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ANTONIO CANDIDO
Construção de um país
ALAIN TOURAINE
especial para a Folha
Em 1960, quando vim ao Brasil
pela primeira vez, para lecionar na
USP, a figura de Antonio Candido
já era, havia muito tempo, a do
mestre exemplar, respeitado e
amado pelos jovens sociólogos de
São Paulo, vários dos quais viriam, mais tarde, a produzir obras
importantes.
Era respeitado e amado em primeiro lugar por causa de "Os Parceiros do Rio Bonito", livro pioneiro no qual estudou as transformações na vida dos caipiras paulistas -mas também, e muito
mais, pelo significado que tinha
para aquela nova geração do grupo "Clima", formado a partir de
1939 por jovens estudantes (entre
eles o próprio Antonio Candido) e
que definiu de maneira nova o lugar do intelectual na sociedade
brasileira.
Em todos os países ocidentais, a
figura do intelectual corre o risco
de ser contraditória: espera-se dele que seja um profissional, que
possua um saber e um conhecimento especializado reconhecidos; ao mesmo tempo, ele é ouvido como testemunha, analista e
crítico da situação nacional, e, em
especial, da situação política. O intelectual deve, portanto, ser simultaneamente engajado e independente, político e professor. A
novidade do grupo "Clima" foi
que ele correspondeu a essa dupla
expectativa e rompeu com o que
se poderia chamar de diletantismo
da geração precedente.
Antonio Candido fundou uma
sólida tradição de crítica literária,
da qual Roberto Schwarz é hoje
notável representante em São
Paulo. Ele também soube transmitir seu saber e ampliou o debate
literário, em especial no suplemento literário de "O Estado de S.
Paulo". Ao mesmo tempo, paralelamente, definiu com frequência
uma posição que se poderia descrever como mais cívica do que
política. Em primeiro lugar, ao
contribuir, durante toda sua vida,
para defender os valores da democracia; a seguir, igualmente importante, ao tornar-se um dos
principais construtores da identidade brasileira, ao lado de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, cujas
orientações são, com toda certeza,
muito diversas.
Como quase todos os países da
América Latina, o Brasil já teve
muitos intelectuais engajados. Entre esses, alguns se puseram um
pouco apressadamente a serviço
de teses cujo conteúdo e implicações não dominavam suficientemente. É importante, por isso, reconhecer a figura de Antonio Candido, que sempre foi, ao contrário, rigoroso em seus estudos pessoais, aberto em sua orientação
intelectual (que o aproximou tanto de filósofos quanto de sociólogos) e impecável em sua observação dos princípios fundamentais
da democracia.
Com relação a sua obra, pode-se
dizer o que ele mesmo escreveu a
propósito de "Raízes do Brasil".
Ele mostrou como o estudo do
passado, longe de ser uma simples
operação saudosista, pode abrir
caminho para os grandes movimentos democráticos integrais,
ou seja, aqueles que contam com a
iniciativa do povo trabalhador e
não remetem apenas ao papel de
massa de manobra, como é de
costume. Pois é essa a linha demarcatória que melhor expõe a diferença entre duas categorias
-poderíamos dizer duas famílias- de intelectuais.
De um lado dessa linha há aqueles que poderíamos chamar de
profetas, que falam em nome de
uma verdade transcendente, quer
essa seja a mensagem do divino, as
exigências da razão ou o sentido
da história, e que, portanto, enxergam os atores históricos como
idéias ou textos literários, desde o
ponto de vista de sua conformidade com o ideal, que é também, para eles, uma necessidade natural.
Do outro lado estão os intelectuais
testemunhas, que ouvem, fazem
ouvir e compreender as "pessoas", quer elas sejam vítimas ou
dirigentes, descobrindo-as enquanto agentes de sua existência
pessoal e coletiva, mais do que como sujeitos de uma necessidade
histórica.
A primeira família, que se multiplicou no século 19 -porque esse
período foi dominado pelo evolucionismo e historicismo- dominou boa parte de nosso século,
frequentemente com consequências negativas. A família à qual
pertence Antonio Candido se formou no século 18, mais do que no
19, mas hoje exerce influência
maior do que a outra, pois hoje se
trata mais de criticar (no sentido
original da palavra) e compreender do que de se engajar ou apontar o dedo ou a pena para os horizontes em direção aos quais o povo deve avançar, lutando.
Essa figura intelectual não foi
isolada, e a personalidade de Antonio Candido não pode ser desvinculada da Universidade de São
Paulo, pois nela ele recebeu parte
importante de sua formação, em
especial no seminário do filósofo
Jean Maugé, antes de levar a ela o
prestígio de sua própria obra.
De fato, São Paulo, assim como
outros países ou regiões, pertence
ao conjunto dos "lugares" que se
formaram em torno de universidades, pelo menos tanto quanto o
fizeram em torno de um Estado.
Na Europa, Holanda, Itália e o
norte da Alemanha integram esse
conjunto. Quando se fala em Argentina, pensa-se em Buenos Aires e no movimento de Córdoba.
Não é esse o caso do Brasil ou do
México, mas é o caso, sim, de São
Paulo, que sempre ocupou um lugar à parte -quase se pode dizer
que teve uma personalidade distinta daquela do resto do país.
É isso que explica que, num país
onde o Estado sempre desempenhou papel central e onde as tradições liberais nunca conseguiram
fincar raízes, em especial nos anos
20, São Paulo foi, bem mais do que
um dos Estados da Federação,
uma sociedade civil com seus empresários e trabalhadores, seus intelectuais e também seus demagogos.
Hoje o Brasil já ingressou na categoria dos países aos quais chamamos desenvolvidos, rótulo que
se define sobretudo pela capacidade que possui seu sistema político
de criar relações entre a atividade
econômica e as demandas sociais.
O papel do sistema político, que
não se confunde com o Estado e
que é melhor descrito pela expressão alemã "espaço público", depende muito dos intelectuais. Se
eles se inscrevem na lógica do Estado ou do contra-Estado, seu papel como intelectuais se torna negativo, e será melhor que se tornem políticos ou dirigentes de
movimentos de contestação.
Por outro lado, é a existência de
um espaço público aberto, no qual
a atividade intelectual, mas também a política, pode ser exercida
com plena liberdade, que impede
a ruptura desastrosa entre a vontade do Estado e a do mercado, de
um lado, e as demandas sociais,
do outro, pois estas podem então
se transformar em forças de ruptura e de rejeição, mais do que de
transformação e libertação.
É por essas razões, e muitas outras, que o Brasil e aqueles que o
amam têm razões para homenagear Antonio Candido.
Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola
de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e
autor, entre outros, de "A Crítica da Modernidade" (Vozes).
Tradução de Clara Allain.
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