São Paulo, Domingo, 19 de Dezembro de 1999


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Masp exibe retrospectiva do artista plástico Arman, com obras de 1959 a 1999
Um objeto compulsivo

Lisette Lagnado
especial para a Folha

A proliferação de objetos do cotidiano na arte contemporânea costuma ser identificada com a "pop art", tendo como gesto emblemático o advento do "ready made" de Marcel Duchamp, em 1913. Uma revisão crítica desses desdobramentos na produção brasileira foi efetuada ao longo deste ano em várias exposições, notadamente na mostra "Por Que Duchamp?" (Paço das Artes) e no eixo curatorial do Instituto Cultural Itaú. Em cartaz no Masp (Museu de Arte de São Paulo), a retrospectiva do artista plástico francês Arman (Armand Pierre Fernandez, 1928), que reúne obras de 1959 a 1999, oferece um campo de reflexão interessante para detectar os principais conceitos das práticas artísticas deste século. A discussão acerca do comportamento da sociedade de consumo assume diversas feições estilísticas, de tensão ou resistência, da crítica à glamourização de seus efeitos. Existem vários usos da palavra "objeto": ora como produto (o material), ora na discussão formal do suporte. Mas o que proponho aqui é observar o fenômeno de apropriação e coleção. É preciso recordar o horizonte cultural do contexto de Arman. Projetou-se já vinculado ao "Nouveau Realisme", movimento do início dos anos 60, definido pelo crítico Pierre Restany como "novas abordagens perceptivas da realidade". O Novo Realismo apresenta algumas analogias com a pop (inglesa e americana), no seu compromisso de desviar o curso da representação. No Brasil, é impossível dissociar a formulação do objeto de uma vigorosa carga de protesto (1). As ações dos artistas, nessa década, ressoam nos planos ético-político-sociais. Em texto para a revista "GAM" (28/8/1968), Hélio Oiticica adverte que o objeto não pode ser pensado como "categoria acadêmica, híbrida, síntese de pintura-escultura".

Arte morta
Lygia Clark, em carta para Oiticica, referiu-se ao Novo Realismo nos seguintes termos: "A arte defendida pelo Restany é arte morta: sempre me dá a sensação da própria morte do objeto, do "bric-à-brac" cheio de vivências obscuras e nojentas! A crise é geral e terrível. (...) Matérias orgânicas cheirando mal (quase) feitas sem o mínimo sentido de síntese ou transposição. É absolutamente outra espécie de naturalismo de péssima qualidade (...)" (2). A "Nova Objetividade Brasileira" (1967) afirma explicitamente suas diferenças com a "art pop" e o Novo Realismo por meio de alguns princípios, como a participação do espectador. Da negação do quadro de cavalete sobre a base, surgiram os "antiquadros" que conquistaram o espaço até configurar estruturas ambientais. São ambientes sensoriais, não-tecnológicos, aumentando assim a distância conceitual com os relevos de Arman. Oiticica conhecia o trabalho de acumulações de Arman, entendendo-o numa tradição pós-cubista, assim como os de Robert Rauschenberg e Jasper Johns. Mesmo em suas composições tridimensionais, Arman aspira ao drama pictórico (a tradição modernista do "all-over"). Só que fez na sua paleta com mercadorias. Inscreve-se numa releitura da natureza-morta, doméstica pela escolha dos objetos (já que encontramos moedores de café, relógios, instrumentos musicais), e sobretudo porta-voz de uma realidade tecnológica e mediática. Suas peças permanecem rígidas ao plano da parede, inseridas dentro de um projeto de apreensão retiniana de uma superfície bidimensional. Não há vocação para conquistar o espaço como realizaria Yves Klein, seu mais próximo antípoda. Ora, colocar a questão do objeto implica necessariamente na discussão de um sujeito. Não por acaso, Yves e Arman são dois artistas do Novo Realismo que ingressam na cena artística usando seu nome próprio. Quando Arman afirma, em 1960, que o sentido de seu gesto acumulativo consiste em alcançar a "expressão da consciência coletiva desse mesmo objeto", estamos efetivamente mais próximos da ânsia consumista de Georges Perec ("As Coisas") do que do projeto poético de Francis Ponge ("O Parti Pris das Coisas"). Isso se justifica. Arman não formula nem o "neutro" do "ready made" duchampiano, nem a espessura de uma "coisa" em si, despossuída do "pathos" do sujeito. Seu compromisso tem profundas raízes numa antropologia cultural típica dos anos 60, com enfoque sociológico. Oiticica, por sua vez, atenta para uma criação coletiva, em que a individualidade do sujeito se dilui. Para ele, o objeto "é anulado na sua conceituação metafísica que contrapõe sujeito a objeto". Oiticica reinventa o cotidiano quando afirma que "um som, um grito, pode ser o objeto", "é a poética do instante". O que passa a importar é a ação do artista. Nesse sentido, as "Cóleras" (1961) de Arman, que se seguiram às suas primeiras "Acumulações", são contundentes: o objeto era tratado com pontapés e golpes de caratê, jogado, arremessado contra a parede, quebrado, cortado, fatiado. Havia um sentido redentor latente nessa violência destrutiva, como se fossem necessárias as combustões e explosões para que a vontade construtiva pudesse ter lugar. A partir dos anos 80, Arman torna-se vítima da repetição e multiplicação que tanto regeram sua obra, entregando-nos uma reflexão estetizante do consumo da vida pós-moderna. Em que medida podemos olhar essa peregrinação idolátrica do objeto e retirar algum ensinamento para a produção contemporânea?

Fragmentos
O gesto que nos fica de Arman é sua compulsão em arquivar fragmentos da realidade. Construir uma coleção é um projeto monumental, isto é, para a memória. Hoje, o artista-colecionador constitui uma modalidade cada vez mais frequente, uma forma mais concreta de registrar anotações num diário. Nessa clave, com diferentes abordagens, encontramos artistas preocupados em reciclar, classificar, catalogar, etiquetar, criar "famílias" de coisas: os fragmentos de Tony Cragg, o inventário iconográfico do Holocausto de Christian Boltanski, a gama de vermelhos de Cildo Meireles, a recriação do cotidiano por Arthur Bispo do Rosário, as acumulações de Felix Gonzalez-Torrés, os presentes de aniversário de Sophie Calle, o museu imaginário de Sherrie Levine, a discussão institucional de Jac Leirner.

Animais de Hirst
Listá-los todos aqui seria empreender uma outra tarefa enumerativa e catalográfica. Luta não somente contra o esquecimento, mas ainda contra a dispersão, colecionar é uma obsessão constitutiva do procedimento criativo. "Arquivar" transcende o trabalho de acumulação quantitativa. Mantém parentesco com uma resistência à putrefação. Nesse sentido, os animais de Damien Hirst, lacrados em vitrines, situam-se num prolongamento natural, porém em escala mais exacerbada, das lixeiras de Arman.
Após a deterioração do sistema dos objetos, o conceito de entropia ganha o sentido farmacêutico de conservação. A reflexão artística tende para o uso crescente de um léxico patologizante. Só se fala em crise e sintoma.
O termo "abjeto" retorna, tendo norteado o Novo Realismo, para colocar essa distância inassimilável entre sujeito e objeto, nem um nem outro, "borderline", funcionando, escreve Rosalind Krauss, como "uma espinha entalada na garganta" (3).
Por isso, o texto de Umberto Eco "Sobre Arman" é uma pequena maravilha (no catálogo da exposição do Masp). Fala com justeza da "poética do catálogo para caracterizar o tempo da dúvida quanto à forma e à natureza do mundo, em oposição à poética da forma acabada, típica dos momentos de certeza acerca de nossa identidade".


Notas 1. A questão da vanguarda na década de 60 é vivida de maneira muito diferente por Hélio Oiticica, que insiste no caráter coletivo da criação, na sua ligação com mitos populares (o jogo, a dança), com o objetivo de libertar a arte de seu aspecto elitista e excessivamente intelectual. Já as provocações neodadas de Yves Klein podem ser lidas hoje como "espetáculos burgueses" (cf. Hal Foster, "The Return of the Real", MIT Press, 1996, pág. 11). 2. Lygia Clark e Hélio Oiticica. "Cartas 1964-1974" (Editora UFRJ, organização de Luciano Figueiredo, 1996, pág. 34). 3. "O Destino do Informe", catálogo da exposição "L'informe - Mode d'Emploi" (Centre Georges Pompidou, 1996, pág. 225). A crítica americana Rosalind Krauss analisa a repercussão da teoria da abjeção feita por Julia Kristeva (em "Poderes do Horror").

Lisette Lagnado é crítica de arte, curadora independente e autora de "Leonilson - São Tantas as Verdades" (Doréa Books and Art).

A EXPOSIÇÃO
Arman - Retrospectiva, com curadoria de Daniel Abadie, acontece no Museu de Arte de São Paulo (av. Paulista, 1578, tel. 0/ xx/11/ 251-5677). de terça-feira a domingo, das 11h às 18h. Até 9/ 1/2000.


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