São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997.



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Feminismo de coturno

ERIKA PALOMINO
Colunista da Folha

"We want a revolution" (Nós queremos uma revolução)
Bikini Kill

Puro sexo e pornografia. São as molas deste movimento. Menos ofendidas com a exploração sexual das mulheres do que suas antecessoras, as feministas, as "Riot Grrrls" (RG) começam seu trabalho de casa lidando com estereótipos e elementos clássicos da manipulação da condição feminina.
De um lado, temos como modelos de adoração dessas garotas em estado bruto itens imbatíveis da iconografia pornográfica. Por exemplo, o universo das pin-ups dos anos 40 e 50, por meio do trabalho (de cunho quase anônimo) da fotógrafa norte-americana Bunny Yeager e seus pares. Ou ainda o registro do cinema B de diretores como Russ Meyer, em especial na figura de Tura Satana, a avantajada protagonista de "Faster Pussycat".
A pin-up Betty Page, por sua vez, é alvo de culto absoluto. Com quase 70 anos ela viu ser detonado de quatro anos para cá um processo de "revival" que motivou desde a previsível reedição de livros e postais até chegar à clonagem: descoladas jovens do "downtown" nova-iorquino reproduzem sua famosa franja preta e o ar atrevido, algo insolente.
Recentemente, entrou no "hype" até mesmo a atriz Abbey Lavine, protagonista da produção "Betty Page Story", morta este ano aos 33 anos com câncer no seio. Causa bem apropriada, aliás, a uma heroína "grrrl".
Também o imaginário gráfico das RG recupera das décadas de 40 e 50 o tratamento visual de elementos como a boa dona de casa, com aventais e ferros de passar roupa; o fetiche dos chicotes, botinhas e algemas; as ilustrações da literatura americana do "paperback", nas difamadas e fatais mulheres de atitude "noir".

Vingança
Entra aqui outro dos fundamentos desta cultura. É como se, ao lidar com os clichês mais tolos e evidentes da pornografia, e sem ter saco para adotar a leitura de Camille Paglia, as "grrrls" libertassem e até vingassem as garotas fracas, oprimidas e exploradas em toda a extensão da história da cultura pop.
Assim, apropriam-se a esta estética tópicos como o uso sensual da lingerie, meias de renda (devidamente rasgadas, como convém); cintas-ligas, tops e biquínis -tanto que, ícone dos ícones, a banda de maior adoração da cena "grrrl" leva o nome de Bikini Kill.
Junte-se a isso o legado de estilo e comportamento de outra diva "grrrl" saída do rock, Courtney Love. Foi ela quem trouxe à tona também o look infantil feito de vestidinhos bobos, rendados, bem como o franco uso do cor-de-rosa e dos tons pastel.
"Sou feita de partes de boneca", canta em seu hit "Doll Parts", onde logo depois detona: "Quero ser a garota com o maior pedaço do bolo".
Esses elementos compõem o chamado "girlie wear". Feminino, arrojado, sexy, agressivo.
Como se explica o fato de Love e de outras garotas de tanta atitude aderirem a modo de vestir tão idiotizado, infantilóide, retardado mesmo? O que as faz usar saias rigorosamente mais curtas, vivendo com tanta intensidade dentro de seus grupos posicionamentos contra políticas sexuais que desfavoreçam as mulheres e propiciem a objetificação -inerente à pornografia barata da linguagem "girlie"?
Herança punk
Ao subverter a leitura literal de uma minissaia e de tipos similares de peças, as "grrrls" parecem dizer (ou melhor: gritar): "Nós podemos". É o que, no dialeto do rock, do skate e da noite, se convencionou chamar de "moral": "Ter as manhas", numa condição de respeito conquistado dentro de um núcleo que lhes permite, assim, o direito ao paradoxo.
O movimento "Riot Grrrl" é o feminismo que não precisa queimar o sutiã, mas o usa com as alças visíveis -de preferência na cor preta. É o feminismo de coturno, vivido nas ruas, no dia-a-dia, na hora da camisinha, na hora de atravessar o sinal na avenida e ver quem é que puxa quem pela mão dentro de um show de rock ou de um clube noturno.
A bota pesada dessas meninas é (agora sim) herança direta do radicalismo punk, de um estilo marginal e alternativo por natureza, onde tratar com contradições é diversão e obrigação de toda "Riot Grrrl" que se preze.
E todas elas se prezam muito. Em vários dos fanzines on line disponíveis sob o anel de sites de "Riot Grrrls" (com links interligados) aparecem frases de ordem como o truísmo minimalista "I am a girl" ou mesmo a imperativa "Eat! You look gorgeous" (Coma, você está linda!).
Naturalmente contra ditaduras alimentares e padrões de beleza convencionais, as "Riot Grrrls" estimulam imagens mais fortes (sem eufemismos), valorizando a comilança e trocando entre si receitas de "junk food". É o culto total a personalidades diferenciadas, reverenciando nomes como o da escritora americana Lydia Lunch, a gritona cantora grega Diamanda Galás ou as anti-rock stars Patti Smith, Kim Gordon (do Sonic Youth) e Ani di Franco. É como já disse uma das "Riot Grrrls": "Glamour, my ass".



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