São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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ANTONIO CANDIDO
Construção de um país

ALAIN TOURAINE
especial para a Folha

Em 1960, quando vim ao Brasil pela primeira vez, para lecionar na USP, a figura de Antonio Candido já era, havia muito tempo, a do mestre exemplar, respeitado e amado pelos jovens sociólogos de São Paulo, vários dos quais viriam, mais tarde, a produzir obras importantes.
Era respeitado e amado em primeiro lugar por causa de "Os Parceiros do Rio Bonito", livro pioneiro no qual estudou as transformações na vida dos caipiras paulistas -mas também, e muito mais, pelo significado que tinha para aquela nova geração do grupo "Clima", formado a partir de 1939 por jovens estudantes (entre eles o próprio Antonio Candido) e que definiu de maneira nova o lugar do intelectual na sociedade brasileira.
Em todos os países ocidentais, a figura do intelectual corre o risco de ser contraditória: espera-se dele que seja um profissional, que possua um saber e um conhecimento especializado reconhecidos; ao mesmo tempo, ele é ouvido como testemunha, analista e crítico da situação nacional, e, em especial, da situação política. O intelectual deve, portanto, ser simultaneamente engajado e independente, político e professor. A novidade do grupo "Clima" foi que ele correspondeu a essa dupla expectativa e rompeu com o que se poderia chamar de diletantismo da geração precedente.
Antonio Candido fundou uma sólida tradição de crítica literária, da qual Roberto Schwarz é hoje notável representante em São Paulo. Ele também soube transmitir seu saber e ampliou o debate literário, em especial no suplemento literário de "O Estado de S. Paulo". Ao mesmo tempo, paralelamente, definiu com frequência uma posição que se poderia descrever como mais cívica do que política. Em primeiro lugar, ao contribuir, durante toda sua vida, para defender os valores da democracia; a seguir, igualmente importante, ao tornar-se um dos principais construtores da identidade brasileira, ao lado de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, cujas orientações são, com toda certeza, muito diversas.
Como quase todos os países da América Latina, o Brasil já teve muitos intelectuais engajados. Entre esses, alguns se puseram um pouco apressadamente a serviço de teses cujo conteúdo e implicações não dominavam suficientemente. É importante, por isso, reconhecer a figura de Antonio Candido, que sempre foi, ao contrário, rigoroso em seus estudos pessoais, aberto em sua orientação intelectual (que o aproximou tanto de filósofos quanto de sociólogos) e impecável em sua observação dos princípios fundamentais da democracia.
Com relação a sua obra, pode-se dizer o que ele mesmo escreveu a propósito de "Raízes do Brasil". Ele mostrou como o estudo do passado, longe de ser uma simples operação saudosista, pode abrir caminho para os grandes movimentos democráticos integrais, ou seja, aqueles que contam com a iniciativa do povo trabalhador e não remetem apenas ao papel de massa de manobra, como é de costume. Pois é essa a linha demarcatória que melhor expõe a diferença entre duas categorias -poderíamos dizer duas famílias- de intelectuais.
De um lado dessa linha há aqueles que poderíamos chamar de profetas, que falam em nome de uma verdade transcendente, quer essa seja a mensagem do divino, as exigências da razão ou o sentido da história, e que, portanto, enxergam os atores históricos como idéias ou textos literários, desde o ponto de vista de sua conformidade com o ideal, que é também, para eles, uma necessidade natural. Do outro lado estão os intelectuais testemunhas, que ouvem, fazem ouvir e compreender as "pessoas", quer elas sejam vítimas ou dirigentes, descobrindo-as enquanto agentes de sua existência pessoal e coletiva, mais do que como sujeitos de uma necessidade histórica.
A primeira família, que se multiplicou no século 19 -porque esse período foi dominado pelo evolucionismo e historicismo- dominou boa parte de nosso século, frequentemente com consequências negativas. A família à qual pertence Antonio Candido se formou no século 18, mais do que no 19, mas hoje exerce influência maior do que a outra, pois hoje se trata mais de criticar (no sentido original da palavra) e compreender do que de se engajar ou apontar o dedo ou a pena para os horizontes em direção aos quais o povo deve avançar, lutando.
Essa figura intelectual não foi isolada, e a personalidade de Antonio Candido não pode ser desvinculada da Universidade de São Paulo, pois nela ele recebeu parte importante de sua formação, em especial no seminário do filósofo Jean Maugé, antes de levar a ela o prestígio de sua própria obra.
De fato, São Paulo, assim como outros países ou regiões, pertence ao conjunto dos "lugares" que se formaram em torno de universidades, pelo menos tanto quanto o fizeram em torno de um Estado. Na Europa, Holanda, Itália e o norte da Alemanha integram esse conjunto. Quando se fala em Argentina, pensa-se em Buenos Aires e no movimento de Córdoba. Não é esse o caso do Brasil ou do México, mas é o caso, sim, de São Paulo, que sempre ocupou um lugar à parte -quase se pode dizer que teve uma personalidade distinta daquela do resto do país.
É isso que explica que, num país onde o Estado sempre desempenhou papel central e onde as tradições liberais nunca conseguiram fincar raízes, em especial nos anos 20, São Paulo foi, bem mais do que um dos Estados da Federação, uma sociedade civil com seus empresários e trabalhadores, seus intelectuais e também seus demagogos.
Hoje o Brasil já ingressou na categoria dos países aos quais chamamos desenvolvidos, rótulo que se define sobretudo pela capacidade que possui seu sistema político de criar relações entre a atividade econômica e as demandas sociais. O papel do sistema político, que não se confunde com o Estado e que é melhor descrito pela expressão alemã "espaço público", depende muito dos intelectuais. Se eles se inscrevem na lógica do Estado ou do contra-Estado, seu papel como intelectuais se torna negativo, e será melhor que se tornem políticos ou dirigentes de movimentos de contestação.
Por outro lado, é a existência de um espaço público aberto, no qual a atividade intelectual, mas também a política, pode ser exercida com plena liberdade, que impede a ruptura desastrosa entre a vontade do Estado e a do mercado, de um lado, e as demandas sociais, do outro, pois estas podem então se transformar em forças de ruptura e de rejeição, mais do que de transformação e libertação.
É por essas razões, e muitas outras, que o Brasil e aqueles que o amam têm razões para homenagear Antonio Candido.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e autor, entre outros, de "A Crítica da Modernidade" (Vozes).
Tradução de Clara Allain.



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