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Ponto de fuga
O segredo dos mortos
Jorge Coli
especial para a Folha
O mais recente filme de Martin Scorsese, "Bringing Out the Dead", encontrou dificuldades em conquistar público e uma parte da crítica. Desorientou
todos os que esperam uma clareza narrativa. Franck Pierce, interpretado por
Nicholas Cage, presta primeiros socorros. É paramédico, auxiliar de enfermagem. Vagueia num "after hours" de
horrores, dentro de uma NY cor de
sangue. Paul Schrader, que adaptou o
romance vigoroso de Joe Connelly, reduziu o passado "psicológico" do personagem central, deixando-o possuído
apenas por um sentimento torturado
diante dos pacientes que deve salvar.
A questão central, inevitável com a
dupla Schrader/Scorsese, é metafísica.
Qual a natureza dessa fronteira misteriosa, dessa parede que vai se tornando
fina e invisível, entre mortos e vivos?
Por que a compulsão, como a de grandes santos heróicos, em salvar? O que
significa, por sinal, salvar? O instante
da morte é privilegiado, entre físico e
espiritual. Pierce, o paramédico, equilibra-se nessa fronteira incerta.
O lixo humano da cidade adquire a
grandeza cristã do sofrimento. Não é
preciso ser religioso para sentir a esplêndida beleza dessa linguagem cinematográfica que se quer missão elevada, que se quer densa inquietação.
Bresson fazia filmes confidenciais, para
um público reduzido. Scorsese aciona a
grande máquina de Hollywood, para
desconcerto de sua audiência: sinal claro de que essa máquina é mais complexa do que os preconceitos intelectuais
imaginam.
Limpo - "Bringing Out the Dead", para
explicar as situações aterradoras, avisa,
no início, que a ação transcorre há uns
dez anos. O último filme de Spike Lee,
cujo cenário era o Bronx, explicava que,
nos anos 70, a cidade era violentíssima,
sem a calma de agora. "De Olhos Bem
Fechados" recria uma NY imaginária,
com armadilhas inquietantes, sem nada da placidez atual. A prosperidade
econômica e a mão de ferro do prefeito
Giuliani fizeram bonachona a grande
metrópole. Tanto melhor, certamente.
Mas esses filmes como que reclamam a
energia de uma violência perdida.
Vozes - Jovem, bela, inocente, guerreira, utilizada e abandonada por uma sociedade perversa: Nikita e Joana d'Arc
tornaram-se irmãs, graças a Jean-Luc
Besson. Curiosamente, porém, o cineasta, que multiplicou personagens
vazios de passado, decidiu enfrentar esse mito, histórico e sagrado, que, pelo
menos desde Schiller, vem provocando
concepções estimulantes e verdadeiras
obras-primas em todas as artes e, sobretudo, no cinema: basta lembrar
Dreyer dirigindo Falconetti e Artaud,
basta lembrar Robert Bresson.
Mas a diferença não está apenas numa letra do sobrenome: Jean-Luc evita
qualquer espessura. Há sempre alguma
coisa dos quadrinhos, ou de videoclipe,
em seus filmes e sua Joana lembra uma
pop star. A abordagem do tema, no entanto, é menos superficial do que aparenta. Joana imaginou-se santa e seu
martírio só adquire sentido quando
descobre que tudo era humano, apenas
humano. Dustin Hofmann, na figura
de um monge imaginário ou sobrenatural, encarrega-se de convencê-la, ou
antes, de convertê-la à humanidade. O
filme oferece mais do que se podia esperar. Entre uma batalha e outra, são
140 minutos que correm rápidos. O
que, sem dúvida, já é grande mérito.
Vozes 2 - Paul Claudel, o grande poeta
católico, irmão de Camille, escreveu
uma "Joana d'Arc na Fogueira", drama
que Honnegger pôs em música em
1938. A marca "Allegro", especializada
em CDs raros a preço de banana, acabou de lançá-la numa gravação histórica de 1943, feita na Bélgica. Era plena
guerra e o sentido da obra atualizava-se
ainda mais veemente. O som, perfeitamente restaurado, traz essa interpretação que vibra e vive como nenhuma
outra.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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