São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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ANTONIO CANDIDO
O melhor amigo

Arquivo pessoal Décio de Almeida Prado
Da dir. para a esq., Decio de Almeida Prado, Lauro de Souza Lima, Érico Veríssimo e Paulo Emilio Salles Gomes



O crítico de teatro Decio de Almeida Prado fala sobre a criação da revista "Clima" e dos dotes de cantor de Antonio Candido


BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Decio de Almeida Prado, 80, fala de Antonio Candido com a admiração incondicional do melhor amigo: "Quando houve um congresso sobre ele, ele não queria ir, não queria estar presente perante os elogios que naturalmente lhe seriam feitos. Mas também seria deselegante não comparecer. Acabou indo. Antes de começar, falou durante uns 15 minutos, agradeceu e foi embora. Não assistiu a nada", diz, rindo.
Durante quase 60 anos, os destinos do crítico de teatro e do crítico de literatura estiveram entrelaçados, não só na cultura, na política e na universidade, mas por coincidências médicas e familiares. Ambos participaram ativamente de experiências significativas como o grupo "Clima", em 1941, e a criação do "Suplemento Literário" de "O Estado de S. Paulo", em 1956. Leia, a seguir, o depoimento de Almeida Prado.


O PRIMEIRO ENCONTRO - "Não me lembro da primeira vez em que o vi. Mas me lembro muito bem do primeiro ano, na Faculdade de Filosofia. Ele entrou em 39. Eu já tinha saído. Em 39 eu frequentava apenas um curso de pedagogia, mas continuava assistindo às aulas do professor Jean Maugé. Foi aí que nós nos conhecemos. O dia exato eu não me lembro. Ele me disse que se lembra. A Faculdade de Filosofia naquela época era no terceiro andar da antiga Escola Normal, na praça da República. Ele diz que se lembra de estar andando pelo corredor e de terem lhe perguntado se não se interessava em fazer teatro, porque o Decio de Almeida Prado estava ensaiando um conjunto amador numa sala. Se não me engano, ele entrou, viu e logo ficamos colegas, ficamos logo íntimos."

OS PAIS - "Meu pai conhecia bem o pai dele, antes de nós nos conhecermos. Porque ambos eram médicos. Estudaram no Rio de Janeiro. Foram alunos de um professor de medicina famosíssimo na época, o doutor Miguel Pereira, que era pai da Lúcia Miguel Pereira, prima do Antonio Candido. O pai do Paulo Emilio Salles Gomes também era médico e meu pai também o conhecia. São coincidências.
Numa ocasião, minha irmã ficou com reumatismo, foi para Poços de Caldas e se tratou com o pai do Antonio Candido, doutor Aristides de Mello e Souza. Depois, o doutor Aristides ficou doente, veio para São Paulo e foi meu pai quem tratou dele. Morreu jovem. Quando o Antonio Candido escreveu "Formação da Literatura Brasileira', dedicou ao meu pai."

TEATRO - "Ele nunca fez teatro de fato. Chegou a ser ponto, porque nós éramos amigos. O Alfredo Mesquita, que era dez anos mais velho, fazia teatro amador. Fiz até papel de galã numa peça dele, "Dona Branca'. O Alfredo se aproximou de nós e chegou a montar uma peça de Alfred de Musset, em francês. Se não me engano, foi aí que o Antonio Candido ficou com o ponto, porque falava bem francês e tal. Não sei se ele participou de outros espetáculos como ponto. O ponto, na verdade, era mais um ponto de encontro (risos), porque as moças que faziam os papéis na peça francesa -que, aliás, eram de origem em parte francesa e em parte italiana, embora nascidas no Brasil- eram muito simpáticas e bonitas."

PAPÉIS TROCADOS - "No terceiro espetáculo que montei com o meu grupo de teatro amador, já para a temporada de inauguração do "Teatro Brasileiro de Comédia', em 1948, escolhemos "O Baile dos Ladrões', de Jean Anouilh, e pedi para o Antonio Candido a tradução. Uma coisa curiosa é que uma vez, quando ele teve de sair do Brasil às pressas, não me lembro bem por que, dei aula de literatura brasileira no lugar dele num colégio. Assim também, uma ou duas vezes, ele escreveu crítica de teatro para mim. As críticas na época não eram assinadas em "O Estado de S. Paulo'. Era do jornal. Era um sinal de prestígio, como um editorial. Ninguém ficou sabendo que as críticas não eram minhas. E eram muito boas."

OSWALD - Conheci o Oswald de Andrade ligeiramente. Mas isso logo se interrompeu e depois eu só entrei em contato com ele já com os outros do "Clima', por intermédio do Paulo Emilio, que era íntimo dele desde 1935. Nós íamos aos domingos à casa do Oswald, conversávamos, o Antonio Candido inclusive. O que houve entre os dois não foi polêmica propriamente, mas uma troca de artigos. Claro que eu fiquei do lado do Antonio Candido. Nessa ocasião, nós já éramos muito íntimos. O Candido escreveu um artigo sobre o Oswald. O Oswald não gostou e respondeu num artigo como sempre um pouco violento. Uma coisa inteiramente injusta. Mas o Antonio Candido não se deixou levar por isso.
Quando apareceu outro livro do Oswald, ele tornou a fazer a crítica, objetivamente e mais positiva. O Oswald o procurou e ficaram amigos. Chegaram a ficar íntimos mesmo. O Antonio Candido assistiu ao último casamento dele. O Oswald teve várias mulheres, mas sempre fazendo questão, se possível, de se casar (risos). Estou exagerando. Mas com a última ele fez questão de se casar. O Antonio Candido, se não me engano, foi padrinho do filho desse último casamento, que morreu num desastre de automóvel."

SUPLEMENTO LITERÁRIO - "Foi o Antonio Candido que fez todo o projeto do "Suplemento Literário'. Durante uns três meses ele fez o planejamento. O Candido reúne, o que não é fácil, as qualidades de invenção e execução. É um indivíduo imaginoso, mas também um executivo. Como eu era amigo dele, aparecia lá de vez em quando para conversar, mas nunca pensei em ser diretor do "Suplemento'. Aí, de repente, ele me pergunta se eu gostaria de ser diretor. Aceitei, porque, inclusive do ponto de vista monetário, era uma diferença muito grande, e eu era apenas crítico. Dirigi o "Suplemento' por dez anos. O Antonio Candido não se desligou inteiramente. Eu estava sempre em contato com ele. Era a ele, por exemplo, que eu submetia no início a escolha dos poetas novos e inéditos."

LEGADO - "A maior contribuição do grupo "Clima' é do Antonio Candido, sem dúvida, e do "Formação da Literatura Brasileira', que continua sendo editado constantemente, fora todos os outros livros -uma bibliografia muito grande. Por outro lado, fiz minha tese sobre João Caetano, o grande ator brasileiro do século 19. Sem termos combinado, nós todos voltamos um pouco para o início das nossas respectivas áreas no Brasil. O Lourival escreveu sobre o barroco mineiro. O Paulo Emilio fez sua tese sobre Humberto Mauro. E ao lado disso fizemos críticas modernas. Tínhamos atuação no presente e no passado. Não foi propriamente o que escrevemos em "Clima'. O que deu prestígio a "Clima' foi a carreira que nós fizemos depois do fim da revista."

CENSURA - "Quando surge "Clima', a revista não era política. A censura era fortíssima naquela época. Primeiro, era a dificuldade de ter a licença para publicar. No dia em que aprovaram a publicação de "Clima', negaram para umas 20 ou 30 outras revistas. Não se publicava nada, era sistemático. Recusavam até revista sobre padaria. O clube de cinema que fizemos também foi fechado. A aprovação de "Clima' se deu por meio da influência de um primo do Antonio Candido que morava no Rio de Janeiro e tinha conhecidos. Se não me engano, a pessoa que influiu foi o poeta Augusto Frederico Schmidt, que era um sujeito rico ligado às pessoas poderosas. E era uma revista puramente literária."

POLÍTICA - "Com a censura diminuindo a partir de 42, até 44, nós dois entramos no Partido Socialista Brasileiro, ainda quando era Esquerda Democrática. Trabalhamos juntos. Pregamos cartazes na rua por ocasião da primeira eleição depois da queda do Getúlio. Fui candidato, o Antonio Candido foi candidato, mas só para completar a chapa. Nenhum dos dois queria fazer carreira política. No Rio, alguns escritores até tiveram alguma votação. Em São Paulo, não, os escritores não tiveram votação nenhuma. No dia da eleição, era preciso distribuir os votos. Se o partido não fornecesse as cédulas de voto, não tinha como votar nele. Eu tinha de percorrer aqui em São Paulo os centros eleitorais e distribuir as cédulas do partido. Não me lembro se o Antonio Candido também fez isso, mas colar cartaz ele colou. O partido teve uma votação muito pequena. Tinha muito intelectual e pouco operário. É por isso que o Antonio Candido ficou tão entusiasmado, mais tarde, com o Partido dos Trabalhadores. Porque era o contrário.
O Antonio Candido ainda participou de pequenos grupos contra o Getúlio, antes de ele cair, ligados não só à esquerda, mas também aos liberais. O Getúlio impunha um regime de arrocho. O nosso grande choque veio quando o Prestes foi finalmente liberado e deu força ao Getúlio na eleição. O governo do Getúlio tinha mandado a mulher dele para a Alemanha, onde ela foi morta. Havia muito na esquerda essa idéia de que a pessoa tinha de ser realista, reagir de acordo com a realidade social e econômica, sem levar em conta os motivos pessoais, e isso levado ao extremo."

MEDICINA - "Nós dois prestamos exame para medicina. Para mim não houve pressão nenhuma. Para o Antonio Candido houve. Meu pai era muito liberal nas relações com os filhos. Era um homem muito ocupado, médico aqui em São Paulo, professor da Faculdade de Medicina. Não pressionou. Mas eu cresci com a idéia de que seria como o meu pai, médico, que fazia literatura paralelamente. Porque meu pai também tinha uma vocação literária, publicou livros, discursos etc. Ele foi o primeiro diretor da Faculdade de Filosofia, a convite do Julio Mesquita Filho e do Armando de Salles Oliveira. Ele frequentava "O Estado de S. Paulo' e era médico e amigo pessoal deles. Ficou dois ou três anos como diretor da faculdade. Quando entrei, era o diretor. O Paulo Emilio, que era muito divertido, inventou que "o Decio não entrou numa faculdade onde o pai era apenas professor e foi entrar numa outra onde o pai era o diretor'.
O pai do Antonio Candido, pelo que ele diz, era uma pessoa muito mais disciplinada, e também muito mais disciplinadora. Mais rígido. Eu e Paulo Emilio, por exemplo, no ginásio éramos vagabundos. Só cuidávamos de literatura. Antonio Candido sempre foi estudioso. Fiz dois exames para medicina e fui reprovado nos dois. Aí desisti de uma vez, vi que não era a minha vocação.
O Antonio Candido também fez um exame, em que não foi aprovado. Depois, resolveu passar para a Faculdade de Filosofia, mas primeiro telefonou para o pai, em Poços de Caldas, pedindo permissão. O pai disse: "Então você faça, mas faça também a Faculdade de Direito'. Ele fez e não terminou."

ABSTÊMIOS - "Isso foi o Luis Martins que inventou. Não é verdade. O Antonio Candido gostava muito de vinho, o Lourival Gomes Machado e o Ruy Coelho também bebiam vinho e uísque, o único abstêmio era eu (risos). Não era por princípio; eu não gostava. Nossas reuniões na Confeitaria Vienense não tinham bebida, porque era uma confeitaria. Se frequentávamos confeitaria e não bar, era porque naquela época as moças que saíam com a gente eram solteiras -e moça solteira não frequentava bar. Além disso, era o horário, à saída das aulas. Nós tomávamos chá, chocolate, essas coisas. Às vezes, vinho do porto e aperitivos."

CANTORES - "Canções francesas nós todos cantávamos. Havia sempre os que puxavam e o resto acompanhava. Mas, como eram sempre as mesmas, no fim todo mundo sabia mais ou menos a letra. Tínhamos uma influência francesa muito grande. Na Faculdade de Filosofia, quando eu entrei, só havia uma aula em português, que era história do Brasil. O resto era em francês ou italiano. Quando entrei na faculdade sabia muito pouco francês. Aprendi realmente ouvindo aulas de filosofia e ciências sociais. Eu e o Antonio Candido gostávamos muito de ópera, cantávamos às vezes trechos de óperas em dupla. O Antonio Candido tem um ouvido musical ótimo, ele é muito afinado. E depois tem uma grande memória. Ele sabia cantar também coisas de menino, coisas sertanejas. Tem um disco em que ele lê Guimarães Rosa e entoa uma cantilena caipira. E canta muito bem."



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