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O múltiplo humor de Pirandello
Barbara Heliodora
especial para a Folha
Em um país de tão escassa bibliografia
dramática ou teatral, a publicação de
"Pirandello, do Teatro no Teatro", com
organização de J. Guinsburg, pela Editora Perspectiva, tinha de ser recebida com
aplausos. O volume inclui três estudos
preliminares: "Uma Operação Tragicômica do Dramático: O Humorismo", de
J. Guinsburg, "Princípios Estéticos Desentranhados das Peças de Pirandello sobre o Teatro", de Sábato Magaldi, e "Sou
Aquele por Quem Me Tomam", de Francisco Maciel Silveira, antes de trazer ao público brasileiro uma obra inesperada de Pirandello, "O Humorismo". Para completar o volume aparecem três peças já
conhecidas, mas com traduções novas: "Seis Personagens à Procura de um Autor", "Esta Noite Se Representa de Improviso" e "Cada Um a Seu Modo", seguidas de
um levantamento sobre a presença de Pirandello nos
palcos e nas estantes do Brasil.
Nos ensaios introdutórios, Jacó Guinsburg faz uma
apaixonada e concisa defesa das posições enunciadas
por Pirandello no longo ensaio apresentado como o
epicentro desse volume, louvando-as principalmente
pelo que têm de significativo como precursoras de aspectos da crítica de hoje.
Ninguém é um só
O ensaio de Sábato Magaldi, já
publicado em 1977, é resultado de uma esmiuçadora leitura das peças de Pirandello incluídas no atual volume,
que localiza passagens nas quais o autor expressa em
termos dramáticos e teatrais convicções tais como a de
ninguém ser um só, mas muitos, não só diante de outras
pessoas e situações, como em si mesmo, ao longo da
passagem do tempo, ao que se contrapõe à permanência do "personagem", criado para determinado momento e situação, e permanecendo por isso sempre o
mesmo; ou como a que examina a tênue divisão entre
realidade e ficção; e as complexas e delicadas relações
entre ator e intérprete.
Já o breve trabalho de Francisco Maciel Silveira apresenta aspectos significativos da vida de Pirandello, que
deram forte contribuição para a elaboração de seu universo de autor.
"O Humorismo", datado de 1908, serve, como a maioria dos ensaios teóricos italianos de então (e até recentemente), como grande prova de erudição de seu autor.
Principalmente na primeira parte, de que constam:
1. A Palavra Humorismo, 2. Questões Preliminares, 3.
Distinções Sumárias, 4. Humorismo e Retórica, 5. A
Ironia Cômica na Poesia Cavaleiresca, e 6. Humoristas
Italianos. Nela, Pirandello se espraia pelo universo da
poesia italiana, citando autores de modo geral desconhecidos fora de seu país, muitas vezes pressupondo
uma intimidade inexistente com os mesmos que prejudica o entendimento do leitor, por faltar-lhe o referencial indispensável.
À segunda parte do ensaio Pirandello dá o título de
"Essência, Caracteres e Matéria do Humorismo". Em
princípio, debate ele aqui a questão central das contribuições da emoção e da razão para a criação do humorismo, e podemos sentir o peso da educação alemã de
Pirandello, em Bonn, na elaboração de seus argumentos, sobretudo a respeito do que ele explica não ser o humorismo. As últimas duas páginas, nas quais resume
seu pensamento, nos esclarecem mais do que todas as
outras.
É na redação e no estilo dos originais e das traduções,
no entanto, que aparecem os maiores tropeços para a
fruição do ensaio ora publicado: que Pirandello escrevesse dentro do espírito de sua época com linguagem
recôndita e empolada era inevitável.
A tradução de J. Guinsburg, porém, teria, por seu lado, de procurar facilitar a comunicação entre o italiano
e o público do final do milênio, em lugar de preservar
sua dificuldade adotando um tom de alta erudição, recorrendo a termos pouco usados, como por exemplo
"retor" por retórico, "insulso" por insosso, "provincial"
por provinciano e, mais ainda, "respigar" por recolher
as espigas após a colheita.
Esse, no entanto, não é o maior pecado da tradução,
que, a par de muitos méritos, lastimamos ter de dizer
que em inúmeros momentos é traída pela ilusão de que
as coisas são ditas da mesma forma em italiano e em
português: nós, aqui, jamais comentamos o sucesso de
um escritor ao expressar determinada idéia afirmando
ser "uma bela fortuna"; o ator, entre nós, "avança" ou
"desce", nunca "vem para fora". O que dizer de "um homenzinho que mede pouco mais que
uma braça" quando o Aurélio nos informa que uma braça é medida antiga de
dez palmos (2,2 m) ou medida inglesa de
1,8 m? Ou desse mesmo homenzinho ostentar, em compensação "uma cabeçorra cheia de cabelos"; ou do uso de "grisu"
no nariz (em lugar de griséu, ou, melhor
ainda, simplesmente um tom acizentado), quando o mesmo Aurélio explica
que grisu é um "gás inflamável contido
nas minas de carvão e que encerra quantidades variáveis de metano"?
Há também enganos em frases inteiras: não havendo
ensaio, o diretor diz aos atores: "Por sorte esta noite estou livre diante dos senhores" e logo adiante lamenta
que a fantasia dos poetas não encontre mais "nutrimento" adequado. "Parece que tudo escorre liso como o
óleo" não expressa bom funcionamento em português,
ninguém aparece entre "as abas da cortina" e "sobre
dois pezinhos" não quer dizer de repente ou sem preparação. E, por fim, há alguns erros consideráveis nas traduções de citações; na pág. 103, após afirmar que existem milhares de heróis desconhecidos que poderiam
ser igualados a Enéias, Aquiles ou Heitor, diz-se:
"Ma i donati palazzi e le gran ville
Daí discendenti lor, gli ha fato porre
In questi sensza fin sublimi onori
Dall'onorate man degli scrittori...",
que é traduzido como:
"Mas foi com palácios doados e grandes vilas
que os seus descendentes infindas e subidas
[honras alcançaram"
pelas honradas mãos dos escritores...".
E, dito assim, parece que os descendentes compraram os elogios aos antepassados doando palácios e vilas a escritores.
Mas na verdade o que fica dito é que os
palácios e vilas herdados pelos descendentes serviram
para documentar seu valor e fazer com que os escritores
os cobrissem de sublimes honrarias (a eles, Enéias,
Aquiles e Heitor, por exemplo) sem fim...
Exemplos como esse há vários, que precisam ser corrigidos em uma próxima edição.
A visão de Pirandello
Na realidade, são as três peças que mais atrairão o público, e é no
ensaio de Sábato Magaldi, mais do que
no do próprio Pirandello, que o leitor comum poderá encontrar seu caminho para compreender melhor a visão de Pirandello. E infelizmente é indispensável notar que também nas peças, principalmente nestas, aliás,
que têm de ser compreendidas "de primeira" se apresentadas no palco, que teria sido mais correto trazer o
diálogo para uma linguagem mais próxima do nosso
português corrente (é claro que sem cair no exagero),
pois "Cada Um a Seu Modo", "Esta Noite Se Representa
de Improviso" e, é claro que principalmente, "Seis Personagens à Procura de um Autor Autor" são obras importantes na dramaturgia universal.
No levantamento final sobre Pirandello no Brasil podemos ver o quanto o autor é importante para o teatro
brasileiro mais expressivo. Apesar dos reparos, "Pirandello, do Teatro no Teatro" é muito bem-vindo, pois é
matéria para prazer e reflexão, ambos básicos para a arte teatral, segundo o próprio autor cujo obra é aqui analisada.
Barbara Heliodora é tradutora e crítica de teatro, autora, entre outros,
de "Falando de Shakespeare" (Perspectiva).
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