São Paulo, Domingo, 19 de Dezembro de 1999


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Ponto de fuga

O segredo dos mortos

Jorge Coli
especial para a Folha

O mais recente filme de Martin Scorsese, "Bringing Out the Dead", encontrou dificuldades em conquistar público e uma parte da crítica. Desorientou todos os que esperam uma clareza narrativa. Franck Pierce, interpretado por Nicholas Cage, presta primeiros socorros. É paramédico, auxiliar de enfermagem. Vagueia num "after hours" de horrores, dentro de uma NY cor de sangue. Paul Schrader, que adaptou o romance vigoroso de Joe Connelly, reduziu o passado "psicológico" do personagem central, deixando-o possuído apenas por um sentimento torturado diante dos pacientes que deve salvar.
A questão central, inevitável com a dupla Schrader/Scorsese, é metafísica. Qual a natureza dessa fronteira misteriosa, dessa parede que vai se tornando fina e invisível, entre mortos e vivos? Por que a compulsão, como a de grandes santos heróicos, em salvar? O que significa, por sinal, salvar? O instante da morte é privilegiado, entre físico e espiritual. Pierce, o paramédico, equilibra-se nessa fronteira incerta.
O lixo humano da cidade adquire a grandeza cristã do sofrimento. Não é preciso ser religioso para sentir a esplêndida beleza dessa linguagem cinematográfica que se quer missão elevada, que se quer densa inquietação. Bresson fazia filmes confidenciais, para um público reduzido. Scorsese aciona a grande máquina de Hollywood, para desconcerto de sua audiência: sinal claro de que essa máquina é mais complexa do que os preconceitos intelectuais imaginam.

Limpo - "Bringing Out the Dead", para explicar as situações aterradoras, avisa, no início, que a ação transcorre há uns dez anos. O último filme de Spike Lee, cujo cenário era o Bronx, explicava que, nos anos 70, a cidade era violentíssima, sem a calma de agora. "De Olhos Bem Fechados" recria uma NY imaginária, com armadilhas inquietantes, sem nada da placidez atual. A prosperidade econômica e a mão de ferro do prefeito Giuliani fizeram bonachona a grande metrópole. Tanto melhor, certamente. Mas esses filmes como que reclamam a energia de uma violência perdida.

Vozes - Jovem, bela, inocente, guerreira, utilizada e abandonada por uma sociedade perversa: Nikita e Joana d'Arc tornaram-se irmãs, graças a Jean-Luc Besson. Curiosamente, porém, o cineasta, que multiplicou personagens vazios de passado, decidiu enfrentar esse mito, histórico e sagrado, que, pelo menos desde Schiller, vem provocando concepções estimulantes e verdadeiras obras-primas em todas as artes e, sobretudo, no cinema: basta lembrar Dreyer dirigindo Falconetti e Artaud, basta lembrar Robert Bresson.
Mas a diferença não está apenas numa letra do sobrenome: Jean-Luc evita qualquer espessura. Há sempre alguma coisa dos quadrinhos, ou de videoclipe, em seus filmes e sua Joana lembra uma pop star. A abordagem do tema, no entanto, é menos superficial do que aparenta. Joana imaginou-se santa e seu martírio só adquire sentido quando descobre que tudo era humano, apenas humano. Dustin Hofmann, na figura de um monge imaginário ou sobrenatural, encarrega-se de convencê-la, ou antes, de convertê-la à humanidade. O filme oferece mais do que se podia esperar. Entre uma batalha e outra, são 140 minutos que correm rápidos. O que, sem dúvida, já é grande mérito.

Vozes 2 - Paul Claudel, o grande poeta católico, irmão de Camille, escreveu uma "Joana d'Arc na Fogueira", drama que Honnegger pôs em música em 1938. A marca "Allegro", especializada em CDs raros a preço de banana, acabou de lançá-la numa gravação histórica de 1943, feita na Bélgica. Era plena guerra e o sentido da obra atualizava-se ainda mais veemente. O som, perfeitamente restaurado, traz essa interpretação que vibra e vive como nenhuma outra.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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