São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS
No fio da navalha



Traduções de "Poesia Alheia", de Nelson Ascher, se equilibram entre precisão e invenção
IVO BARROSO
especial para a Folha

Uma nova antologia contendo 124 poemas traduzidos de 11 línguas ("Poesia Alheia", de Nelson Ascher, considerado o "mais criativo dos jovens tradutores de poesia, em São Paulo"), poderia reabrir a velha quizília sobre a "invisibilidade" versus a "presença ostensiva" do tradutor na transposição de um poema. Parece pacífico que um poema traduzido deva guardar uma relação de dependência com o original. Ao mesmo tempo, é desejável que funcione como um poema autônomo, ou seja, que disponha da mesma "carga poética" de seu modelo e não que se apresente como um revérbero robótico de experiências laboratoriais. Porém que essa autonomia não implique a substituição do original por um poema diverso, do tradutor, que neste caso deixaria de ser a "personna" para se transformar no personagem principal.
Os românticos, quando se afastavam de seus modelos, fosse por motivos estilísticos, fosse com a intenção de alterar os dados do "conteúdo", tinham a delicadeza de falar em paráfrase, paródia, glosa, imitação ou adaptação, para distingui-las da tradução propriamente dita, ou seja, aquela em que se busca uma "proximidade" por assim dizer "psicossomática" com o original.
O próprio Manuel Bandeira -responsável por modelar coletânea do gênero-, ao traduzir um soneto de Ronsard, porque as palavras não correspondessem exatamente ao que estava dito no cantor de Cassandra, não hesitou em chamá-lo "Paráfrase de Ronsard". Contudo, um dia "Malhezra vint" e decretou "make it new", o que levou alguns discípulos até hoje a interferirem na transposição de um poema a ponto de tornar irreconhecível o original.
Por sorte, Nelson Ascher, excelente tradutor "tout court", não age assim nem pretendeu o exagero de transformar todos os poemas traduzidos em poemas seus. Isso porque atua com todas aquelas qualidades que ele próprio arrola como sendo as do bom tradutor: "Perícia, inteligência, agudeza de percepção, sensibilidade, elegância, a aptidão para encontrar soluções melhores e menos óbvias etc.".
Domina, além disso, a técnica do verso, sabe metrificar (o que não é comum nos poetas/tradutores jovens), faz elástica e eclética utilização da rima. Trafega com desenvoltura não só pelas línguas "comuns", mas igualmente por outras menos frequentes, vertendo versos latinos, húngaros, poloneses, tchecos, servo-croatas, hebraicos e mais, provençais. Prepara ainda uma antologia de poemas russos. Mas tem o cavalheirismo e a honestidade de assinalar, no prefácio, sua gratidão a quantos o auxiliaram nesse passeio por Babel. E alude até mesmo a um leitor desconhecido que lhe apresentou valiosas sugestões...
Seguramente na maioria dos casos agiu como os nossos mortais tradutores que buscam dar ao leitor o conteúdo e o estilo dos poemas traduzidos. Há verdadeiras preciosidades desse nível, e desde logo se informe que a tradução de um poema de Ungaretti ("Tu Ti Spezzasti") é das mais belas realizações tradutórias que temos visto ultimamente, cheio de soluções criativas capazes de manter ou compensar a arquitetura sinfônica do poema alheio ("Troppo umano lampo per l'empio,/ Selvoso, accanito, ronzante/ Ruggito d'un sole ignudo// Lampejo demasiado humano para/ o atroz, feroz, selvático, rosnante/ rugido de um desnudo sol").


A OBRA
Poesia Alheia - Nelson Ascher. Ed. Imago (r. Santos Rodrigues, 201-A, CEP 20250-430, RJ, tel. 021/502-9092). 378 págs. R$ 30,00.


A rigor, todas as suas traduções podem ser lidas como poemas autônomos e, ao serem comparadas com os originais, comprovar seu caráter de traduções. Mas mesmo nos momentos em que, esquecendo os leitores, parece oficiar nas aras da "transcriação", Ascher, graças ao seu bom gosto literário e à sua natural inclinação para esta arte, consegue permanecer imune ao vezo de se sobrepor ao original, conquanto às vezes, no desejo de "encontrar soluções menos óbvias", modifique desnecessariamente um verso que funcionaria perfeitamente -como no original- com as palavras da solução encontrada pelo próprio autor.
Armado com tal naipe de qualidades, o resultado seriam esses 122 poemas (excluímos Horácio 3/30 e M. Drayton) traduzidos com a exímia destreza de alguém cônscio do domínio de sua arte, a começar pelo belo panorama denominado "Roma em Ruínas", em que, a um tema latino de Janus Vitalis ("Romae in Roma"), se seguem cinco variantes (du Bellay, Szarzynsky, Heywood, Quevedo e Goethe), todas seis traduzidas de modo a preservar as características léxico-formais dos respectivos modelos.
A possível determinação de Nelson Ascher em evitar as presenças "manjadas" de todas as antologias do gênero o levou a privilegiar nomes (alguns impronunciáveis) que o leitor comum lerá pela primeira vez. O que será muito elogiável, se entendido como forma de familiarizar nosso pobre leitor com algumas composições de alta qualidade até aqui desconhecidas, ainda que, num caso ou outro, não conseguíssemos compartilhar do encantamento que o teria levado a selecioná-las e traduzi-las. As poucas peças passíveis de cotejo com traduções preexistentes (Yeats, por exemplo) deixam ver, no entanto, que não se deveu a um receio de comparação esse expurgo de "antologiáveis", já que suas realizações se mostram bem superiores àquelas. É possível que tenha prevalecido esse gosto dos "happy few" pelo bizarro.
Mas houve um momento (ou dois) em que Nelson Ascher certamente extrapolou: primeiro, ao "aggiornar" o "aere perennius" de Horácio (65 - 8 a.C.) em "um monumento mais alto que o World Trade Center"; depois, na tentativa de emular/amolar/imolar ou humilhar seu mestre Pignatari, que havia transformado a "Margot" de Villon numa cafetina do Brás com direito a "squiaffo", "ubriaco" (sic, sic) e tudo, Nelson, tomado por "um vento de nada", resolveu fazer uma "transg(l)osação" com o "Farwell to Love" do pobre Michael Drayton (1563-1631), poeta elizabetano bem-comportado, cantor em geral de amores platônicos, transfigurando-o num tremendo boca-do-inferno paulistês em crise de Viagra. "Magina"! Ficamos a imaginar o que poderia entrar numa tradução do famoso soneto da dupla Verlaine-Rimbaud, cuja explicitude já se patenteia no título...
Os dois casos citados, no entanto, não deslustram em nada o excelente trabalho desse tradutor que, ao lado de inumer-admir-áveis acertos, talvez por um receio infundado de parecer não-vanguardista, tenha se deixado seduzir por esse tipo de poema-piada extemporâneo. A leitura deste "Poesia Alheia", de Nelson Ascher, que recomendamos a todos os cultores do verso, principalmente àqueles que se interessam por tradução, confirmará (a partir do esclarecedor prefácio) a seriedade da obra, feita com o conhecimento de causa, a aptidão e o instrumental poético de alguém que paira acima do vale-tudo tradutório ora em turnê pelo país.


Ivo Barroso é poeta, crítico e tradutor. Verteu do francês, entre outros, "Arthur Rimbaud - Poesia Completa" (Topbooks).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.