma noção retórica e preconcebida
JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

Entre os debates públicos pelos quais a "intelligentsia" francesa diz se interessar, a crise da arte ocupa uma posição de destaque. As revistas intelectuais consagradas a "elevar" as discussões sobre os grandes problemas da sociedade não deixam de chamar atenção para esse tópico. "Esprit", órgão do liberalismo cristão-social-hermenêutico, lançou alguns anos atrás uma polêmica contra o vale-tudo que, com a cumplicidade dos funcionários da cultura, invade hoje museus e galerias.
"Le Débat", órgão do neoliberalismo nu e cru, promoveu recentemente uma peleja entre três rivais: Jean Clair, contemptor das vanguardas em sua tese sobre a responsabilidade do artista, opõe-se a Philippe Dagen, cujo livro, "O Ódio da Arte", incrimina os detratores da arte contemporânea. Yves Michaud, autor de "A Crise da Arte Contemporânea", sem dar razão a nenhum dos seus adversários, traduz a "crise" em termos de uma evolução sociológica, dentro da qual a democracia de massas e o multiculturalismo liquidam não a arte, mas as utopias da arte. Enquanto isso, do periódico de esquerda "Libération" à revista de extrema direita "Krisis", Jean Baudrillard repete interminavelmente o refrão da nulidade fatal da arte num mundo em que tudo é imagem.
Nada garante que essa profusão de polêmicas esclareça ao leitor no que consiste, afinal, a famigerada crise. Ou mesmo a que nos referimos quando falamos de arte. Os nomes dos artistas estigmatizados são significativos. Além das vedetes Joseph Beuys/Andy Warhol, o objeto desses ataques é o conjunto das correntes que, da arte pop à arte conceitual ou à Dokumenta de Kassel, assimilaram suas manifestações a um certo repúdio às formas tradicionais da arte. A crise da arte é, em resumo, o novo nome daquilo que foi, há 30 anos, a arte contestadora -ou a contestação da arte.
Se seguissem a lógica, porém, os contemptores da crise deveriam antes de tudo se alegrar ao constatar o recuo ou a banalização das formas que, no máximo, se referem apenas a um setor bem limitado do vasto domínio das artes, na fronteira das artes plásticas e das artes performáticas. Mas talvez a retórica da denúncia seja mais importante do que aquilo que ela denuncia. E, mais do que a análise das formas presentes da música ou do cinema, da dança ou da fotografia, a crítica atual da "arte em crise" obedece a uma lógica ideológica pré-constituída. Suas argumentações, de fato, só fazem cunhar os mesmos argumentos que alimentaram, nos anos 70, a denúncia dos "maîtres-penseurs" e sustentam, desde os anos 80, a denúncia do "pensamento de 68" ou mesmo os apelos à restauração da sã filosofia, da moral kantiana e da política "republicana".
Nada mais revelador, sob esse aspecto, que a leitura de "A Responsabilidade do Artista". Seu autor, Jean Clair, tornou-se conhecido por ensaios brilhantes e exposições memoráveis à frente do Museu Picasso. Mas nada de seu inconteste conhecimento da pintura aparece nesse escrito, que, a exemplo de Glucksmann, Finkielkraut, Ferry e outros oráculos da nova direita intelectual francesa, acusa o inevitável bode expiatório: o romantismo alemão seria, é claro, o responsável pela decadência contemporânea da arte, bem como de todos os crimes do nazismo ou do stalinismo.
Foi ele que acabou por converter a arte moderna no frenesi vanguardista da busca do novo ou da antecipação forçada do futuro. Foi ele que absolutizou a noção de arte e a submeteu aos fantasmas irracionais da criação original. Os fracassos da arte acompanharam assim os crimes da utopia, nascidos do mesmo solo. Ontem, nos diz Jean Clair, os expressionistas alemães -herdeiros do romantismo encarnado no simbolismo- preparavam o nazismo (que os condenaria) anulando os limites entre o sentido e os sentidos. Hoje, essa vertente artística, despida de todo conteúdo, insiste em se proclamar por meio do vale-tudo a que ela se consagra.
Aqui, a conclusão não é ainda muito clara. Segundo essa lógica, poderíamos dizer que a utopia chegou a seu termo. O vale-tudo, tão depreciado, corresponderia ao final da ditadura das vanguardas e à coexistência pacífica, própria das formas de arte pós-moderna de uma sociedade multicultural. Este, em suma, é o argumento do livro de Yves Michaud. Contudo, esse "happy end" multicultural não é visto com bons olhos pelos luminares da nova ideologia francesa. Para ela, o que se deve opor à derrocada das utopias não é o simples consenso multicultural, mas o sentido renovado dos valores republicanos e nacionais.
Assim, o combate ritual das luzes cosmopolitas de Kant contra as trevas do solo e da origem de Herder é substituído por um outro combate -aquele que opõe os encantos natais do solo republicano francês ao deserto multicultural norte-americano. A derrocada da arte francesa contemporânea seria, portanto, a submissão aos ditames estéticos da América do pós-guerra. É assim que Jean Clair reconduz o triunfo do "all over" no expressionismo abstrato americano à sua causa evidente: a infinita auto-semelhança de um país plano, gigantesco arrabalde uniformemente cortado por rodovias em linha reta. A esse deserto rodoviário opõe-se o encanto dos bosques e dos caminhos tortuosos do campo francês, de que os escritores do território normando, Maupassant e Flaubert, são os pintores.
A bem da verdade, existem algumas montanhas nos Estados Unidos (aliás, há alguns anos a Universidade de Montana organizou um colóquio para chamar a atenção de Jean Baudrillard para esse detalhe). As rodovias francesas não serpenteiam no trigo mais do que suas irmãs americanas. E Flaubert, por sua vez, odiava essa França boscareja e amava sobretudo o vazio dos desertos do Oriente. No entanto, a ideologia do ressentimento tem suas razões, que pouco se preocupam com a realidade dos fatos ou com a coerência dos argumentos.
Mas há uma lógica nessa estranha operação, que converte o escritor da "torre de marfim" num pintor apaixonado por sua aldeia. Existe um fato singular que caracteriza todos os discursos sobre a crise ou o fim da arte. Todos eles, quando tratam da arte, se referem somente à pintura ou ao que hoje corresponde ela. Jean Clair, que dramatiza a "responsabilidade do artista", teria sem dúvida encontrado argumentos mais convincentes nos escritores, músicos ou cineastas do que na pintura, cujos poderes de mobilização da massa não são nada evidentes. Yves Michaud, que anula a dramaticidade da crise da arte, também não parece considerar que a arte ultrapassa as fronteiras de museus e galerias.
Ora, o cinema ou a dança se gabam de boa saúde. A música contemporânea tende a sair de seu gueto e se mesclar a outras músicas. E mesmo quando ela entedia, raras são as acusações de que os compositores ignoram seu ofício. Ninguém fala da "crise da literatura", ainda que tão poucos escritores suscitem entusiasmos delirantes. Por que então considerar que a arte em geral está em crise, se aqueles que apreciam quadros encontram nos museus um monte de roupas velhas, televisores empilhados ou porcos fendidos ao meio? Ainda que se pudesse acusar de nula a pintura atual em sua totalidade, por que o eclipse momentâneo de uma arte entre outras seria a catástrofe final da arte?
É porque existe, nos diz Jean Clair, um poder da imagem figurativa a que nenhum outro gênero estético pode se igualar. Mas por que, exatamente? Porque, nesses discursos, a "pintura" designa, por assim dizer, uma revelação ontológica ou mística. Nele, a pintura é concebida como um sacramento original do visível, no qual a divindade ou o Ser aparece em sua glória. Não vejo o quadro como uma coisa, afirmava Merleau-Ponty, meu olhar vaga por ele "como nos nimbos do ser". Para ele, a visão onívora do pintor abria para "uma textura do Ser", que o "olho habita como sua casa".
É facil compreender que o olho não encontra nos animais seccionados de Damien Hirst essa casa do homem, que é também o abrigo de deus. Toda uma parte da mística do visível se nutre dessa versão fenomenológica da transubstanciação cristã. E, no final das contas, a crítica pós-situacionista do "espetacular" comunga, em Baudrillard, essa nostalgia da presença perdida e da encarnação oculta. A acusação levantada contra a "divinização" romântica da arte possui também a necessidade dessa religião do visível, a que ela dá o nome de pintura. A arte segue vivendo; mas o pensamento dos áugures, esse, não vai muito bem.


Jacques Rancière é filósofo político francês, autor de "A Noite dos Proletários" (Companhia das Letras) e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.



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