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+ brasil 500 d.C.
A filosofia, hoje apenas uma disciplina universitária,
foi a arte do universal ou da universalização possível da
vida humana, ao mesmo tempo necessária e impossível
Um convite à falsificação
BENTO PRADO JR.
Todas as vezes que o filósofo profissional (todos nós, professores
de filosofia) ouve falar da proximidade entre vida e filosofia, espontaneamente dá de ombros ou franze
as sobrancelhas. Um mal-estar se apodera dele, diante do que lhe parece mero infantilismo ou ignorância do caráter técnico e essencialmente abstrato da obra
filosófica. O que é tolerável no aluno do
secundário (a quem se poderá até mesmo recomendar a leitura de "O Mito de
Sísifo" de Camus com a esperança de levá-lo imperceptivelmente até outro tipo
de leitura: "O Sofista" de Platão ou a
"Monadologia" de Leibniz) já não o será
no universitário, de quem se espera
maior compostura e "seriedade". A filosofia, decididamente, nada tem a ver
com as inquietações mais
ou menos narcísicas do
adolescente.
É certo que essa pedagogia é indispensável e que o
aprendizado da filosofia
exige uma ascese intelectual e pessoal.
Mas lendo, recentemente, um livro de
um historiador notável, especialista em
filosofia antiga e medieval, fui obrigado a
algumas reflexões que estavam distantes
de mim. Falo de Pierre Hadot, professor
no Collège de France, que vim a conhecer, de maneira curiosamente oblíqua,
por meu colega Julian Cass, da pós-graduação em filosofia da Universidade Federal São Carlos, por meio da tradução
americana de alguns de seus escritos. Livro que me veio recomendado por meu
amigo com uma ênfase tanto maior
quanto mais avesso ao estilo do livro em
questão era o estilo de sua própria formação filosófica na Inglaterra, toda centrada na lógica e na epistemologia.
Invisíveis
Mas o que poderiam oferecer de surpreendente ou de inquietante
esses escritos tão clássicos (no tema como no método), que, no entanto, provocaram vivo interesse em Michel Foucault
(cfe. a introdução de Davidson)? Não é,
com efeito, especialmente revolucionário tratar os textos antigos com os cuidados da filologia, fazendo com que a interpretação filosófica venha depois da identificação dos códigos estritos que presidiram a sua produção. Tais códigos, certamente claros para os leitores contemporâneos dos autores, não estão visíveis para nós na superfície dos textos.
É preciso, previamente, escavar "as regras, as formas, os modelos de discurso"
que dão o horizonte do pensamento do
autor. Regras, formas e modelos de discurso que sofrem fundas modificações
devido à longa duração. Tomemos apenas um exemplo, retirado dos tempos
modernos. Podemos, e o fazemos constantemente, ler em continuidade os "Ensaios" de Montaigne, as "Meditações" de
Descartes e os "Devaneios" de Rousseau,
perseguindo as transformações do moderno Sujeito pensante. Mas só podemos
fazê-lo corretamente reconhecendo que
cada um desses textos ou inventa um novo gênero (Montaigne e Rousseau são
inventores de um gênero novo, como
Platão com o "Diálogo") ou o redefine
(como Descartes). A cada gênero, seu
"sujeito".
Como não somos capazes, às vezes, de
decifrar de imediato a figura escondida
numa tapeçaria (uma paisagem que se
revela, de certo ângulo, um rosto humano), frequentemente "temos a impressão, ao ler autores antigos, que escrevem
mal, que a sequência das idéias carece de
coerência e de conexão. Mas é exatamente porque a verdadeira figura nos escapa
que não percebemos a forma que torna
todos os detalhes necessários...".
Ordem a desordem
Diante dessa dificuldade (finalmente o bom senso nos
indica: eles não podem escrever tão mal
assim!), somos tentados a recorrer a instrumentos como a psicologia ou a psicanálise para dar ordem a essa desordem,
vendo no texto a expressão de uma alma
(atribulada ou desesperada, supomos
então "ad hoc", como a de Marco Aurélio em suas "Meditações", que poderíamos imaginar, no entanto, estoicamente
conformado a sua dura condição de imperador romano) e deixando de ver sua
estrutura digamos retórica ou didática,
os mecanismos da composição literária
antiga. Grave, com efeito, é a confusão
entre expressão involuntária e composição refletida segundo regras.
Mas a distância que nos separa desses
textos é maior ainda do que a agora sugerida. Pois esse código ou essa retórica (a
"gramática", digamos, da escrita teórica
na Antiguidade) só são compreensíveis
no seio das práticas e das instituições sociais que as sustentam: um regime de articulação entre prática e teoria que não é
exatamente o que teorizamos e praticamos hoje. Voltando a nosso ponto de
partida, o próprio ensino da filosofia não
tem, nesses tempos diferentes, o mesmo
sentido. E aqui caminhamos numa direção diferente da apontada por Derrida: o
próprio estatuto do texto modificou-se
desde a Antiguidade, e Platão deve ser
(aqui sim) tomado ao pé da letra quando
aponta a deficiência da escrita: ela é muda, não responde a perguntas do leitor.
O ensino da filosofia é essencialmente
oral, e a escrita, apenas um aparelho auxiliar. E isso ainda é dizer pouco: a própria aula, de viva voz, não é nada, se não
ensinar a "mudar a vida" do discípulo
(não se pensa, é claro, antes da modernidade, em "transformar o mundo").
Um pensador antigo (pouco importa
qual, aí todos são iguais) adverte que será
mau o marceneiro que apenas ensinar os
princípios da marcenaria. Pois o que se
pede ao marceneiro é que exerça sua
"techné". Uma aula de marcenaria não
me ajuda a edificar minha casa, como
uma aula de filosofia, transmissão, digamos, de um saber ou de um conhecimento "in abstracto", não modifica minha vida, tornando-a boa, justa, feliz, isto é, humana e racional.
Hoje uma disciplina apenas universitária, de duvidosa cientificidade (ou de segura não-cientificidade), a Filosofia foi a
técnica ou a arte do universal ou da universalização possível da vida humana, ao
mesmo tempo necessária e impossível, já
que irremediavelmente vinculada ao singular ou à idiotia.
Tomemos a possível distância histórica
no presente. Nascido em 1922, P. Hadot
foi exposto às influências do marxismo,
do existencialismo e da filosofia de Wittgenstein (foi o primeiro
francês a escrever sobre o
pensador de Viena); influências que deveriam
torná-lo sensível ao sentido real da prática filosófica. Isso não impede que essa situação do
autor (ou seja, a maneira muito particular pela qual sua perspectiva teórica foi
formada pela cultura e pela sociedade
presente) tenha sido ocasião de um olhar
objetivante sobre uma cultura e uma sociedade outra e distante. Um pouco ao
avesso da carreira do antropólogo, descrita por Lévi-Strauss, para quem a compreensão do outro implica uma dessolidarização consigo mesmo.
Confessemos, nós professores de filosofia, que nossa arte é bem pouco refletida no presente. Toda minha simpatia
ainda vai para gente como Nietzsche e
Wittgenstein, que consideravam nossa
profissão um terrível perigo e nossa situação institucional, um convite à falsificação. O que tem o ensino da filosofia,
hoje, com o esforço de tornar-se digno
de viver? Haveria de comum, entre nosso
discurso e o dos antigos, mais do que
mera homonímia? Como o leitor, continuo desconfiando do "pathos" que anima essa retórica que acabo de exibir, especialmente no jargão da autenticidade.
Mas não posso dormir sem desconfiar
que vai aí algo de Verdade.
Bento Prado Jr. é filósofo, professor na Universidade
Federal de São Carlos e professor emérito da USP. Publicou, entre outros, "Presença e Campo Transcendental" (Edusp) e "Filosofia da Psicanálise" (Brasiliense).
Escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.".
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