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Masp exibe retrospectiva do artista plástico Arman, com obras de 1959 a 1999
Um objeto compulsivo
Lisette Lagnado
especial para a Folha
A proliferação de objetos do cotidiano na arte contemporânea costuma
ser identificada com a "pop art", tendo
como gesto emblemático o advento do
"ready made" de Marcel Duchamp, em
1913. Uma revisão crítica desses desdobramentos na produção brasileira foi
efetuada ao longo deste ano em várias
exposições, notadamente na mostra
"Por Que Duchamp?" (Paço das Artes) e
no eixo curatorial do Instituto Cultural
Itaú. Em cartaz no Masp (Museu de Arte
de São Paulo), a retrospectiva do artista
plástico francês Arman (Armand Pierre
Fernandez, 1928), que reúne obras de
1959 a 1999, oferece um campo de reflexão interessante para detectar os principais conceitos das práticas artísticas deste século.
A discussão acerca do comportamento
da sociedade de consumo assume diversas feições estilísticas, de tensão ou resistência, da crítica à glamourização de seus
efeitos. Existem vários usos da palavra
"objeto": ora como produto (o material),
ora na discussão formal do suporte. Mas
o que proponho aqui é observar o fenômeno de apropriação e coleção.
É preciso recordar o horizonte cultural
do contexto de Arman. Projetou-se já
vinculado ao "Nouveau Realisme", movimento do início dos anos 60, definido
pelo crítico Pierre Restany como "novas
abordagens perceptivas da realidade". O
Novo Realismo apresenta algumas analogias com a pop (inglesa e americana),
no seu compromisso de desviar o curso
da representação.
No Brasil, é impossível dissociar a formulação do objeto de uma vigorosa carga de protesto (1). As ações dos artistas,
nessa década, ressoam nos planos ético-político-sociais. Em texto para a revista
"GAM" (28/8/1968), Hélio Oiticica adverte que o objeto não pode ser pensado
como "categoria acadêmica, híbrida, síntese de pintura-escultura".
Arte morta
Lygia Clark, em carta para Oiticica, referiu-se ao Novo Realismo
nos seguintes termos: "A arte defendida
pelo Restany é arte morta: sempre me dá
a sensação da própria morte do objeto,
do "bric-à-brac" cheio de vivências obscuras e nojentas! A crise é geral e terrível.
(...) Matérias orgânicas cheirando mal
(quase) feitas sem o mínimo sentido de
síntese ou transposição. É absolutamente outra espécie de naturalismo de péssima qualidade (...)" (2).
A "Nova Objetividade Brasileira"
(1967) afirma explicitamente suas diferenças com a "art pop" e o Novo Realismo por meio de alguns princípios, como
a participação do espectador.
Da negação do quadro de cavalete sobre a base, surgiram os "antiquadros"
que conquistaram o espaço até configurar estruturas ambientais. São ambientes
sensoriais, não-tecnológicos, aumentando assim a distância conceitual com os
relevos de Arman.
Oiticica conhecia o trabalho de acumulações de Arman, entendendo-o numa
tradição pós-cubista, assim como os de
Robert Rauschenberg e Jasper Johns.
Mesmo em suas composições tridimensionais, Arman aspira ao drama pictórico (a tradição modernista do "all-over").
Só que fez na sua paleta com mercadorias. Inscreve-se numa releitura da natureza-morta, doméstica pela escolha dos
objetos (já que encontramos moedores
de café, relógios, instrumentos musicais), e sobretudo porta-voz de uma realidade tecnológica e mediática. Suas peças permanecem rígidas ao plano da parede, inseridas dentro de um projeto de
apreensão retiniana de uma superfície
bidimensional. Não há vocação para
conquistar o espaço como realizaria
Yves Klein, seu mais próximo antípoda.
Ora, colocar a questão do objeto implica necessariamente na discussão de um
sujeito. Não por acaso, Yves e Arman são
dois artistas do Novo Realismo que ingressam na cena artística usando seu nome próprio. Quando Arman afirma, em
1960, que o sentido de seu gesto acumulativo consiste em alcançar a "expressão
da consciência coletiva desse mesmo objeto", estamos efetivamente mais próximos da ânsia consumista de Georges Perec ("As Coisas") do que do projeto poético de Francis Ponge ("O Parti Pris das
Coisas").
Isso se justifica. Arman não formula
nem o "neutro" do "ready made" duchampiano, nem a espessura de uma
"coisa" em si, despossuída do "pathos"
do sujeito. Seu compromisso tem profundas raízes numa antropologia cultural típica dos anos 60, com enfoque sociológico. Oiticica, por sua vez, atenta
para uma criação coletiva, em que a individualidade do sujeito se dilui. Para ele, o
objeto "é anulado na sua conceituação
metafísica que contrapõe sujeito a objeto". Oiticica reinventa o cotidiano quando afirma que "um som, um grito, pode
ser o objeto", "é a poética
do instante".
O que passa a importar
é a ação do artista. Nesse
sentido, as "Cóleras"
(1961) de Arman, que se
seguiram às suas primeiras "Acumulações", são
contundentes: o objeto
era tratado com pontapés
e golpes de caratê, jogado,
arremessado contra a parede, quebrado, cortado,
fatiado. Havia um sentido
redentor latente nessa
violência destrutiva, como se fossem necessárias
as combustões e explosões para que a vontade
construtiva pudesse ter
lugar.
A partir dos anos 80, Arman torna-se
vítima da repetição e multiplicação que
tanto regeram sua obra, entregando-nos
uma reflexão estetizante do consumo da
vida pós-moderna. Em que medida podemos olhar essa peregrinação idolátrica
do objeto e retirar algum ensinamento
para a produção contemporânea?
Fragmentos
O gesto que nos fica de
Arman é sua compulsão em arquivar
fragmentos da realidade. Construir uma
coleção é um projeto monumental, isto
é, para a memória. Hoje, o artista-colecionador constitui uma modalidade cada vez mais frequente, uma forma mais
concreta de registrar anotações num diário.
Nessa clave, com diferentes abordagens, encontramos artistas preocupados
em reciclar, classificar, catalogar, etiquetar, criar "famílias" de coisas: os fragmentos de Tony Cragg, o inventário iconográfico do Holocausto de Christian
Boltanski, a gama de vermelhos de Cildo
Meireles, a recriação do cotidiano por
Arthur Bispo do Rosário, as acumulações de Felix Gonzalez-Torrés, os presentes de aniversário de Sophie Calle, o
museu imaginário de Sherrie Levine, a
discussão institucional de Jac Leirner.
Animais de Hirst
Listá-los todos
aqui seria empreender uma outra tarefa
enumerativa e catalográfica. Luta não somente contra o esquecimento, mas ainda contra a dispersão, colecionar é uma
obsessão constitutiva do procedimento
criativo. "Arquivar" transcende o trabalho de acumulação quantitativa. Mantém parentesco com uma resistência à
putrefação. Nesse sentido, os animais de
Damien Hirst, lacrados em vitrines, situam-se num prolongamento natural,
porém em escala mais exacerbada, das lixeiras de Arman.
Após a deterioração do sistema dos objetos, o conceito de entropia ganha o sentido farmacêutico de conservação. A reflexão artística tende para o uso crescente de um léxico patologizante. Só se fala
em crise e sintoma.
O termo "abjeto" retorna, tendo norteado o Novo Realismo, para colocar essa distância inassimilável entre sujeito e
objeto, nem um nem outro, "borderline", funcionando, escreve Rosalind
Krauss, como "uma espinha entalada na
garganta" (3).
Por isso, o texto de Umberto Eco "Sobre Arman" é uma pequena maravilha
(no catálogo da exposição do Masp). Fala com justeza da "poética do catálogo
para caracterizar o tempo da dúvida
quanto à forma e à natureza do mundo,
em oposição à poética da forma acabada,
típica dos momentos de certeza acerca
de nossa identidade".
Notas
1. A questão da vanguarda na década de 60 é vivida
de maneira muito diferente por Hélio Oiticica, que insiste no caráter coletivo da criação, na sua ligação com
mitos populares (o jogo, a dança), com o objetivo de libertar a arte de seu aspecto elitista e excessivamente
intelectual. Já as provocações neodadas de Yves Klein
podem ser lidas hoje como "espetáculos burgueses"
(cf. Hal Foster, "The Return of the Real", MIT Press,
1996, pág. 11).
2. Lygia Clark e Hélio Oiticica. "Cartas 1964-1974" (Editora UFRJ, organização de Luciano Figueiredo, 1996,
pág. 34).
3. "O Destino do Informe", catálogo da exposição
"L'informe - Mode d'Emploi" (Centre Georges Pompidou, 1996, pág. 225). A crítica americana Rosalind
Krauss analisa a repercussão da teoria da abjeção feita
por Julia Kristeva (em "Poderes do Horror").
Lisette Lagnado é crítica de arte, curadora independente e autora de "Leonilson - São Tantas as Verdades" (Doréa Books and Art).
A EXPOSIÇÃO
Arman - Retrospectiva, com curadoria de Daniel Abadie, acontece no Museu de Arte de São
Paulo (av. Paulista, 1578, tel. 0/ xx/11/ 251-5677).
de terça-feira a domingo, das 11h às 18h. Até 9/
1/2000.
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