São Paulo, Domingo, 19 de Dezembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros Entrevista
Para o historiador, que está lançando na Inglaterra "A Renascença Européia", é preciso reinserir o período em seu contexto político
Peter Burke e o Renascimento multicultural

Sylvia Colombo
Editora-assistente da Ilustrada

Apesar dos esforços do historiador inglês Peter Burke, que há mais de 30 anos pesquisa e escreve sobre o Renascimento, o período se transformou, em nossos dias, em um episódio "alienígena" da história, segundo a definição do próprio pesquisador, que atualmente leciona no Emmanuel College de Cambridge. Para Burke, o período vem sendo considerado pela historiografia como o da florescência de uma elite cultural cada vez mais descolada de um contexto social e político variado e em transformação.
O lançamento no Brasil de "O Renascimento Italiano" (leia resenha na pág. 22) e na Europa de "The European Renaissance - Centres and Peripheries" mostra uma releitura do período feita pelo historiador inglês. A atual abordagem considera novas contribuições bibliográficas, o cruzamento da história com outras áreas do conhecimento (como a antropologia) e o emprego de instrumentos oferecidos pela história quantitativa.
Em "O Renascimento Italiano", livro escrito originalmente nos anos 60 e que chega agora à sua quarta edição, revista e ampliada, Burke faz a inserção social e política do "apogeu do homem leigo educado", que foi o vetor do movimento artístico que se deu no período, na Itália. Trata-se de uma história social da cultura, seguindo proposta de análise adotada em livros anteriores, como "Cultura Popular na Idade Moderna" (Companhia das Letras) e "História Social da Linguagem" (Unesp).
Já em "The European Renaissance -Centres and Peripheries" ("A Renascença Européia - Centros e Periferias"), Peter Burke abandona o estudo específico de uma sociedade e analisa a Renascença como um evento pan-europeu, que influenciou e tomou como inspiração elementos culturais e filosóficos do Leste do continente e de outras regiões do planeta.
Leia a seguir a entrevista que Peter Burke concedeu à Folha por e-mail, de sua casa, na Inglaterra.

"O Renascimento Italiano" trata de como o movimento se deu e progrediu na Itália. Já em "The European Renaissance" o senhor se preocupa com o período por um prisma amplo. Qual a diferença de enfoque nos dois trabalhos, levando em conta que um é pontual, e o outro, global?
É fácil falar sobre os aspectos positivos de se tratar o movimento cultural conhecido como Renascimento por meio de uma visão global.
O movimento que começou e se desenvolveu na Itália afetou culturas de diferentes partes da Europa -e de outros países do mundo fora dali- de uma forma muito mais profunda do que os historiadores se aperceberam até hoje. Outros países, como a China e o mundo islâmico, também tiveram as suas "renascenças" no sentido de terem feito um "revival" de sua tradição.
Em "O Renascimento Italiano", faço uma tentativa de colocar o movimento no seu contexto social específico. Se desejamos entender o Renascimento, essa abordagem é indispensável. Mas acredito que a mesma deva ser complementada por um estudo da forma como os elementos italianos e clássicos foram adaptados em outras regiões.
Há uma preocupação em observar o Renascimento de um ponto de vista pan-europeu. Por que os historiadores estão cada vez mais interessados em tratar as transformações do período como sendo um evento que teria tido influência apenas no pensamento da Europa ocidental?
Os historiadores estão começando a ver o Renascimento como um movimento mais amplo do que a Europa ocidental somente, pois estão percebendo o fato de que afetou a Europa central e do leste.
Por outro lado, os historiadores também têm observado o período de um ponto de vista mais estreito do que o continente como um todo, pois houve resistência ao Renascimento na Rússia e em outras regiões onde a religião era o cristianismo ortodoxo, e a língua eslava era usada na liturgia.
O sr. acredita que o fato de o estudo do Renascimento ter sido preterido na Europa do leste está relacionado com o período comunista?
Viajei bastante pela Europa central e do leste entre 1962 e 1989 e tive a impressão de que nesse período os tchecos, poloneses e húngaros estudavam o Renascimento de maneira séria. Acho paradoxal que regimes com uma ideologia igualitária tivessem tanto interesse numa cultura de elite como a renascentista. Por exemplo: os países em questão gastaram muito dinheiro para restaurar palácios construídos nos séculos 15 e 16. Essa foi uma forma de a Europa oriental sublinhar a diferença entre seus regimes e o da então União Soviética. Também vemos que, no período da Guerra Fria, intelectuais britânicos, franceses e alemães "esqueceram" a contribuição para o Renascimento feita por países do leste europeu.
Por que a resistência de algumas culturas ao Renascimento é tão importante quanto o processo de recebimento e aceitação do mesmo?
"Recepção" e "resistência" são conceitos complementares. Se quisermos entender por que pessoas numa certa região consideram bem-vindos certos elementos culturais que são novos para elas, nós devemos estar conscientes de que devemos compará-los e contrastá-los com pessoas em uma outra região que por sua vez rejeite os mesmos itens.
O sr. trabalha com várias palavras que evocam mistura e transformação (sincretismo, metamorfose etc). Como é possível estabelecer uma metodologia de análise histórica com conceitos tão variados?
Existem várias palavras em circulação para descrever interações culturais, um bom número delas colocadas em circulação em português do Brasil por Gilberto Freyre e seus amigos (culturas híbridas, mestiças, mulatas etc.). Para fazer um bom uso desses conceitos, nós precisamos lembrar que são metafóricos e que não devemos tomá-los muito literalmente. Nós também temos de fazer distinções entre eles. "Sincretismo", por exemplo, é um termo útil para descrever alguns resultados de interações culturais, quando alguém tenta especificar se tais resultados são conscientes ou inconscientes, impostos pelo alto ou desenvolvidos por baixo.
Como foi a recepção das idéias da Renascença para pessoas que estavam ligadas ao movimento artístico, mas que se situavam no "backstage" (artesãos, construtores etc.)?
Idéias que foram escritas em latim por intelectuais, os chamados humanistas, eram normalmente inacessíveis para os artesãos. Até Leonardo da Vinci, mesmo com sua determinação em se tornar um autodidata, era um "outsider" da cultura humanista. Da Vinci, como Botticelli e Rafael, aprendeu sobre as culturas grega e romana observando seus restos materiais (estátuas, moedas, etc.) ou falando com intelectuais. Nessa época, Florença era uma cidade de cerca de 100 mil pessoas, e nós sabemos que intelectuais como Ficino e artistas como Botticelli frequentemente conversavam entre si.
Como podemos verificar a coexistência de comportamentos da Renascença desde a Idade Média?
Ela pode ser verificada observando certos indivíduos famosos. Lorenzo de Médici, por exemplo, é conhecido por ter lido filósofos medievais como Tomás de Aquino ao mesmo tempo em que escrevia poesia num estilo novo. O imperador Carlos 5º era um entusiasta do gênero medieval de romances, mas também apreciava as pinturas de Ticiano.
Para exemplos claros de trabalhos de arte e literatura que quebram com a tradição medieval de forma mais abrupta, pode-se ver o caso de Michelangelo e Maquiavel. No trabalho de Michelangelo a estátua é emancipada do esquema decorativo, tornando-se autônoma. Em Maquiavel, a política é emancipada da religião e da convenção moral, sendo tratada também de maneira autônoma.
Quais são as maiores lições dos historiadores dos séculos 18 e 19 sobre a Renascença? Quais são os pontos negativos na análise deles que danificaram a visão do período que temos em nossos dias?
Eles tiveram a vantagem em relação a nós de estarem mais perto do movimento. Por outro lado, ele eram insuficientemente precavidos sobre a distância que existia entre eles e os séculos 15 e 16. O maior historiador da Renascença do século 19, o suíço Jacob Burckhardt, era ele próprio um grande individualista e acabou vendo o Renascimento como uma idade do individualismo. O perigo está sempre presente. Em vez de ver o passado propriamente dito, nós podemos ver o nosso próprio reflexo no vidro.



O Renascimento Italiano
344 págs., R$ 32,00 de Peter Burke
Tradução de José Rubens
Siqueira
Ed. Nova Alexandria (r. Dionísio da Costa, 141, CEP 04117-110, SP, tel. 0/xx/11/571-5637).

The European Renaissance
240 págs., 19.99 libras de Peter Burke
Blackwell Publishers (Londres)




Texto Anterior: + livros - Barbara Heliodora: O múltiplo humor de Pirandello
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.