São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Livros de Devoção, Atos de Censura" analisa a produção e leitura de livros religiosos no Brasil nos séculos 18 e 19

Os best-sellers da colônia

JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A história do livro no Brasil, sobretudo do livro no período colonial, nunca ocupou um lugar de grande destaque nas preocupações dos historiadores brasileiros. Produzimos, ao longo do século 20, obras interessantes e instrutivas, como "O Livro, o Jornal e a Tipografia no Brasil", do jornalista Carlos Rizzini, "Livros e Bibliotecas no Brasil Colonial", do erudito Borba Morais, "A Palavra Escrita", do crítico Wilson Martins, e pouco mais -tão pouco que somente com muito boa vontade se poderia vislumbrar uma tradição de estudos no setor.
É bem verdade que, nas últimas duas décadas, inspirada pelas obras de Roger Chartier, Robert Darnton, Carlo Ginzburg, Franco Moretti, entre outros, a historiografia brasileira passou a despender mais atenção ao complexo circuito dos livros e leitores. Todavia ainda não são muitos os trabalhos sobre o tema que têm vindo a público.
É, assim, bastante recomendável que o leitor interessado no assunto consulte "Livros de Devoção, Atos de Censura - Ensaios de História do Livro e da Leitura na América Portuguesa (1750-1821)", o mais recente trabalho da historiadora Leila Mezan Algranti. Vinculado à mencionada linhagem de pesquisas inaugurada na década de 1980, o livro de Algranti, como indica o título, reúne uma série de ensaios acerca da produção, circulação e consumo de livros religiosos no Brasil entre a metade do século 18 e o início do século 19. Dito de outro modo, reúne algumas reflexões sobre um dos gêneros mais lidos no Brasil colonial, os livros religiosos, durante um período de suma importância para a construção do que viria a ser conhecido como cultura brasileira.

"Caminho salvífico"
"Livros de Devoção", como se disse, é uma coletânea de ensaios e, embora guarde razoável unidade entre as suas partes, não deixa de padecer de um mal comum a obras do gênero, a repetição: a apresentação de um outro documento retorna uma, duas vezes; a explicação de um tal procedimento metodológico, com mais ou menos discrição, se insinua em vários ensaios; a biografia de um determinado "personagem" vai e volta; em suma, há um repassar de coisas que por vezes incomoda.
Malgrado, porém, esse pequeno inconveniente, os sete ensaios que compõem as duas partes do livro são de leitura agradável, bem documentados e trazem algumas abordagens interessantes.
A primeira parte, "Gêneros e Práticas de Leitura", composta por três ensaios, procura mapear o que liam e como liam as mulheres internas nos conventos e recolhimentos do Brasil e de Portugal.
Algranti, de saída, procura traçar o "contexto em que as leituras ocorriam" a bem da verdade, para brincar com as palavras, um contexto que é um "texto", na medida em que é construído a partir das normas e regimentos dos conventos e casas de recolhimento da colônia e da metrópole e determinar o perfil das leitoras nele inseridas.
Dando prosseguimento a tal empreitada, a historiadora apresenta, no segundo ensaio, um "estudo de caso" e esquadrinha a biblioteca minguada, como a cultura lusa do período (metropolitana e colonial), da fundadora do convento de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, madre Jacinta de São José.


O livro reúne algumas reflexões sobre um dos gêneros mais lidos no Brasil colonial

O terceiro e último ensaio da primeira parte é dedicado à análise de um gênero muito bem acolhido na época: as "biografias" e "autobiografias" produzidas por internas, por religiosas e por confessores, obras que davam a conhecer ou o próprio "caminho salvífico" de quem escrevia ou o caminho de uma outra servidora de Deus conhecida do "autor". Nestes dois últimos ensaios, nota-se, por vezes, um esforço da pesquisadora em apontar, no rol de leituras de Jacinta ou nas tais "biografias", por exemplo, a "ação de um sujeito" -a marca de uma "personalidade"-, bem como encontrar nessa documentação um caminho de acesso a um suposto cotidiano das religiosas.
Para bem e para mal, porém, o que a própria historiadora acaba por apresentar e constatar são padrões de leitura muito rígidos e restritos de obras marcadas, de ponta a ponta, por tópicas e lugares-comuns.

Censores sensíveis
A segunda parte do livro, "Censura e Livros Religiosos na Corte do Rio de Janeiro", abarca quatro capítulos, três dos quais notadamente dedicados a mapear o processo de circulação de livros no Rio de Janeiro dos tempos de d. João 6º. Algranti começa por descrever a estruturação da censura dos tempos joaninos, uma censura muito presente do ponto de vista burocrático, mas carente de critérios, de regras, de organização e, sobretudo, de eficiência.
Em seguida, mapeia o mundo dos livreiros da corte, dando especial atenção à comercialização de livros religiosos -gênero em decadência num Rio de Janeiro, que rapidamente deixava para trás os ares de cidade colonial. Por fim, a pesquisadora procura dar a conhecer o perfil dos censores, homens -não todos, é certo- bem informados, prestigiados socialmente e que outrora, quando alijados do poder, liam e defendiam, destaca a historiadora, muitas das idéias contidas nos livros que então censuravam.
Haveria, é certo, muito mais a comentar desses ensaios que se propõem a percorrer um domínio, senão selvagem, ao menos com muito a ser explorado pelos historiadores brasileiros. Em linhas gerais, porém, eis o que o leitor encontrará em "Livros de Devoção".
Resta apenas destacar que quem aprecia discutir opções teóricas subjacentes às análises históricas também terá com que se ocupar neste livro, pois a pesquisadora é assaltada por uma série de questões que, a bem da verdade, batem à porta, ou deveriam bater, de todos os historiadores contemporâneos, questões do gênero: lidamos com sistemas, do tipo "sistema colonial", ou estamos o tempo todo descrevendo um jogo que se auto-organiza, nos moldes propostos, por exemplo, por Foucault? Que espaço os padrões, as tópicas e os lugares-comuns deixam para o que se entende por "ator social", "sujeito da ação", "personalidade"? Ou que relações estabelecer entre o "discurso" e a "prática"?

Jean Marcel Carvalho França é professor de história na Universidade Estadual Paulista (Franca-SP). É autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/ Casa da Moeda).


Livros de Devoção, Atos de Censura
301 págs., R$ 40,00 de Leila Mezan Algranti. Ed. Hucitec (r. João Moura, 433, CEP 05412-001, São Paulo, SP, tel. 0/xx/ 11/3060-9273).


Texto Anterior: + livros: Vidas às avessas
Próximo Texto: + livros: Fábulas libertadoras
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.