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ANTONIO CANDIDO
O amor à literatura
LEYLA PERRONE-MOISÉS
especial para a Folha
Ler e reler Antonio Candido é algo que todos os críticos ou aspirantes a críticos deveriam fazer regularmente, porque sempre há
muito para se aprender ou reaprender com ele. Dentre as qualidades que fazem de Antonio Candido um crítico modelar, eu destacaria as seguintes: o amor à literatura, que o faz valorizar o texto
mais do que o contexto, o objeto
mais do que o método; a enunciação delicada de suas avaliações,
que nunca se apresentam como
juízos de verdade, definitivos e indiscutíveis; o reconhecimento de
valores estéticos independentes de
valores éticos e políticos.
Essas são qualidades que podem
ser aprendidas e cultivadas por
quem se dispuser a tomá-las como
exemplares. Outras qualidades,
essenciais, infelizmente não podem ser ensinadas ou adquiridas:
a sensibilidade e a argúcia críticas,
a capacidade de reconhecer imediatamente, dentre os escritores
contemporâneos, aqueles que o
tempo confirmaria como fundamentais. Além disso, Antonio
Candido possui uma cultura literária vasta que lhe permite ajuizar
em termos não apenas locais, mas
internacionais. "Provinciano" e
"fechado ao mundo" são atributos negativos recorrentes em sua
obra, e que a ela não se poderiam
aplicar.
Vejamos de perto algumas dessas qualidades. Como se sabe, A.
C. é um crítico de formação e inspiração sociológicas. Coube-lhe,
mesmo, inaugurar a crítica sociológica moderna no Brasil e fazer
escola nesse gênero, a tal ponto
que, pelo país afora, os literários
das universidades paulistas são
vistos como predominantemente
sociológicos (o que é só parcialmente verdadeiro). A grande lição
da crítica sociológica de A.C. é que
esta jamais consistiu, para ele, em
utilizar a literatura como simples
documento para o estudo da sociedade.
Em seus textos teóricos, como
em suas análises críticas, é constante a prioridade por ele concedida ao texto literário como tal. Em
"Literatura e Sociedade", o "ângulo sociológico" é apontado como um entre vários, em vez de
"ser imposto como critério único, pois a importância de cada fato
depende do caso a ser analisado".
O texto literário tem múltiplas faces e "uma crítica que se queira
integral deixará de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou
linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente". Assim sendo, ele aconselha que se evite "o sociologismo
crítico, a tendência devoradora a
tudo explicar por meio de fatores
sociais". Os fatores sociais são
por ele considerados "no seu papel de formadores de estrutura"
e, como tal, tão indispensáveis
quanto os psíquicos.
Coerente com esses princípios,
que fazem de "Literatura e Sociedade" um livro que deveria ser de
leitura obrigatória em todo curso
básico de letras, as análises sociológicas de A.C. são efetuadas com
dedos leves, nunca reduzindo as
obras aos dados históricos ou sociais, mas procedendo à iluminação mútua do texto e do contexto.
Uma análise em que aparece, de
modo explícito, o extremo cuidado nesse sentido, é a de "Grande
Sertão: Veredas": "Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães
Rosa", em "Vários Escritos".
O título do ensaio, que foi inicialmente um curso, sugere uma
análise puramente sociológica.
Ora, a leitura de "Grande Sertão" leva o crítico muito além da
questão dos "jagunços mineiros"
ou de qualquer regionalismo, o
que é por ele assinalado: "(...) Depois de embalados pela leitura, só
por um esforço de reflexão podemos pensar em termos históricos
ou sociológicos, como até aqui tínhamos feito nestas aulas. Escritor genial, dos poucos que aguentam esse qualificativo em nossa literatura, Guimarães Rosa supera e
refina o documento, que não obstante conhece exaustivamente e
cuja força sugestiva guarda intacta, por meio da sublimação estética. Por isso, não basta procurar
nele em que medida a ficção vale
como transposição dos fatos; mas
também em que medida o comportamento do jagunço aparece
como um modo de ser no mundo,
encharcando a realidade social de
preocupações metafísicas".
O romance de Guimarães Rosa,
como "operação de alta estética", solicita e recebe do crítico
uma análise que inclui a reflexão
filosófica sobre nosso estar no
mundo, os procedimentos técnicos como o foco narrativo e o uso
do nome próprio, e o "princípio
de reversibilidade", que ele já
apontara e demonstrara em estudo anterior. Leitor sensível à
"transfiguração estética do real",
o crítico voa tão alto com o escritor que, para concluir a análise,
parece efetuar um esforço voluntário: "Recaindo no documento
(grifo meu), observemos que o livro de Guimarães Rosa é meticulosamente plantado na realidade
física, histórica e social do norte de
Minas (...)".
A segunda grande qualidade
apontada, a enunciação delicada,
exigiria espaço maior para ser demonstrada. Basta-nos lembrar, de
modo geral e reconhecível para os
leitores de A.C., que ele jamais se
coloca como um juiz que emite
sentenças ou como o analista que
achou a verdade única de um texto analisado. Vários de seus ensaios, para nós completíssimos,
terminam com uma observação
acerca daquilo que faltou estudar
ou dizer. E já numa altura em que,
do alto de sua obra, ele poderia
pontificar, a conclusão de uma
análise sua é a seguinte: "Mas não
tenho certeza se é mesmo assim"
("As Transfusões de Rimbaud",
1991). Esse traço de humor e de auto-ironia é próprio das grandes inteligências.
Isso não quer dizer que não haja,
na obra de A.C., afirmações e juízos; somente, estes não são simples
asserções, mas demonstrações
convincentes. A autoridade do crítico não está no performativo "eu
afirmo que", mas na capacidade
persuasiva de suas análises, providas ao mesmo tempo de coerência
interna e de aderência ao objeto.
Os grandes críticos são dotados
de uma generosidade de mão dupla: na disponibilidade com que
recebem a obra, buscando ver qual
o seu projeto e em que medida este
se realiza, e na afabilidade com
que oferecem sua leitura a outros
leitores, tratados como interlocutores inteligentes e não como receptores beócios de um saber superior, ditado de cátedra. O estilo de
A.C. é caracterizado por essa delicadeza que consiste em não submeter a obra a um método ou a
uma ideologia prévias, e não tratar o leitor como alguém que deva
ser desasnado. A própria clareza
de sua exposição, jamais hermética ou pedante, é uma forma de urbanidade.
Pelo fato de possuir essa generosidade no trato com o outro, escritor ou leitor, os juízos críticos de
A.C. não são atrelados a suas próprias convicções, éticas ou políticas. Sua admiração reiterada pela
"genial rebeldia" de Oswald de
Andrade é uma prova disso. Oswald, o escandaloso, o amoral, o
irresponsável, o vira-casaca político, é em tudo o antípoda do homem Antonio Candido. No entanto, este soube colocar acima dessas
características negativas as qualidades humanas e literárias de Oswald: a vitalidade, a força libertária de seu humor, os acertos de sua
intuição e de suas fórmulas ficcionais, nas duas obras que o crítico
nos ensinou a ver como um par e
como grandes, "Miramar" e "Serafim".
Com a mesma equanimidade, o
crítico se manifestou recentemente
acerca de Octavio Paz, geralmente
execrado pela esquerda latino-americana. A discordância com as
posições políticas do escritor mexicano, expressa na mesma ocasião,
não o impediu de reconhecê-lo como "o maior intelectual da América Latina".
Quanto às qualidades que não
podem ser ensinadas, as de saber
escolher seus objetos de admiração, têm sido comprovadas pelo
único juiz em questão de valor estético: o tempo. Alguém que, em
1943, foi capaz de saudar "o raiar
de Clarice Lispector" como "um
dos valores mais sólidos e mais
originais de nossa literatura", que
em 1946 soube ver o regionalismo
de Guimarães Rosa como uma
"experiência total, autêntica e duradoura" e em 1957 escreveu um
texto-marco sobre a "extraordinária obra-prima "Grande Sertão:
Veredas'" (publicado um ano antes), não precisa provar mais nada
como crítico. O reconhecimento
atual desses autores, no Brasil e no
exterior, como dos mais notáveis
na literatura do século 20, lhe tem
dado, cada vez mais, razão.
Suas opiniões acerca da ficção
brasileira mais recente, emitidas
há 19 anos ("A Nova Narrativa",
em "A Educação pela Noite"),
também se revelam hoje como justas e proféticas. A.C. observava então a tendência ao "realismo feroz", o abandono dos grandes projetos, a ausência de parâmetros
críticos de julgamento, a busca,
pelos autores, do impacto produzido pela habilidade ou a força, a
indiferença à duração da obra,
"montagem provisória em era de
leitura apressada" etc. O que ele
estava descrevendo era o que agora se chama de ficção pós-moderna.
Assim como seus juízos críticos
têm resistido ao tempo, suas análises também se mostram imunes ao
envelhecimento, pelo estilo, que
não apresenta tiques datados, modismos ou lugares-comuns acadêmicos, e pela pertinência, que permanece inteira. Apenas um exemplo: em 1965, A.C. descreveu as
"inquietudes na poesia de Drummond" de maneira tão abrangente
que se tornou difícil dizer, da obra
passada e futura do poeta, algo
que não estivesse pelo menos sugerido nesse estudo. Enfim, fazer o
elogio de A.C. é chover no molhado, e por isso paro por aqui.
Leyla Perrone-Moisés é ensaísta e crítica literária, autora de "Flores na Escrivaninha".
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