São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2001

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+ brasil 502 d.C.

A técnica segundo Derrida

Sergio Paulo Rouanet

Leyla Perrone-Moisés publicou no Mais! de 8/7/01 um magnífico artigo sobre o seminário de Jacques Derrida, realizado em junho, no Rio de Janeiro. Em seu artigo, ela se concentrou nas respostas dadas pelo filósofo às observações introdutórias feitas por vários intelectuais, entre os quais Joel Birman, Chaim Katz e Kathrin Rosenfield. Mas talvez seja útil, para colocar as intervenções de Derrida em seu devido contexto, publicar também aquelas observações. Coube-me introduzir o tema "O Futuro do Homem diante da Tecnologia", o que fiz numa apresentação dividida em três blocos: (1) a questão da técnica em geral; (2) as novas tecnologias do corpo; e (3) as novas tecnologias de comunicação e de informação. (1) Uma das características da modernidade foi a atitude ambivalente com relação à técnica. Por um lado, ela estava a serviço da autonomia do homem, no duplo sentido de facilitar o poder sobre a natureza e de fornecer um modelo de racionalidade que, aplicado à ordem social, pudesse livrá-la dos caprichos e contingências da história. Mas por outro lado ela foi vista como força cega, a serviço da heteronomia, como um poder demoníaco que destruía a natureza, em vez de estabelecer com ela uma relação fraterna, e que se voltava contra o próprio homem, como a concebeu o cinema expressionista alemão, do gênero do "Golem", de Wegener, ou de "Metropolis", de Lang. Tem-se a impressão, hoje, de que essa ambivalência com relação à técnica tenha desaparecido, pelo menos entre os intelectuais, sendo substituída por apenas uma atitude, a de condenação -ou de medo. Não há mais oscilação entre a idealização e a aversão, mas somente aversão, algo como uma tecnofobia. Um divisor de águas, nessa linha, talvez seja o pensamento de Heidegger, para quem a instalação da subjetividade humana como fundamento e centro do mundo não é apenas teórica e especulativa, mas está associada também a um projeto prático, visando ao controle universal, por meio de uma técnica convertida num fim em si. É o mundo da instrumentalização absoluta. No horizonte da modernidade e como consequência da onipotência da técnica estaria o totalitarismo, pois só um regime totalitário, por meio da supervisão de todas as esferas do real, da concentração de todo o poder decisório e da organização racional e burocrática de todas as atividades sociais, poderá satisfazer às exigências de um universo totalmente tecnificado. Assim, atrás do Estado totalitário está a técnica, e atrás da técnica está a metafísica do sujeito. Essas idéias foram desenvolvidas por uma escola filosófica que, embora oposta a Heidegger do ponto de vista ideológico, é profundamente heideggeriana em sua crítica da modernidade: a Escola de Frankfurt. Para ela, a razão técnico-científica se relaciona com as coisas como o ditador se relaciona com os homens: ela conhece na medida em que pode manipular. A essência do real é desde sempre um substrato de dominação. O objeto da investigação científica já é percebido sob a forma de sua funcionalidade virtual.

Neutralidade ilusória
Nisso a ciência já é, a priori, tecnologia, e sua neutralidade é ilusória, porque na qualidade de estofo da dominação já é, a priori, política. O herdeiro da Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas, também se referiu à ciência e à técnica como instrumentos de dominação, na medida em que funcionam como ideologias, mas tem uma perspectiva menos apocalíptica, porque para ele a razão técnico-científica pode funcionar como força positiva, desde que seus fins possam ser discutidos discursivamente, na moldura de uma democracia deliberativa.
A filosofia de Jacques Derrida, como a da Escola de Frankfurt, é muito marcada pelo pensamento de Heidegger. A diferença é que Derrida proclama abertamente essa influência, enquanto em Adorno e Marcuse ela é quase clandestina e precisa ser decifrada no avesso de sua crítica da cultura. Quanto a Habermas, não há dúvida de que foi na crítica heideggeriana da metafísica do sujeito que o autor da "Teoria da Ação Comunicativa" se inspirou para propor uma mudança de paradigma, a passagem da perspectiva subjetiva para a da intersubjetividade linguisticamente mediatizada.
Seria interessante saber como Derrida se relaciona hoje em dia com o pensamento de Heidegger no que diz respeito à técnica. Sem entrar na eterna polêmica sobre a associação de Heidegger com o nazismo, não haveria, justamente na reflexão de Heidegger sobre a técnica, o rastro de um "leitmotiv" nazista, um patos romântico, uma nostalgia do mundo pré-industrial? Em outro contexto, Derrida descreveu muito bem essas características quando disse, em "Margens", que um certo discurso de Heidegger era dominado pela "metafórica da proximidade, da presença simples e imediata, associando à proximidade do ser os valores de vizinhança, do abrigo, de casa, de serviço, de guarda, de voz e de escuta", e quando repetiu, em "Ecografias", que, apesar de tantas denegações, o pensamento de Heidegger a esse respeito "permanece antitecnológico, originarista, quiçá ecologista". Gostaríamos também de conhecer a posição de Derrida no que diz respeito à crítica da modernidade técnico-científica, feita por Adorno e Marcuse. E que dizer da afirmação de Habermas de que Derrida tinha uma posição irracionalista e antiiluminista? A crítica parece perfeitamente injusta, se levarmos em conta que em "Espectros de Marx" Derrida se dissociou da tese de Lyotard sobre o fim das "grandes narrativas" do Iluminismo e disse que as Luzes precisavam ser reinventadas. (2) Entre as novas técnicas, as ligadas à genética estão assumindo uma posição de predominância neste início de milênio, e com elas surgem novas promessas e se ressuscitam antigos temores. É difícil discordar das biotecnologias de caráter terapêutico, como as que visam a prevenir doenças ou aumentar a imunidade diante de certas enfermidades. Mas hesitamos diante de intervenções destinadas a criar homens artificiais, a modificar geneticamente as características do Homo sapiens, a fim de torná-lo mais belo, mais inteligente ou mais dócil, ou a produzir clones humanos. Que pensa Derrida dessa questão? As dúvidas que ela suscita são justificadas ou estão ligadas a uma filosofia humanista tradicional ou mesmo a um preconceito arcaico, ao medo do sacrilégio, de sermos fulminados por nossa arrogância, por nossa "hubris", pela incomensurável presunção que nos impulsiona a usurpar o papel dos deuses? Se nossas inquietações são legítimas, como poderiam elas ser atendidas? Seria razoável propor uma moratória sobre esse gênero de pesquisas? (3) O mundo inteiro está hoje sob a influência das novas tecnologias de comunicação, como a TV a cabo, a televisão via satélite e a internet. Alguns saúdam esse fenômeno como a realização de um sonho milenar, a unificação da humanidade pela dissolução de todas as fronteiras, e outros, mais céticos, o vêem como uma força homogeneizadora, que nivela todas as diferenças. Tanto o sonho quanto o ceticismo se justificam. A possibilidade de diálogo em tempo real entre pessoas situadas em pontos extremos do planeta é algo de exaltante, sem precedentes na história da humanidade. Mas a difusão do mesmo comercial de detergentes em Paris e Katmandu não tem grande coisa a ver com o ideal estóico da "civitas maxima" nem com a noção goethiana da "Weltliteratur", da cultura universal. Devemos evitar qualquer forma de triunfalismo tecnológico. Nada garante que a argumentação moral conduzida pela internet entre um sofista carioca e um filósofo bávaro seja tão fecunda quanto a conduzida, na ágora, entre Górgias e Sócrates. A "pólis" digital não é a mesma coisa que a "pólis" ateniense.

"Netizens"
A World Wide Web tem uma vaga semelhança com um parlamento mundial, mas levará algum tempo até que esse parlamento produza um Gladstone. Mesmo que a humanidade inteira esteja ligada à rede, isso fará dos usuários "netizens" -e não necessariamente "citizens". Uma psicanálise por meio da internet parece hoje um tanto delirante. Nem ágora nem parlamento nem consultório, o ciberespaço não é tampouco um templo, um espaço sagrado. Há poucos dias, o Vaticano decretou que não é lícito aos católicos confessar-se pela internet, pois a confissão requer o encontro direto com o sacerdote, exigência visual e acústica que talvez Jacques Derrida interprete como um resíduo fonocêntrico da velha metafísica da presença. A verdade é que uma comunicação planetária autêntica só pode dar-se quando surgir uma democracia mundial, que relativize as fronteiras políticas. Mas é indubitável que as novas tecnologias de comunicação podem contribuir para o advento dessa democracia, mitigando os reflexos nacionalistas, combatendo a xenofobia, facilitando a aproximação entre as diversas culturas. Bill Gates não tem a estatura nem de Voltaire nem de Zola, mas nenhum dos dois teria desdenhado a internet para lutar pela reabilitação de Calas e pela defesa de Dreyfus. Derrida se refere repetidas vezes aos aspectos positivos das novas tecnologias de comunicação. Mas não ignora tampouco o outro lado da medalha. Por exemplo, lamenta que não se possa discutir na televisão "O Ser e o Tempo" e sugere que se lute para mudar a TV. Entre os agentes dessa luta, ele menciona "um certo número de cidadãos", artistas, intelectuais, cientistas, filósofos, jornalistas. Ou seja, não se trataria de uma ação normativa por parte do Estado, e sim por parte de indivíduos e organizações da sociedade civil. Mas por que não incluir, também, o Estado, já que num país democrático a intervenção estatal é antes de mais nada uma ação dos cidadãos por meio do Estado, os mesmos cidadãos que em outro plano agem por meio das instituições da sociedade civil? Derrida aponta com razão para o paradoxo de que a internacionalização da informação é acompanhada por uma crescente concentração dos meios técnicos de difusão em mãos de empresas de determinados países, como é o caso da CNN. Esse fenômeno fortalece a propensão da mídia dos países desenvolvidos para o etnocentrismo. Mas como contrariar essa tendência num mundo em que as grandes redes são controladas por megaconglomerados de países hegemônicos e na falta de instituições que assegurem à opinião pública dos países periféricos chances efetivas de participar da formação do que Kant chamava de "Weltöffentlichkeit", espaço público mundial? Derrida teme que as novas tecnologias possam gerar a xenofobia, por formação reativa. A condição da hospitalidade é a separação entre o espaço privado e o público. Só posso ser hospitaleiro se tenho o meu "em-casa", o meu "chez-moi", para o qual posso convidar aquele que chega. Ora, o efeito global da TV, do telefone, do fax, dos satélites, da circulação acelerada das imagens é que o "aqui e agora" se torna incerto, o enraizamento é desalojado e se assiste a uma expropriação, uma desterritorialização tão profunda que alimenta o desejo de estar em casa, com os seus, ao lado dos mais próximos. Derrida diz que essa vontade de estar em casa, de manter sua singularidade local ou nacional, é irrenunciável, mas que ela não deveria ser buscada pela volta aos velhos esquemas de nacionalismo político ou linguístico.

Cosmopolitismo apolítico
Tudo isso é incontestável, mas aponta para a necessidade de uma democracia mundial, dotada de uma sociedade civil atuante e de instituições governamentais capazes de regulamentar o funcionamento da mídia, contendo seu etnocentrismo e limitando seu efeito "desterritorializante".
Derrida parece encaminhar-se nessa direção em sua crítica da noção de soberania. Contudo, em vez de democracia mundial, preconiza um cosmopolitismo apolítico, sem governo e sem cidadania, baseado apenas numa noção ampliada de hospitalidade com relação aos estrangeiros. Mas, utopia por utopia, não seria preferível a utopia da democracia mundial, em que o "demos", em vez de ser limitado ao território de uma cidade ou de um país, passaria a abranger o mundo inteiro, o que significa que por um lado desapareceria o estrangeiro na qualidade de categoria jurídica e que, por outro lado, haveria uma instância universal capaz de assegurar a pluralidade das culturas, garantindo um "estar em casa" para todas os homens?
Mesmo que não tenha eliminado todas as divergências, a resposta de Derrida a essas observações foi deslumbrante em brilho e racionalidade. Ele foi igualmente convincente em todas as demais respostas e com isso transformou o seminário do Rio num dos grandes acontecimentos culturais do ano.


Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".



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