São Paulo, Domingo, 19 de Dezembro de 1999


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+ livros Resenhas
"O Renascimento Italiano", de Peter Burke, procura ser uma terceira via nos estudos sobre o tema
Uma escrita romanesca da história

Victor Knoll
especial para a Folha

Livros de divulgação são sempre muito bem-vindos, sobretudo quando escritos com competência, clareza e colocando à disposição do leitor preciosas informações advindas do domínio da mais rica bibliografia sobre o assunto. É o caso do livro que temos em mãos. Por possuir tal natureza, soa de maneira um pouco estranha a sua pretensão de se constituir em uma terceira via nos estudos relativos ao Renascimento. Nem a chamada "história do espírito", nem o materialismo. Por se pretender uma terceira via, deve ser analisado de modo detido no que diz respeito ao seu procedimento metodológico, pois aí se alojam as novas visões. Nesse sentido, a primeira observação visa o gosto do autor pelos números, porcentagens e estatísticas (que não ultrapassam o limiar do dado) e ainda pela "prova documental" como segurança do conhecimento (que esconde a desconfiança na interpretação ou numa postura compreensiva). Os documentos são testemunhos, mas fundamentalmente enigmas a serem decifrados. Fazer valer um documento por sua simples apresentação pode mais encobrir do que clarificar. Quantificar e provar! Na introdução há um esboço (ou tentativa) de justificação de um método quantitativo. Entretanto parece-nos mais uma breve enumeração de dificuldades do que a justificação de sua legitimidade. A questão é antes contornada do que enfrentada.

Compreensão e interpretação
Bem sabemos que, a partir de dados -nem poderia ser de outra maneira- e de análises de obras, temos os esclarecedores trabalhos sobre o Renascimento, sua cultura e o meio social que a conformou nas páginas de Argan sobre Brunelleschi e Ghiberti ou em "A Figura e o Lugar", de Francastel, ou, para citar apenas mais um exemplo, nos ensaios de Panofski sobre temas renascentistas. Datados? Pode-se dizer que sim. Mas metodologicamente consistentes. Que dizer das análises de Baxandall? Nesses casos, o veio do conhecimento passa pela compreensão e pela interpretação.
Se a quantificação e a prova se constituem em um eficiente instrumento metodológico para o conhecimento do fenômeno natural, podem não ser o mais adequado para os fenômenos do espírito. E pior: podem nos dar a ilusão de ciência. Lembrei aqueles autores porque "O Renascimento Italiano", de Peter Burke, se pretende uma terceira via. Impõe-se, portanto, um confronto.
Por outro lado, o acúmulo e a descrição de dados (matéria-prima da prova), bem como as estatísticas e porcentagens, estruturam -e isso se dá de maneira cabal com esse livro- um grande e proveitoso painel do Renascimento. Sem dúvida, constitui-se em excelente instrumento de trabalho para o estudante universitário. De fato, podemos sugerir que a estrutura do livro se assemelha a um grande painel articulado em subpainéis que, por sua vez, se compõem de uma sucessão de quadros.
O livro está armado em três partes justapostas. A "Introdução" e a "Parte 1" procuram encaminhar o modo como o Renascimento será formulado e tratado. Aí temos as questões de método às quais já aludimos. O assunto é tratado efetivamente nas duas partes seguintes -dois grandes painéis, um ao lado do outro, como se fossem dois "livros" independentes. Por sua vez, cada parte se subdivide em capítulos, painéis construídos por uma sucessão de quadros. E isso porque estamos diante de um contínuo fornecimento de dados, informações, fatos, eventos, derivados de um amplo domínio da mais rica bibliografia sobre o Renascimento.
Tomemos um exemplo: o primeiro capítulo da "Parte 3" se desdobra em quatro segmentos -em que são apresentadas sucessivamente as visões do cosmos, da sociedade, do homem e a "mecanização do quadro mundial". O primeiro segmento, "Visões do Cosmos", trata dos seguintes temas: o conceito de tempo e espaço, aspectos da astronomia e da astrologia, a imagem de Deus, os níveis de existência, a fortuna, a alquimia, a magia e a bruxaria. Espero não ter pulado algum item. Tal é o espírito que comanda a organização do livro.
O autor nos diz que a discussão sobre a mudança de tema na pintura renascentista "foi fundamentada na análise de 2.000 pinturas", as quais certamente guardou em seu arquivo, uma vez que mal se encontra nas páginas do livro alguma análise (propriamente dita) de obra, como o faz, por exemplo, Gombrich ou Klein -de cujas análises se consolida uma "visão", para evitar os termos "interpretação" ou "compreensão", do assunto em pauta.
De resto, fazer restrições a Burckhardt é tão ridículo quanto o seria se um físico as fizesse em relação a Newton ou um estudioso da filosofia em relação a Platão.
De qualquer modo, "O Renascimento Italiano", por ser muito bem redigido, é de leitura agradável e, em grande parte, porque escrito no modo imperfeito, assemelha-se a uma narrativa romanesca. Mas, como já foi dito, a sua força reside no fato de se constituir em uma grande fonte de informações, um verdadeiro arquivo sobre o Renascimento.
Assim, o leitor tem em mãos um excelente livro paradidático, que termina com sugestivas observações sobre o Renascimento no Japão.


Victor Knoll é professor de estética na USP.


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