São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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PONTO DE FUGA
Fotografia em Arles

JORGE COLI
especial para a Folha, na Provença

São tantos os festivais na Provença -mas é o de Arles que traz, há 29 anos, uma inevitável atualidade. A cidade não parece prestar-se: é a mais profundamente provençal, a mais interiorizada, a mais caipira, em todos os excelentes sentidos da palavra. É também senhora de um estupendo patrimônio arquitetural, remontando à antiguidade clássica e atingindo um apogeu com os conjuntos medievais de Saint Trophime, bem no centro, e o de Montmajour, em pleno campo, invenções essenciais da arte românica.
Nesses diversos lugares espalham-se os "Encontros Internacionais de Fotografia". O tema deste ano é "Uma Nova Paisagem Humana", com um número muito alto de mostras e atividades. Vieram algumas estrelas da provocação: Oliviero Toscani, por exemplo, e David LaChapelle, a quem é consagrada uma exposição diabolicamente sedutora, onde se revela uma verdadeira cultura pictural disfarçada por traz de um kitsch hilariante, atingindo certa essência da cultura americana.
Seus retratos de Leonardo DiCaprio como Cristo ou como Marlon Brando; de Madonna como... a Madona; de Matt Dillon através de um copo; suas composições malucas, em que o mundo parece ter se tornado de plástico, formam um caleidoscópio que joga com referências. Mas há também a confidencial, feminina Francesca Woodman, jovem fotógrafa americana que se suicidou aos 22 anos. Muita produção recente, desigual, por vezes vibrante. Alguns mestres do passado em retrospectiva -Federico Pantellani, Pietro Donzelli-, escolhas cuidadosas e reveladoras, evitando monstros sagrados como Cartier-Bresson, em quem, entretanto, a noção de "paisagem humana" faz inevitavelmente pensar.

GUARDA-SOL - Visão panorâmica em grande formato, cores pálidas de aquário, multidões que não se reduzem à massa anônima: cada personagem é nítido, preciso, presente. Parecem colagens: são instantâneos, no entanto. Massimo Vitale os capta do alto, de um ponto de vista estratégico que permite o conjunto e o singular. Imagens de infinitos veranistas italianos, expostos na grande e luminosa nave da igreja de Montmajour.
O olhar não se cansa de examiná-los, passando de um rosto a outro, de um gesto a outro, no inventário das posturas, das expressões, das fisionomias, das atitudes. Classe média de hoje, em discotecas ou no mar, que se transforma em indivíduos estranhamente ameaçados e inconscientes. Uma das fotografias, "Roosiguano Solvey", serviu para o cartaz do festival de Arles: são descuidados banhistas divertindo-se na água e na areia, com uma paisagem de usina nuclear ao fundo. Porém, mesmo em situações "neutras", os personagens se encontram tão abandonados e fechados em si próprios, fixados em atitudes tão diversas e expressivas, que o espectador crê poder observar, como um falso deus, a frágil e diminuta humana condição.

LÓBULO - Atravessar o pátio do antigo hospital de Arles, entre canteiros de colorido muito vivo, é, um pouco, entrar na pintura que fez dele Van Gogh, logo depois de sua internação por causa da orelha cortada. Numa sala, ao fundo, o rigor do branco e preto. São os fotógrafos húngaros "que ficaram", como a exposição se intitula. Em vez de Moholy-Nagy, Capa, Brassa$, Kertez, que fizeram grandes carreiras internacionais, alguns nomes menos conhecidos fora da Hungria. São feiticeiros de imagens sintéticas, de volumes e espaços em composições sólidas, de sombras contrastadas. Nada de distorções expressionistas, antes recortes oníricos do visível, por vezes francamente surrealistas.

DEFINITIVO - Disfarmer, fotógrafo profissional de uma pequena cidade do Arkansas, morreu com 75 anos em 1957. Sua obra foi descoberta no início dos anos 70 e, em Arles, está exposta no claustro de Saint Trophime. Passou a vida tirando retratos: pessoas endomingadas, imóveis, olhando para a lente. Há algo de escultórico nesses cabelos, chapéus, fitas, casacos, e muito mistério nos olhares fixos, nas bocas de sorrisos raros. Disfarmer soube suscitar um diálogo silencioso entre realismo e eternidade.


Jorge Coli é historiador da arte.
Coli20@hotmail.com



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