São Paulo, Domingo, 19 de Dezembro de 1999


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O múltiplo humor de Pirandello

Barbara Heliodora
especial para a Folha

Em um país de tão escassa bibliografia dramática ou teatral, a publicação de "Pirandello, do Teatro no Teatro", com organização de J. Guinsburg, pela Editora Perspectiva, tinha de ser recebida com aplausos. O volume inclui três estudos preliminares: "Uma Operação Tragicômica do Dramático: O Humorismo", de J. Guinsburg, "Princípios Estéticos Desentranhados das Peças de Pirandello sobre o Teatro", de Sábato Magaldi, e "Sou Aquele por Quem Me Tomam", de Francisco Maciel Silveira, antes de trazer ao público brasileiro uma obra inesperada de Pirandello, "O Humorismo". Para completar o volume aparecem três peças já conhecidas, mas com traduções novas: "Seis Personagens à Procura de um Autor", "Esta Noite Se Representa de Improviso" e "Cada Um a Seu Modo", seguidas de um levantamento sobre a presença de Pirandello nos palcos e nas estantes do Brasil. Nos ensaios introdutórios, Jacó Guinsburg faz uma apaixonada e concisa defesa das posições enunciadas por Pirandello no longo ensaio apresentado como o epicentro desse volume, louvando-as principalmente pelo que têm de significativo como precursoras de aspectos da crítica de hoje.

Ninguém é um só
O ensaio de Sábato Magaldi, já publicado em 1977, é resultado de uma esmiuçadora leitura das peças de Pirandello incluídas no atual volume, que localiza passagens nas quais o autor expressa em termos dramáticos e teatrais convicções tais como a de ninguém ser um só, mas muitos, não só diante de outras pessoas e situações, como em si mesmo, ao longo da passagem do tempo, ao que se contrapõe à permanência do "personagem", criado para determinado momento e situação, e permanecendo por isso sempre o mesmo; ou como a que examina a tênue divisão entre realidade e ficção; e as complexas e delicadas relações entre ator e intérprete.
Já o breve trabalho de Francisco Maciel Silveira apresenta aspectos significativos da vida de Pirandello, que deram forte contribuição para a elaboração de seu universo de autor.
"O Humorismo", datado de 1908, serve, como a maioria dos ensaios teóricos italianos de então (e até recentemente), como grande prova de erudição de seu autor. Principalmente na primeira parte, de que constam:
1. A Palavra Humorismo, 2. Questões Preliminares, 3. Distinções Sumárias, 4. Humorismo e Retórica, 5. A Ironia Cômica na Poesia Cavaleiresca, e 6. Humoristas Italianos. Nela, Pirandello se espraia pelo universo da poesia italiana, citando autores de modo geral desconhecidos fora de seu país, muitas vezes pressupondo uma intimidade inexistente com os mesmos que prejudica o entendimento do leitor, por faltar-lhe o referencial indispensável.
À segunda parte do ensaio Pirandello dá o título de "Essência, Caracteres e Matéria do Humorismo". Em princípio, debate ele aqui a questão central das contribuições da emoção e da razão para a criação do humorismo, e podemos sentir o peso da educação alemã de Pirandello, em Bonn, na elaboração de seus argumentos, sobretudo a respeito do que ele explica não ser o humorismo. As últimas duas páginas, nas quais resume seu pensamento, nos esclarecem mais do que todas as outras.
É na redação e no estilo dos originais e das traduções, no entanto, que aparecem os maiores tropeços para a fruição do ensaio ora publicado: que Pirandello escrevesse dentro do espírito de sua época com linguagem recôndita e empolada era inevitável.
A tradução de J. Guinsburg, porém, teria, por seu lado, de procurar facilitar a comunicação entre o italiano e o público do final do milênio, em lugar de preservar sua dificuldade adotando um tom de alta erudição, recorrendo a termos pouco usados, como por exemplo "retor" por retórico, "insulso" por insosso, "provincial" por provinciano e, mais ainda, "respigar" por recolher as espigas após a colheita. Esse, no entanto, não é o maior pecado da tradução, que, a par de muitos méritos, lastimamos ter de dizer que em inúmeros momentos é traída pela ilusão de que as coisas são ditas da mesma forma em italiano e em português: nós, aqui, jamais comentamos o sucesso de um escritor ao expressar determinada idéia afirmando ser "uma bela fortuna"; o ator, entre nós, "avança" ou "desce", nunca "vem para fora". O que dizer de "um homenzinho que mede pouco mais que uma braça" quando o Aurélio nos informa que uma braça é medida antiga de dez palmos (2,2 m) ou medida inglesa de 1,8 m? Ou desse mesmo homenzinho ostentar, em compensação "uma cabeçorra cheia de cabelos"; ou do uso de "grisu" no nariz (em lugar de griséu, ou, melhor ainda, simplesmente um tom acizentado), quando o mesmo Aurélio explica que grisu é um "gás inflamável contido nas minas de carvão e que encerra quantidades variáveis de metano"? Há também enganos em frases inteiras: não havendo ensaio, o diretor diz aos atores: "Por sorte esta noite estou livre diante dos senhores" e logo adiante lamenta que a fantasia dos poetas não encontre mais "nutrimento" adequado. "Parece que tudo escorre liso como o óleo" não expressa bom funcionamento em português, ninguém aparece entre "as abas da cortina" e "sobre dois pezinhos" não quer dizer de repente ou sem preparação. E, por fim, há alguns erros consideráveis nas traduções de citações; na pág. 103, após afirmar que existem milhares de heróis desconhecidos que poderiam ser igualados a Enéias, Aquiles ou Heitor, diz-se: "Ma i donati palazzi e le gran ville Daí discendenti lor, gli ha fato porre In questi sensza fin sublimi onori Dall'onorate man degli scrittori...", que é traduzido como: "Mas foi com palácios doados e grandes vilas que os seus descendentes infindas e subidas [honras alcançaram" pelas honradas mãos dos escritores...". E, dito assim, parece que os descendentes compraram os elogios aos antepassados doando palácios e vilas a escritores. Mas na verdade o que fica dito é que os palácios e vilas herdados pelos descendentes serviram para documentar seu valor e fazer com que os escritores os cobrissem de sublimes honrarias (a eles, Enéias, Aquiles e Heitor, por exemplo) sem fim... Exemplos como esse há vários, que precisam ser corrigidos em uma próxima edição.

A visão de Pirandello
Na realidade, são as três peças que mais atrairão o público, e é no ensaio de Sábato Magaldi, mais do que no do próprio Pirandello, que o leitor comum poderá encontrar seu caminho para compreender melhor a visão de Pirandello. E infelizmente é indispensável notar que também nas peças, principalmente nestas, aliás, que têm de ser compreendidas "de primeira" se apresentadas no palco, que teria sido mais correto trazer o diálogo para uma linguagem mais próxima do nosso português corrente (é claro que sem cair no exagero), pois "Cada Um a Seu Modo", "Esta Noite Se Representa de Improviso" e, é claro que principalmente, "Seis Personagens à Procura de um Autor Autor" são obras importantes na dramaturgia universal.
No levantamento final sobre Pirandello no Brasil podemos ver o quanto o autor é importante para o teatro brasileiro mais expressivo. Apesar dos reparos, "Pirandello, do Teatro no Teatro" é muito bem-vindo, pois é matéria para prazer e reflexão, ambos básicos para a arte teatral, segundo o próprio autor cujo obra é aqui analisada.


Barbara Heliodora é tradutora e crítica de teatro, autora, entre outros, de "Falando de Shakespeare" (Perspectiva).


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