São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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ANTONIO CANDIDO
Um pacto de generosidade com o leitor

BENEDITO NUNES
especial para a Folha

Quando, certa vez, representantes da Academia Paulista de Letras procuraram Antonio Candido, com o propósito de convidá-lo para ingressar, sem eleição, na ilustre confraria, um dos acadêmicos visitantes era meu tio, Carlos Alberto Nunes.
Depois de agradecer à visita e ao convite, o já consagrado candidato, ponderada e gentilmente, declarou-se forçado a desistir da honraria, visto que, por princípio, salvo em se tratando de obrigação cívico-política, era avesso a filiar-se a grupos, associações e sodalícios. Nisso, à queima-roupa, tio Carlos desfechou-lhe a pergunta: "E se o convite partisse da Academia Brasileira de Letras, o professor recusaria?". "Também, dr. Carlos, também recusaria", respondeu o interpelado. Ao que o acadêmico arrematou: "Dou-me por satisfeito, professor!".
Só a coragem, virtude alojada por Platão abaixo da cabeça, no timo, permite agir assim, com tão plácida firmeza -"coraçãomente", como se diz no idioma roseano. Mas, no professor, a coragem se combina com a paciência; a liga das duas conforma-lhe a ciência, pacientemente vivida e coerentemente exercida, de que tenho sido um dos muitos beneficiários desde a juventude. Passei a respeitá-lo, diante da justeza de suas intervenções, no 2º Congresso de Crítica e História Literária, de Assis, em 1961. Foi quando o conheci pessoalmente e aprendi a admirá-lo. Mas só muito depois, na década de 70, lecionando no IEL (da Universidade Estadual de Campinas), pela primeira vez a seu convite, descobri o quanto o humor tempera aquela liga moral e intelectual da coragem na gentil paciência, da ciência na coerência, política inclusive.
Longe de escarninho, esse humor, que o leva a rir dos outros rindo de si mesmo, é o sinal exterior, social, de uma imensa generosidade, transportada das pessoas, sobretudo dos discípulos às coisas amadas, à nossa literatura, estudada em suas raízes histórico-sociais ou às divas da ópera italiana (ele é da facção Tebaldi). Comentando, interpretando e avaliando as obras literárias, o descobridor de Clarice Lispector, que conceituou o transregional em Guimarães Rosa, tão bom leitor de Proust quanto de Alexandre Dumas -também pródigo contador de histórias, casos e anedotas (como aquela com que iniciamos este escrito) e talentoso histrião-, fez da crítica um "pacto de generosidade" com o leitor.
E estenderia o pacto, enquanto tolerante compreensão dos outros, aos seus colegas críticos, e enquanto fé na inteligência alheia, aos escritores novos. Não posso esquecer como, principalmente em dois momentos delicados, o professor me assistiu com paciência e ciência bem-humoradas.
Tolerou minhas delongas na entrega dos dois livros, "Introdução à Filosofia da Arte" e "Filosofia Contemporânea", que me solicitara a escrever para a coleção "Buriti", pouco antes do golpe de 64. Em 67, decidira, sob a pressão dos duros tempos, instalar-me no estrangeiro. No seu gabinete da antiga faculdade da rua Maria Antônia, onde estive, grafou num meu caderno, envelhecido hoje, indicação de fontes para os estudos da antropofagia modernista que eu iniciaria na França. Reúno essas lembranças, de cor, como tributo aos 80 anos de Antonio Candido.


Benedito Nunes é crítico e professor de literatura na Universidade Federal do Pará, autor, entre outros, de "O Tempo na Narrativa" e "Crivo de Papel" (Ática).



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