São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2004

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Leia trechos do primeiro relato sobre o Rio de Janeiro feito por uma dama estrangeira em viagem, em 1809

A cidade de torres e abismos

ELIZABETH MACQUARIE

No dia 6 de agosto de 1809, avistamos terra e, no dia seguinte, lançamos âncora no porto do Rio de Janeiro. Creio que nenhuma descrição pode dar à pessoa que nunca pôs os olhos neste porto uma boa idéia da sua admirável beleza e grandiosidade. A entrada, a meu ver, é a mais bonita que há no mundo.
(...) A cidade de São Sebastião, com suas numerosas igrejas e torres, acrescenta muita beleza ao lugar. Para todo lado que o navio virava, avistávamos casas nobres e conventos espalhados pela região, além de inúmeras fortalezas e diversas pontes interligando duas rochas -rochas separadas por alguma convulsão da natureza e que agora têm entre elas abismos assustadores. O Rio de Janeiro não é, pois, somente privilegiado pela natureza, já que muitos de seus adornos são produto da arte dos homens. Destarte, embora os portugueses pareçam ter grande inclinação para a indolência, os inúmeros melhoramentos aqui realizados levam a pensar se tal impressão realmente tem procedência.


O coronel não pôde deixar de comentar com o embaixador que a princesa, por diversas vezes, cruzou o seu olhar com o dele


No dia 8 de agosto, o coronel Macquarie subiu a bordo do Foudroyant, navio de guerra de 80 canhões, para encontrar o almirante De Courcy. Juntos, foram visitar o embaixador britânico, lorde Strangford, que felizmente estava em casa. No dia 15, ao entardecer, Lorde Strangford apresentou o coronel à sua alteza real, o príncipe regente de Portugal, e todos seguiram juntos para a ópera. O coronel não pôde deixar de comentar com o embaixador que a princesa, por diversas vezes, cruzou o seu olhar com o dele.

Rainha do México
Lorde Strangford disse-lhe que isso não o surpreendia, visto que tal dama tinha por ele muito ódio e rancor desde que se opusera aos seus planos de proclamar-se rainha do México, como sugeriu e parecia realmente querer sir Sidney Smith. O príncipe, um homem gordo, dormiu, inclinado sobre sua princesa, a maior parte do tempo. A ópera foi representada a contento e o espetáculo como um todo mostrou-se digno de apreço.
No primeiro dia em que me senti com forças para caminhar, o coronel Macquarie, o senhor Bent, a senhora Bent e eu desembarcamos e encontramos sir James Gambier, que foi extremamente amável, passeando conosco durante toda a manhã.
Sir James levou-nos para conhecer o Passeio Público, um parque muito bem planejado e adornado com diversas construções, mas que estava em péssimo estado quando o vimos. Visitamos, também, a principal igreja da cidade, construída no estilo das igrejas católicas romanas -incomparáveis às nossas igrejas da Inglaterra em matéria de simplicidade e verdadeira grandeza.
Sir James convidou-nos para jantar no dia seguinte. O capitão Curzon (...) conduziu-nos, no seu belo batelão, à residência de sir James, situada numa romântica enseada da baía, a cerca de seis milhas [aproximadamente 11 km] de onde tínhamos ancorado. Ao entrarmos na casa, surpreendemo-nos ao encontrá-la empapelada e mobiliada em novíssimo estilo inglês. Sir James comprou a casa e o terreno e está promovendo melhorias em ambos sem medir custos, e tudo com o maior bom gosto. A sua maneira de viver é quase suntuosa, maneira que a senhora Gambier parece naturalmente inclinada a apreciar.
A senhora Gambier, a propósito, é uma das mais elegantes e agradáveis mulheres que encontrei em minha vida, além de ser extremamente bonita. O casal é muito hospitaleiro e tem a casa sempre aberta para receber os ingleses. Sir James diz que, mais do que uma inclinação de caráter, tal procedimento é uma obrigação, pois ele é o cônsul da Inglaterra.
Ambos eram tão gentis que insistiram em dar um baile para o regimento e, embora tivéssemos tentado, foi impossível demovê-los da idéia. O baile, portanto, ocorreu e teria sido extremamente prazeroso, não fosse a inquietação que nos causaram alguns oficiais do regimento pertencentes ao navio, os quais, como tivemos conhecimento, saíram da embarcação com destino ao baile, mas lá não apareceram (...).
Durante o baile, encontramos o núncio papal, muitos portugueses nobres, lorde Strangford e todos os ingleses de distinção do Rio de Janeiro, a maior parte deles oficiais da Marinha. Antes do baile, os capitães Pritchard e Curzon jantaram conosco a bordo do Elizabeth.
Pritchard havia sido gentilmente convidado para a festa, mas recusou, alegando que não poderia permanecer fora de seu navio depois das 9 horas da noite (...).
Decididos a conhecer um pouco mais a região, o coronel Macquarie, eu e o capitão Cleaveland deixamos o navio com a intenção de realizar uma pequena excursão pelas redondezas. Capitão Pritchard desembarcou conosco, mas não demonstrou nenhuma vontade de nos acompanhar até que nos viu prontos para partir. Pritchard propôs, então, para privar-nos da companhia do capitão Cleaveland, que este ficasse e seguisse com ele quando encontrassem alguns cavalos. De fato, Pritchard sempre despendeu uma enorme energia para convencer-nos de que era um cavaleiro de primeira categoria, pronto a pôr-se à prova, mas a quem faltava um cavalo.
No momento de sairmos, no entanto, um lamentável acidente mostrou que o capitão havia esquecido os seus alardeados conhecimentos de montaria, resolvendo agir como um marujo agiria: ele subiu pesadamente sobre um cavalo fraco e meio esfomeado e saiu a toda velocidade.
Disse-nos ele que o pobre animal caiu doente a cerca de uma milha [1,6 km] da cidade e que, a partir daí, a ordem das coisas se inverteu: ele teve de tratar o animal com vinho e com tudo o que supunha ajudar a recuperar as suas forças e, além disso, teve de ampará-lo e quase mesmo carregá-lo de volta à cidade.

Sem comunicação
Nesse ínterim, o capitão Macquarie, o capitão Cleaveland e eu acomodamo-nos numa pequena e antiqüíssima carruagem (...), puxada por duas mulas e conduzida por um preto com aparência de macaco que não falava uma única palavra em inglês, do mesmo modo que ignorávamos o português. À partida, o preto aparentava bom humor, mas logo nos conduziu para uma rua na qual não se via um único inglês, parou bruscamente a carruagem e começou a tagarelar em português, demonstrando grande fúria.
Rapidamente, uma multidão rodeou-nos, multidão a quem o preto se dirigia ocasionalmente. Incapazes de compreender uma única palavra, ficamos paralisados no lugar onde estávamos, com muito medo. Para ser sincera, pensei nessa hora no caso do capitão e em tudo mais e concluí que a sorte estava contra nós e que o passeio seria um fiasco.
O preto, então, cansado de sacudir a mão para o alto como se estivesse encenando uma luta de boxe no meio da rua para entreter a populaça, começou a ameaçar o carteiro. Ele parecia mais enfurecido do que nunca, mas, por fim, resolveu acalmar-se e prosseguir. Concluímos que o preto não gostava de carregar três pessoas na sua carruagem e que o habitual eram dois passageiros.
Superado tal inconveniente, seguimos adiante em paz. A estrada era extremamente agradável e, a região, muito bonita. Fomos ver a casa que está sendo preparada para a recepção do príncipe, situada a quatro milhas [6,4 km] da cidade, num local privilegiado. O palácio, como é chamado, foi construído num estilo limpo, plano e de modo algum grandioso -grandiosidade que, por sinal, não combinaria com a atual situação da família real (...).
Tivemos o prazer de jantar com o almirante e a senhora de Courcy em sua casa, situada numa parte da baía bastante retirada e repleta de ilhas pequenas e arborizadas, a qual ainda não conhecíamos. A casa está quase à beira da água, numa tal proximidade que se sai do bote diretamente na escada de entrada. Fomos recebidos pelo casal da maneira mais delicada que se pode imaginar, sem nenhuma ostentação ou pompa. O almirante e a senhora de Courcy parecem ser pessoas de maneiras pacatas (...).

Navio-hospital
Havíamos resolvido em parte o problema que nos trouxera ao Rio de Janeiro. Logo que o coronel Macquarie comunicou ao almirante de Courcy o estado dos doentes que tínhamos a bordo, o almirante conseguiu interná-los no hospital, e os que não couberam foram instalados num navio especialmente preparado para acolhê-los (...).
O prédio que abriga o hospital -originalmente uma casa pertencente a um nobre- está localizado numa bela ilha, que tem um ar extremamente puro e, quase não é necessário dizer, uma ampla e bela vista do porto. Os quartos do andar de baixo são espaçosos e mobiliados de modo adequado para atender às necessidades do doente, que é acomodado quase à beira da água por assim dizer , desfrutando de uma agradável vista diante de si. O andar superior conta com uma excelente sala para os cirurgiões. Toda a ilha pertence ao hospital, o que dá ao doente a vantagem de, tão logo se sinta apto, poder caminhar livremente por ela.
Durante a nossa estada no porto, os navios foram amplamente abastecidos com vegetais e carne (...). No dia 23 de agosto, às 7h, deixamos o esplêndido porto do Rio de Janeiro e, às 8h30, depois de ultrapassar o estreito, ganhamos o mar, impulsionados por um ótimo vento (...).


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