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A virtude da arte é mudar velocidades, dimensões e direções, desviar trajetórias e esperas
Longe de Seattle
JACQUES RANCIÈRE
Um velho que mal se firma nas pernas e sem
carteira de habilitação pega sua roçadeira
para uma viagem de 400 milhas a fim de se
reconciliar, antes que seja tarde demais, com
um irmão vítima de um ataque cardíaco. Um yakuza
aposentado acompanha um jovem que parte em busca
de uma mãe distante. Ele esconde do garoto aquilo que
descobre (a mãe tem uma nova família) e se empenha
em diverti-lo com mil facécias antes de devolvê-lo à avó
que o cria. Um repórter de Teerã segue para um vilarejo
do Curdistão com o intento de filmar um ritual funerário herdado dos tempos antigos. A heroína da cerimônia infelizmente tarda a morrer. E, quando ela o faz, enfim, o caçador de imagens terá perdido o gosto pela caça
e retornará de mãos abanando.
Três filmes marcantes de 1999, "Uma História Verdadeira", de David Lynch, "O Verão de Kikujiro", de Takeshi Kitano, e "O Vento Nos Levará", de Abbas Kiarostami, parecem nos contar, assim, fábulas do mesmo gênero, parecem nos fazer escutar uma mesma e delicada
música. No momento em que a França de Luc Besson
ergue sua heroína libertadora, "Joana D'Arc", contra o
invasor cinematográfico anglo-saxão, emblematizado
por "Star Wars", esses três filmes parecem esboçar as
feições de uma outra globalidade, de um outro planeta
cinematográfico, estranho aos conflitos entre verdadeiros e falsos gigantes.
Nesse planeta, no qual os eventos espetaculares e os efeitos especiais são ignorados, uma mesma virtude parece reinar, a
virtude da lentidão. Ela comanda ao mesmo tempo a obstinação em linha reta do
velho Alvin Straight, formiga puxando
uma charrete com seu trator de jardim, e
os desvios infindos que inventa o yakuza Kikujiro para
estampar um sorriso no rosto do garoto amargurado.
Ela reina no vilarejo curdo e triunfa sobre a afobação
dos caçadores de imagens de Teerã.
Viagem insana
Persistir na linha reta de uma viagem insana, traçar curva após curva o caminho que reconduz ao ponto de partida, renunciar ao único objetivo de uma viagem custosa e de uma longa espera, eis as
três maneiras de homenagear a mesma virtude. Essa
virtude do tempo pausado é também, nos três casos,
uma homenagem rendida à força dos fracos, uma celebração dos poderes secretos daquilo que a lógica dominante gosta de descrever como o mundo da impotência
e do retrocesso.
Essa virtude, o cineasta japonês e seu colega iraniano
nunca deixaram de cultivá-la. São conhecidos os cenários típicos de Kitano: lutas paroxísticas entre bandos
de yakuzas ou entre yakuzas e policiais que se transformam em jogo de praia e baladas contemplativas ("Sonatina", "Hana-Bi"), ou então histórias, entre realidade
e sonho, de personagens canhestros ou deficientes que
logram realizar seu desejo, como o surdo-mudo e
aprendiz de surfista do admirável "A Scene at the Sea".
Os filmes de Kiarostami narram uma mesma história
fundamental, a busca obstinada de um único objeto,
quase sempre irrisório, um objeto de que se carece e é
obtido por compensação. O caçador de imagens de
mãos abanando de "O Vento Nos Levará" segue assim
as pistas da criança emblemática da obra-prima de Kiarostami, "Onde É a Casa de Meu Amigo?". Este ia e vinha para devolver o caderno que, por engano, tomara
emprestado a seu colega, renunciava a tal propósito
diante da porta da casa afinal encontrada e fazia, ali
mesmo, os deveres do amigo no caderno. David Lynch,
por sua vez, habituou seu público a histórias bem diversas. A própria balada do velhote assume ares de um parêntese ou de uma conversão numa filmografia povoada de crimes e violência, de monstros e guerras interplanetárias.
Essa conversão e essa conjunção dão evidentemente o
que pensar. O que elas opõem, exatamente, às grandes
manobras da globalização e às grandes trombetas da
entrada de um novo milênio, presidido pela velocidade
agora sem entraves da circulação de capitais e da comunicação eletrônica?
A primeira suspeita é que essas histórias de obstinada lentidão ou de compensações do desejo, essas longas travessias dos campos de trigo do Curdistão ou dos campos de milho de Iowa, esses reencontros
com as tradições ancestrais do vilarejo iraniano ou com
os personagens pitorescos e ardorosos do Meio-Oeste
americano compõem um hino passadista. A resistência
aos grandes cenários da globalização triunfante assumiria neles o tom de uma nostalgia ambígua, e a exaltação
da natureza, a afirmação do "small is beautiful" e a "sabedoria oriental" exaltariam ao mesmo tempo o yakuza
desajustado, a mulher velada do vilarejo iraniano e os
valores familiares da América profunda.
Não é isso, porém, que está em jogo nas contraficções
do último ano do século. O Meio-Oeste americano
abrasador de Lynch é assombrado por seus fantasmas,
quer se trate dos dramas da pobreza, quer das histórias
de uma Guerra Mundial, evocada aqui por dois veteranos sob sua face menos gloriosa.
O vilarejo curdo não é o local de um aprendizado
tranquilo de valores ancestrais, mas o de uma tensão
violenta que reflete as próprias condições de sua filmagem. Para rodar esse filme, que tem por único tema a
impossibilidade de realizar um filme, Kiarostami não
teve somente de perturbar as ocupações do vilarejo e afrontar suas tradições. Ele também obrigou os atores
amadores, escolhidos no local, a decorar os papéis de
uma ficção que não se parecia com nada daquilo que,
pare eles, era uma ficção.
Renúncia ficcional
Assim, as formas improvisadas
do cinema-verdade, a figura cinéfila do filme sobre o filme e a estética da balada ao estilo nouvelle vague instituem, com o vilarejo-objeto e os atores-sujeitos, uma
relação de violência simbólica que a renúncia ficcional
do personagem não soluciona.
Não é, portanto, alguma ideologia ecológico-zen e
neotradicionalista que esses filmes de 1999 opõem às
trombetas milenaristas e à embriaguez da velocidade
triunfante. Isso porque os temas da velocidade e da direção não dependem de uma decisão ideológica. Dependem de uma decisão artística. A questão não é que o
cinema tome partido dos desfavorecidos. Há tempos
existem gêneros cinematográficos que lhes são devotados. Trata-se de outra coisa: que o cinema retrace a linha que separa suas imagens, seus sons e seu movimento próprios das formas dominantes da circulação dos
bens, das imagens e das palavras, que ele redescubra e
reexplore os seus próprios poderes.
Ora, são precisamente esses poderes que só subsistem
por serem sem trégua limitados, contrariados, reconduzidos a uma certa impotência. À ubiquidade comunicacional o cinema opõe suas estratégias de separação
e rarefação de imagens e de sons. Foi assim que o cinema contemporâneo reaprendeu as virtudes do plano
que revela e oculta, em detrimento daquelas do movimento da câmera que repõe ao alcance dos personagens e espectadores aquilo que lhes fugia ao domínio.
Obstinada, a câmera de Kiarostami permanece atrás
da janela que nos encobre a velha senhora que tarda em
morrer. Ela separa o universo sonoro dos repórteres e
as imagens que eles foram buscar, privando ironicamente de todo rosto as vozes impacientes dos assistentes do cineasta. Ela define assim, a meio caminho entre
a promessa técnica da visibilidade total e as interdições
religiosas, a visibilidade própria do cinema.
A câmera de David Lynch, esta não desdenha o movimento. Mas ela não retorna a uma simples sintaxe de
objetos que se alternam em retroprojeção ou de panorâmicas que sublinham a implacável e infinita progressão do homem-roçadeira e preparam as acelerações
que suas paradas conferem à palavra que sondará o reverso doloroso do belo livro de imagens.
Som e fúria
A arte de Kitano, enfim, é de retardar
até a paralisia os movimentos dos homens de som e de
fúria e lançar, em contrapartida, a improváveis órbitas
de velocidade e de sucesso os canhestros e os incapazes.
E, na junção dessa aceleração e desse retardamento, ela
reencontra um potencial do cinema mudo: a força dessa impecável aliança entre o mecânico e o humano,
aliança de uma dupla potência e uma dupla impotência,
que fez a glória do cinema burlesco dos Chaplin e dos
Keaton.
Não há virtude artística particular à lentidão ou à
miudeza. A virtude da arte é de mudar as velocidades,
as dimensões e as direções, de desviar as trajetórias e as
esperas. Chegada a hora dos balanços de fim de século e
das grandes negociações planetárias, ouvimos grandes
vozes patéticas exigirem que as obras de arte se subtraiam à infâmia do comércio e às vulgaridades da comunicação.
Na verdade, nenhuma linha preestabelecida separa os
produtos da arte daqueles do comércio. A separação é
sempre local e pontual. Ela se produz a cada vez, ou não,
na escolha de uma cena lenta ou rápida, no liame sugerido ou omitido de imagens e sons, na repartição arrojada daquilo que a imagem oferece e o que ela oculta.
Como dizia Gilles Deleuze, tudo se resume a "ganhar
um pouco de tempo e de espaço". O mesmo filósofo
opunha aos grandes discursos do começo e do fim a necessidade de tomar as coisas pelo meio. Essa é talvez a lição desses filmes que, em contradição com toda a febre
de entusiasmo ou de desespero milenarista, ocupam-se
simplesmente em dar continuidade ao cinema.
Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor
de "O Dissenso" e "O Desentendimento", entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de José Marcos Macedo.
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