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+ livros Entrevista
Para o historiador, que está lançando na Inglaterra "A Renascença Européia",
é preciso reinserir o período em seu contexto político
Peter Burke e o Renascimento multicultural
Sylvia Colombo
Editora-assistente da Ilustrada
Apesar dos esforços do historiador inglês Peter Burke, que há mais de 30 anos
pesquisa e escreve sobre o Renascimento, o período se transformou, em nossos
dias, em um episódio "alienígena" da
história, segundo a definição do próprio
pesquisador, que atualmente leciona no
Emmanuel College de Cambridge. Para
Burke, o período vem sendo considerado pela historiografia como o da florescência de uma elite cultural cada vez
mais descolada de um contexto social e
político variado e em transformação.
O lançamento no Brasil de "O Renascimento Italiano" (leia resenha na pág. 22)
e na Europa de "The European Renaissance - Centres and Peripheries" mostra
uma releitura do período feita pelo historiador inglês. A atual abordagem considera novas contribuições bibliográficas,
o cruzamento da história com outras
áreas do conhecimento (como a antropologia) e o emprego de instrumentos
oferecidos pela história quantitativa.
Em "O Renascimento Italiano", livro
escrito originalmente nos anos 60 e que
chega agora à sua quarta edição, revista e
ampliada, Burke faz a inserção social e
política do "apogeu do homem leigo
educado", que foi o vetor do movimento
artístico que se deu no período, na Itália.
Trata-se de uma história social da cultura, seguindo proposta de análise adotada
em livros anteriores, como "Cultura Popular na Idade Moderna" (Companhia
das Letras) e "História Social da Linguagem" (Unesp).
Já em "The European Renaissance
-Centres and Peripheries" ("A Renascença Européia - Centros e Periferias"),
Peter Burke abandona o estudo específico de uma sociedade e analisa a Renascença como um evento pan-europeu,
que influenciou e tomou como inspiração elementos culturais e filosóficos do
Leste do continente e de outras regiões
do planeta.
Leia a seguir a entrevista que Peter Burke concedeu à Folha por e-mail, de sua
casa, na Inglaterra.
"O Renascimento Italiano" trata de como o movimento se deu e progrediu na
Itália. Já em "The European Renaissance"
o senhor se preocupa com o período por
um prisma amplo. Qual a diferença de enfoque nos dois trabalhos, levando em conta que um é pontual, e o outro, global?
É fácil falar sobre os aspectos positivos de se tratar o movimento cultural
conhecido como Renascimento por
meio de uma visão global.
O movimento que começou e se desenvolveu na Itália afetou culturas de
diferentes partes da Europa -e de
outros países do mundo fora dali-
de uma forma muito mais profunda
do que os historiadores se aperceberam até hoje. Outros países, como a
China e o mundo islâmico, também
tiveram as suas "renascenças" no sentido de terem feito um "revival" de
sua tradição.
Em "O Renascimento Italiano", faço uma tentativa de colocar o movimento no seu contexto social específico. Se desejamos entender o Renascimento, essa abordagem é indispensável. Mas acredito que a mesma deva
ser complementada por um estudo
da forma como os elementos italianos
e clássicos foram adaptados em outras regiões.
Há uma preocupação em observar o Renascimento de um ponto de vista pan-europeu. Por que os historiadores estão cada vez mais interessados em tratar as
transformações do período como sendo
um evento que teria tido influência apenas no pensamento da Europa ocidental?
Os historiadores estão começando a
ver o Renascimento como um movimento mais amplo do que a Europa
ocidental somente, pois estão percebendo o fato de que afetou a Europa
central e do leste.
Por outro lado, os historiadores
também têm observado o período de
um ponto de vista mais estreito do
que o continente como um todo, pois
houve resistência ao Renascimento
na Rússia e em outras regiões onde a
religião era o cristianismo ortodoxo, e
a língua eslava era usada na liturgia.
O sr. acredita que o fato de o estudo do
Renascimento ter sido preterido na Europa do leste está relacionado com o período comunista?
Viajei bastante pela Europa central e
do leste entre 1962 e 1989 e tive a impressão de que nesse período os tchecos, poloneses e húngaros estudavam
o Renascimento de maneira séria.
Acho paradoxal que regimes com
uma ideologia igualitária tivessem
tanto interesse numa cultura de elite
como a renascentista. Por exemplo:
os países em questão gastaram muito
dinheiro para restaurar palácios
construídos nos séculos 15 e 16. Essa
foi uma forma de a Europa oriental
sublinhar a diferença entre seus regimes e o da então União Soviética.
Também vemos que, no período da
Guerra Fria, intelectuais britânicos,
franceses e alemães "esqueceram" a
contribuição para o Renascimento
feita por países do leste europeu.
Por que a resistência de algumas culturas
ao Renascimento é tão importante quanto o processo de recebimento e aceitação
do mesmo?
"Recepção" e "resistência" são conceitos complementares. Se quisermos
entender por que pessoas numa certa
região consideram bem-vindos certos elementos culturais que são novos
para elas, nós devemos estar conscientes de que devemos compará-los
e contrastá-los com pessoas em uma
outra região que por sua vez rejeite os
mesmos itens.
O sr. trabalha com várias
palavras que evocam mistura e transformação (sincretismo, metamorfose
etc). Como é possível estabelecer uma metodologia
de análise histórica com
conceitos tão variados?
Existem várias palavras em circulação para descrever interações
culturais, um bom número delas colocadas
em circulação em português do Brasil por Gilberto Freyre e
seus amigos (culturas híbridas, mestiças, mulatas etc.). Para fazer um bom
uso desses conceitos, nós precisamos
lembrar que são metafóricos e que
não devemos tomá-los muito literalmente. Nós também temos de fazer
distinções entre eles. "Sincretismo",
por exemplo, é um termo útil para
descrever alguns resultados de interações culturais, quando alguém tenta
especificar se tais resultados são conscientes ou inconscientes, impostos
pelo alto ou desenvolvidos por baixo.
Como foi a recepção das idéias da Renascença para pessoas que estavam ligadas
ao movimento artístico, mas que se situavam no "backstage" (artesãos, construtores etc.)?
Idéias que foram escritas em latim por intelectuais, os chamados
humanistas, eram normalmente inacessíveis
para os artesãos. Até
Leonardo da Vinci,
mesmo com sua determinação em se tornar
um autodidata, era um
"outsider" da cultura
humanista. Da Vinci,
como Botticelli e Rafael, aprendeu sobre as culturas grega
e romana observando seus restos materiais (estátuas, moedas, etc.) ou falando com intelectuais. Nessa época,
Florença era uma cidade de cerca de
100 mil pessoas, e nós sabemos que
intelectuais como Ficino e artistas como Botticelli frequentemente conversavam entre si.
Como podemos verificar a coexistência de
comportamentos da Renascença desde a
Idade Média?
Ela pode ser verificada observando
certos indivíduos famosos. Lorenzo
de Médici, por exemplo, é conhecido
por ter lido filósofos medievais como
Tomás de Aquino ao mesmo tempo
em que escrevia poesia num estilo novo. O imperador Carlos 5º era um entusiasta do gênero medieval de romances, mas também apreciava as
pinturas de Ticiano.
Para exemplos claros de trabalhos
de arte e literatura que quebram com
a tradição medieval de forma mais
abrupta, pode-se ver o caso de Michelangelo e Maquiavel. No trabalho de
Michelangelo a estátua é emancipada
do esquema decorativo, tornando-se
autônoma. Em Maquiavel, a política é
emancipada da religião e da convenção moral, sendo tratada também de
maneira autônoma.
Quais são as maiores lições dos historiadores dos séculos 18 e 19 sobre a Renascença? Quais são os pontos negativos na
análise deles que danificaram a visão do
período que temos em nossos dias?
Eles tiveram a vantagem em relação
a nós de estarem mais perto do movimento. Por outro lado, ele eram insuficientemente precavidos sobre a distância que existia entre eles e os séculos 15 e 16. O maior historiador da Renascença do século 19, o suíço Jacob
Burckhardt, era ele próprio um grande individualista e acabou vendo o
Renascimento como uma idade do
individualismo. O perigo está sempre
presente. Em vez de ver o passado
propriamente dito, nós podemos ver
o nosso próprio reflexo no vidro.
O Renascimento Italiano
344 págs., R$ 32,00
de Peter Burke
Tradução de José Rubens
Siqueira
Ed. Nova Alexandria (r. Dionísio
da Costa, 141, CEP 04117-110,
SP, tel. 0/xx/11/571-5637).
The European Renaissance
240 págs., 19.99 libras
de Peter Burke
Blackwell Publishers (Londres)
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