São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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ANTONIO CANDIDO
Trajetória intelectual de um múltiplo singular

SILVIANO SANTIAGO
especial para a Folha

Antonio Candido é um intelectual múltiplo de uma maneira bastante singular. Qualquer uma das suas várias atividades profissionais ganha impulso e sentido por uma experiência profissional paralela.
Não se pode compreender a produção do ensaísta de "Literatura e Sociedade" sem levar em conta a longa e bem-sucedida experiência do professor da Universidade de São Paulo. Não se pode compreender a atividade do professor sem conhecer a experiência do ativista político, nas últimas décadas associada ao PT (Partido dos Trabalhadores). Não se pode compreender a atividade do ativista político sem conhecer a produção do historiador da literatura, autor da "Formação da Literatura Brasileira". E assim por diante, numa modalidade de composição por frases circulares que se tornarão mais e mais sedutoras pelo processo infinito de permutação.
Primeira conclusão. Não se pode prever de antemão o estilo de qualquer peça ou atividade de Antonio Candido, porque ele será ditado por uma experiência não-coincidente com o propósito explícito da necessidade de expressão.
Como múltiplo singular, Antonio Candido conseguiu fazer com que nenhuma experiência de formação intelectual fosse complementar de uma atividade profissional afim. Caso o fosse, Candido seria um ensaísta professoral, um professor proselitista, um político esteticizante, e assim por diante. Não é o caso.
Como também não é o caso dizer, em raciocínio bem mais bisonho: como ensaísta Candido é um bom professor, como professor é um bom político, como político é um bom esteta, e assim por diante. Não é o caso nos dois casos. Essa visão, preconceituosa em si do múltiplo e instituída pela complementaridade, poderá ser encontrada nas leituras e comentários menos instigantes da sua longa e rica trajetória intelectual.
Segunda conclusão. A experiência oferecida a Candido pela própria formação disciplinar perde o solo original, é deslocada por ele do seu lugar de origem para outro e diferente lugar, onde passa a ter o propósito nem sempre explícito de ser mais bem trabalhada pelo estilista da vida e da obra. Por isso, qualquer análise duma atividade intelectual de Candido "per se" é obrigatoriamente injusta. Exemplo: nada é mais corretamente equivocado do que buscar os pressupostos metodológicos de uma peça de Candido. Eles estarão onde o leitor-especialista não os pode encontrar.
Num país sem profissionais ou, inversamente, de profissionais por demais constrangidos aos princípios metodológicos estreitos da sua formação disciplinar, Candido conseguiu dar estatuto de maioridade ao diletante e, ao mesmo tempo, tirar o tapete do especialista presunçoso, dono da verdade.
Terceira conclusão. Nem diletante nem especialista. Os dois. Diletantemente especialista. Isso por obra dos constantes deslocamentos das experiências de rigorosa formação disciplinar do seu solo próprio, com vistas a diferentes atividades profissionais, a múltiplos estilos, que careciam de chão criativo neste nosso Brasil de instituições culturais e partidos políticos burocratizados e burocratizantes.


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de "Em Liberdade" e "Keith Jarret no Blue Note" (Rocco), entre outros.



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