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A técnica segundo Derrida
Sergio Paulo Rouanet
Leyla Perrone-Moisés publicou no
Mais! de 8/7/01 um magnífico artigo sobre o seminário de Jacques
Derrida, realizado em junho, no
Rio de Janeiro. Em seu artigo, ela se concentrou nas respostas dadas pelo filósofo
às observações introdutórias feitas por
vários intelectuais, entre os quais Joel
Birman, Chaim Katz e Kathrin Rosenfield. Mas talvez seja útil, para colocar as
intervenções de Derrida em seu devido
contexto, publicar também aquelas observações.
Coube-me introduzir o tema "O Futuro do Homem diante da Tecnologia", o
que fiz numa apresentação dividida em
três blocos: (1) a questão da técnica em
geral; (2) as novas tecnologias do corpo;
e (3) as novas tecnologias de comunicação e de informação.
(1) Uma das características da modernidade foi a atitude ambivalente com relação à técnica. Por um lado, ela estava a
serviço da autonomia do homem, no duplo sentido de facilitar o poder sobre a
natureza e de fornecer um modelo de racionalidade que, aplicado à ordem social,
pudesse livrá-la dos caprichos e contingências da história. Mas por outro lado
ela foi vista como força cega, a serviço da
heteronomia, como um poder demoníaco que destruía a natureza, em vez de estabelecer com ela uma relação fraterna, e
que se voltava contra o próprio homem,
como a concebeu o cinema expressionista alemão, do gênero do "Golem", de
Wegener, ou de "Metropolis", de Lang.
Tem-se a impressão, hoje, de que essa
ambivalência com relação à técnica tenha desaparecido, pelo menos entre os
intelectuais, sendo substituída por apenas uma atitude, a de condenação -ou
de medo. Não há mais oscilação entre a
idealização e a aversão, mas somente
aversão, algo como uma tecnofobia.
Um divisor de águas, nessa linha, talvez seja o pensamento de Heidegger, para quem a instalação da subjetividade
humana como fundamento e centro do
mundo não é apenas teórica e especulativa, mas está associada também a um
projeto prático, visando ao controle universal, por meio de uma técnica convertida num fim em si. É o mundo da instrumentalização absoluta. No horizonte da
modernidade e como consequência da
onipotência da técnica estaria o totalitarismo, pois só um regime totalitário, por
meio da supervisão de todas as esferas do
real, da concentração de todo o poder
decisório e da organização racional e burocrática de todas as atividades sociais,
poderá satisfazer às exigências de um
universo totalmente tecnificado.
Assim, atrás do Estado totalitário está a
técnica, e atrás da técnica está a metafísica do sujeito. Essas idéias foram desenvolvidas por uma escola filosófica que,
embora oposta a Heidegger do ponto de
vista ideológico, é profundamente heideggeriana em sua crítica da modernidade: a Escola de Frankfurt. Para ela, a razão técnico-científica se relaciona com as
coisas como o ditador se relaciona com
os homens: ela conhece na medida em
que pode manipular. A essência do real é
desde sempre um substrato de dominação. O objeto da investigação científica já
é percebido sob a forma de sua funcionalidade virtual.
Neutralidade ilusória
Nisso a
ciência já é, a priori, tecnologia, e sua
neutralidade é ilusória, porque na qualidade de estofo da dominação já é, a priori, política. O herdeiro da Escola de
Frankfurt, Jürgen Habermas, também se
referiu à ciência e à técnica como instrumentos de dominação, na medida em
que funcionam como ideologias, mas
tem uma perspectiva menos apocalíptica, porque para ele a razão técnico-científica pode funcionar como força positiva, desde que seus fins possam ser discutidos discursivamente, na moldura de
uma democracia deliberativa.
A filosofia de Jacques Derrida, como a
da Escola de Frankfurt, é muito marcada
pelo pensamento de Heidegger. A diferença é que Derrida proclama abertamente essa influência, enquanto em
Adorno e Marcuse ela é quase clandestina e precisa ser decifrada no avesso de
sua crítica da cultura. Quanto a Habermas, não há dúvida de que foi na crítica
heideggeriana da metafísica do sujeito
que o autor da "Teoria da Ação Comunicativa" se inspirou para propor uma mudança de paradigma, a passagem da
perspectiva subjetiva para a da intersubjetividade linguisticamente mediatizada.
Seria interessante saber como Derrida
se relaciona hoje em dia com o pensamento de Heidegger no que diz respeito
à técnica. Sem entrar na eterna polêmica
sobre a associação de Heidegger com o nazismo, não haveria, justamente na reflexão de Heidegger sobre a técnica, o
rastro de um "leitmotiv" nazista, um patos romântico, uma nostalgia do mundo
pré-industrial? Em outro contexto, Derrida descreveu muito bem essas características quando disse, em "Margens",
que um certo discurso de Heidegger era
dominado pela "metafórica da proximidade, da presença simples e imediata, associando à proximidade do ser os valores
de vizinhança, do abrigo, de casa, de serviço, de guarda, de voz e de escuta", e
quando repetiu, em "Ecografias", que,
apesar de tantas denegações, o pensamento de Heidegger a esse respeito "permanece antitecnológico, originarista,
quiçá ecologista".
Gostaríamos também de conhecer a
posição de Derrida no que diz respeito à
crítica da modernidade técnico-científica, feita por Adorno e Marcuse. E que dizer da afirmação de Habermas de que
Derrida tinha uma posição irracionalista
e antiiluminista? A crítica parece perfeitamente injusta, se levarmos em conta
que em "Espectros de Marx" Derrida se
dissociou da tese de Lyotard sobre o fim
das "grandes narrativas" do Iluminismo
e disse que as Luzes precisavam ser reinventadas.
(2) Entre as novas técnicas, as ligadas à
genética estão assumindo uma posição
de predominância neste início de milênio, e com elas surgem novas promessas
e se ressuscitam antigos temores. É difícil
discordar das biotecnologias de caráter
terapêutico, como as que visam a prevenir doenças ou aumentar a imunidade
diante de certas enfermidades. Mas hesitamos diante de intervenções destinadas
a criar homens artificiais, a modificar geneticamente as características do Homo
sapiens, a fim de torná-lo mais belo, mais
inteligente ou mais dócil, ou a produzir
clones humanos.
Que pensa Derrida dessa questão? As
dúvidas que ela suscita são justificadas
ou estão ligadas a uma filosofia humanista tradicional ou mesmo a um preconceito arcaico, ao medo do sacrilégio,
de sermos fulminados por nossa arrogância, por nossa "hubris", pela incomensurável presunção que nos impulsiona a usurpar o papel dos deuses? Se
nossas inquietações são legítimas, como
poderiam elas ser atendidas? Seria razoável propor uma moratória sobre esse gênero de pesquisas?
(3) O mundo inteiro está hoje sob a influência das novas tecnologias de comunicação, como a TV a cabo, a televisão
via satélite e a internet. Alguns saúdam
esse fenômeno como a realização de um
sonho milenar, a unificação da humanidade pela dissolução de todas as fronteiras, e outros, mais céticos, o vêem como
uma força homogeneizadora, que nivela
todas as diferenças. Tanto o sonho quanto o ceticismo se justificam. A possibilidade de diálogo em tempo real entre pessoas situadas em pontos extremos do
planeta é algo de exaltante, sem precedentes na história da humanidade.
Mas a difusão do mesmo comercial de
detergentes em Paris e Katmandu não
tem grande coisa a ver com o ideal estóico da "civitas maxima" nem com a noção goethiana da "Weltliteratur", da cultura universal. Devemos evitar qualquer
forma de triunfalismo tecnológico. Nada
garante que a argumentação moral conduzida pela internet entre um sofista carioca e um filósofo bávaro seja tão fecunda quanto a conduzida, na ágora, entre
Górgias e Sócrates. A "pólis" digital não é
a mesma coisa que a "pólis" ateniense.
"Netizens"
A World Wide Web tem
uma vaga semelhança com um parlamento mundial, mas levará algum tempo até que esse parlamento produza um
Gladstone. Mesmo que a humanidade
inteira esteja ligada à rede, isso fará dos
usuários "netizens" -e não necessariamente "citizens". Uma psicanálise por
meio da internet parece hoje um tanto
delirante. Nem ágora nem parlamento
nem consultório, o ciberespaço não é
tampouco um templo, um espaço sagrado. Há poucos dias, o Vaticano decretou
que não é lícito aos católicos confessar-se
pela internet, pois a confissão requer o
encontro direto com o sacerdote, exigência visual e acústica que talvez Jacques
Derrida interprete como um resíduo fonocêntrico da velha metafísica da presença. A verdade é que uma comunicação planetária autêntica só pode dar-se
quando surgir uma democracia mundial, que relativize as fronteiras políticas.
Mas é indubitável que as novas tecnologias de comunicação podem contribuir para o advento dessa democracia,
mitigando os reflexos nacionalistas,
combatendo a xenofobia, facilitando a
aproximação entre as diversas culturas.
Bill Gates não tem a estatura nem de Voltaire nem de Zola, mas nenhum dos dois
teria desdenhado a internet para lutar
pela reabilitação de Calas e pela defesa de
Dreyfus.
Derrida se refere repetidas vezes aos
aspectos positivos das novas tecnologias
de comunicação. Mas não ignora tampouco o outro lado da medalha.
Por exemplo, lamenta que não se possa
discutir na televisão "O Ser e o Tempo" e
sugere que se lute para mudar a TV. Entre os agentes dessa luta, ele menciona
"um certo número de cidadãos", artistas,
intelectuais, cientistas, filósofos, jornalistas. Ou seja, não se trataria de uma ação
normativa por parte do Estado, e sim por
parte de indivíduos e organizações da sociedade civil. Mas por que não incluir,
também, o Estado, já que num país democrático a intervenção estatal é antes
de mais nada uma ação dos cidadãos por
meio do Estado, os mesmos cidadãos
que em outro plano agem por meio das
instituições da sociedade civil?
Derrida aponta com razão para o paradoxo de que a internacionalização da informação é acompanhada por uma crescente concentração dos meios técnicos
de difusão em mãos de empresas de determinados países, como é o caso da
CNN. Esse fenômeno fortalece a propensão da mídia dos países desenvolvidos para o etnocentrismo. Mas como
contrariar essa tendência num mundo
em que as grandes redes são controladas
por megaconglomerados de países hegemônicos e na falta de instituições que assegurem à opinião pública dos países periféricos chances efetivas de participar
da formação do que Kant chamava de
"Weltöffentlichkeit", espaço público
mundial?
Derrida teme que as novas tecnologias
possam gerar a xenofobia, por formação
reativa. A condição da hospitalidade é a
separação entre o espaço privado e o público. Só posso ser hospitaleiro se tenho
o meu "em-casa", o meu "chez-moi", para o qual posso convidar aquele que chega. Ora, o efeito global da TV, do telefone, do fax, dos satélites, da circulação
acelerada das imagens é que o "aqui e
agora" se torna incerto, o enraizamento é
desalojado e se assiste a uma expropriação, uma desterritorialização tão profunda que alimenta o desejo de estar em casa, com os seus, ao lado dos mais próximos. Derrida diz que essa vontade de estar em casa, de manter sua singularidade
local ou nacional, é irrenunciável, mas
que ela não deveria ser buscada pela volta aos velhos esquemas de nacionalismo
político ou linguístico.
Cosmopolitismo apolítico
Tudo
isso é incontestável, mas aponta para a
necessidade de uma democracia mundial, dotada de uma sociedade civil
atuante e de instituições governamentais
capazes de regulamentar o funcionamento da mídia, contendo seu etnocentrismo e limitando seu efeito "desterritorializante".
Derrida parece encaminhar-se nessa
direção em sua crítica da noção de soberania. Contudo, em vez de democracia
mundial, preconiza um cosmopolitismo
apolítico, sem governo e sem cidadania,
baseado apenas numa noção ampliada
de hospitalidade com relação aos estrangeiros. Mas, utopia por utopia, não seria
preferível a utopia da democracia mundial, em que o "demos", em vez de ser limitado ao território de uma cidade ou de
um país, passaria a abranger o mundo
inteiro, o que significa que por um lado
desapareceria o estrangeiro na qualidade
de categoria jurídica e que, por outro lado, haveria uma instância universal capaz de assegurar a pluralidade das culturas, garantindo um "estar em casa" para
todas os homens?
Mesmo que não tenha eliminado todas
as divergências, a resposta de Derrida a
essas observações foi deslumbrante em
brilho e racionalidade. Ele foi igualmente
convincente em todas as demais respostas e com isso transformou o seminário
do Rio num dos grandes acontecimentos
culturais do ano.
Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente
na seção "Brasil 502 d.C.".
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