São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2001

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+ brasil 502 d.C.

Os governadores e seus exércitos rebelados

José Murilo de Carvalho

Em 1997, houve revoltas de praças das polícias militares em 13 Estados. Em Minas Gerais, morreu um policial. Discutiu-se muito, falou-se em salários baixos, em quebra de hierarquia e disciplina, em ilegalidade da greve de policiais, em inadequação da atribuição da segurança a duas polícias separadas. Foram feitas propostas de reforma, apresentados projetos de lei, oferecidas emendas à Constituição. Blablablá. Alguns cabos e sargentos se elegeram na esteira do movimento e tudo ficou na mesma. Os lobbies das PMs e da Polícia Civil no Congresso, o receio dos governadores de enfrentar seus pequenos exércitos e a hesitação do Executivo federal reduziram tudo à tradicional pizza. Voltam as greves com as mesmas reivindicações salariais. Policiais encapuzados exibem suas armas e desafiam os governadores. Mas surge desta vez um complicador ausente em 1997: os assaltos, saques, agressões e mortes acontecidos durante a greve da PM baiana. Aproveitando a ausência de policiamento, a miséria urbana exibiu por um momento sua cara ameaçadora. Os sem-casa, sem-comida e sem-emprego, o povão, a "canaille" das ruas mostraram o que pode acontecer em nossas grandes cidades com o afrouxamento da segurança: a população assustada, recolhida a suas casas, a propriedade, a segurança e a vida em perigo. O que era em 1997 um problema policial agora se tornou algo muito maior e mais assustador. Revoltou-se então o repressor, revoltam-se hoje repressor e reprimido.

Governadores assustados
Os governadores correm assustados a Brasília, pedindo socorro ao governo federal. Renovam-se as discussões sobre os velhos temas: salário, disciplina, hierarquia, sistema de segurança, Guarda Nacional (não recordo se esta foi lembrada em 1997). São propostas as mesmas medidas de 1997, que sofrem as mesmas objeções, que levam à mesma inatividade.
Convém espanar a areia jogada nos olhos do público em todas essas discussões. Os pais das PMs, como existem hoje, são os governadores -ou presidentes dos Estados. Eles as criaram no bojo do federalismo da Constituição de 1891. As antigas polícias provinciais, que não passavam de 10 mil homens no país inteiro, foram transformadas em exércitos estaduais. A expressão exércitos estaduais já era usada em 1898 por Rui Barbosa, que considerava o fenômeno uma "excrescência arruinadora e dissolvente", ameaça à sobrevivência da União. No sistema federal, as PMs passaram a ter a mesma organização, hierarquia, treinamento e mentalidade do Exército. A PM paulista possuía artilharia e uma esquadrilha de aviação militar. Ela contratou uma missão militar francesa em 1906, 14 anos antes que o Exército fizesse a mesma coisa.


O que era em 1997 um problema policial agora se tornou algo muito maior e mais assustador; revoltou-se então o repressor, revoltam-se hoje repressor e reprimido


Os governadores dos grandes Estados, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, usavam seus exércitos como armas políticas nas disputas nacionais. Artur Bernardes tomou posse na Presidência em 1922 sob a proteção das tropas de seu exército estadual.
O Exército nacional não se conformava com a situação de dependência em que se achava em relação aos exércitos estaduais. Aproveitando o ímpeto centralizador do Estado Novo, colocou as PMs sob seu controle e proibiu-lhes o uso de artilharia e de aviação. Passado o hiato democrático de 1945-1964, o Exército retomou o controle das PMs, inclusive indicando coronéis para ocupar as secretarias de Segurança dos Estados. Como consequência, as PMs se militarizaram ainda mais e absorveram a ideologia de segurança nacional e a mentalidade repressora que caracterizavam as Forças Armadas. Cada PM criou sua seção de inteligência que trabalhava em uníssono com as similares das Forças Armadas e da Polícia Civil, investigando, prendendo, torturando, matando. Foram essas PMs, fortalecidas e ainda mais desviadas de suas funções sob as asas do Exército, que voltaram ao comando dos governadores após a democratização, quando o federalismo perdera boa parte de seu vigor. Polícia fortalecida, governadores enfraquecidos: a criatura voltava-se contra o criador, o feitiço contra o feiticeiro.


Em tese, entre nós, o Ministério Público deveria controlar a Polícia Civil, mas o dispositivo constitucional é letra morta na prática das delegacias


O pior de tudo é que em toda essa história ficou ausente o único ponto que interessa ao cidadão brasileiro de hoje: ter uma polícia que proteja sua vida, sua integridade física, sua propriedade, sua liberdade, seu direito de ir e vir. Não ter uma força de segurança pública que lhe transmita desconfiança, insegurança e medo.
O que se discutiu em 97 e o que se discute na crise atual é como atender às demandas salariais, de um lado, e como garantir o controle sobre a polícia, de outro. Isto é, o que interessa à polícia e o que interessa aos governadores. O tema da transformação da polícia em instrumento de proteção do cidadão, agitado intensamente na sociedade nos últimos anos, é posto de lado quando se põem a campo os interesses políticos e corporativos. Os salários dos soldados são baixos? São e devem ser aumentados. Mas ninguém fala dos salários dos oficiais. Um coronel da PM de Mato Grosso ganha R$ 8.000,00, dez vezes mais que um soldado, o dobro do salário de um professor titular de universidade federal. As polícias não aceitam ser unificadas? Defendem seus interesses. Mas não há exemplo no mundo de polícias separadas com funções parciais, fenômeno considerado por especialistas como fonte de irresponsabilidade policial e impunidade de criminosos.

Controle civil externo
A PM não quer o controle do Exército? Tudo bem, mas não aceita também o controle civil externo, encontrado em polícias da tradição centralizada da Europa continental e da tradição descentralizada anglo-saxônica, como as da França, Itália, Grã-Bretanha, Canadá, Estados Unidos. A Real Polícia Montada do Canadá, uma das mais eficientes do mundo, tem dois órgãos nacionais de controle externo, além de trabalhar localmente com a colaboração de comitês de cidadãos. Em tese, entre nós, o Ministério Público deveria controlar a Polícia Civil, mas o dispositivo constitucional é letra morta na prática das delegacias.
Do ponto de vista do cidadão, o único critério, ou pelo menos o mais importante, que deveria presidir às discussões sobre o assunto, é o da adequação da polícia à tarefa de proteger seus direitos. O resto é casuísmo, é contemporização com vícios do passado, é interesse político, é covardia cívica diante de interesses corporativos. Aumentar salário apenas não vai mudar a polícia nem mesmo reduzir sua corrupção. Criar Guarda Nacional pode tranquilizar governadores assustados, mas deixará intata a natureza do sistema de segurança pública. O único auxílio que os governadores deveriam ter é para enfrentar o problema de reformar suas polícias no sentido democrático.
No fundo, aliás, trata-se apenas de cumprir o que dispõe o parágrafo 7º do inciso IV do artigo 144 da Constituição: "A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de sua atividade". Tudo indica, no entanto, que a crise atual, como a de 1997, não resultará na aprovação de nenhuma medida na direção indicada pela Constituição e cobrada pelos brasileiros. A indecisão do governo federal, a fraqueza dos governadores, a conivência dos congressistas e o fortíssimo lobby das polícias vão de novo frustrar a reforma. Isso se não houver retrocesso. A exibição do potencial de desordem das ruas pode levar simplesmente ao reforço do poder repressivo dos órgãos de segurança pública, afastando-os ainda mais dos cidadãos.


José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de "Cidadania no Brasil" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.", do Mais!.



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