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Em "A Verdade das Mentiras", Mario Vargas Llosa discute o estatuto
da ficção em escritores como Borges, Joyce, Orwell e Scott Fitzgerald
Fábulas libertadoras
RUBENS FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A menos que um livro seja
muito irritante, o leitor não
sente necessidade de se perguntar para que está lendo.
Mas, para o escritor, não é tão fácil.
Ainda que ele o negue, ainda que
desdenhe o problema, relegando-o
aos pobres de espírito, justificar sua
atividade é uma exigência tão inerente à própria atividade que já nem
se distingue dela com clareza. Por isso o escritor pode tentar justificar-se
apenas escrevendo mais livros, ao
mesmo tempo em que acredita que
o problema não o afeta.
O peruano Mario Vargas Llosa
ronda essa questão ao longo dos textos reunidos em "A Verdade das
Mentiras". Os 35 livros e autores do
século 20 comentados nesses artigos
de jornal acenam com a pergunta, de
longe ou a meia distância e de vários
ângulos.
Mas Vargas Llosa se desvia como
pode e se esforça para abrir em todos
os casos o mesmo caminho, que o leva sempre ao mesmo ponto: os romances são mentiras que dão prazer; são a cidadela que nos livra do
"cárcere da história"; "brincar com
mentiras é uma maneira de afirmar
a soberania individual e defendê-la";
a ficção é "um paliativo astuto e sutil"; ela nos compensa da condição
de "sonhar mais do que podemos alcançar".
A repetição pode até fazer as vezes
de um argumento e convencer pelo
cansaço. Mesmo assim Llosa se dá
conta de que algo está faltando, de
que não pode haver só isso. E pergunta: por que nos empolgamos
com "personagens de mentira"?
"Porque eles encarnam um ideal
universal", responde, "a aspiração
do absoluto que se aninha no coração humano". O fato de serem chavões murchos é o que menos incomoda nessas afirmações. O pior é
para o que servem.
"Mundo de fantasia"
O autor até reconhece que a ficção
"não é uma fabulação gratuita" e
que "ela afunda suas raízes na experiência humana". E reforça: "A ficção é uma acusação terrível contra a
existência, sob qualquer regime ou
ideologia". Mas falar é fácil, como
sabe todo ficcionista. Se, ao tratar de
Orwell [1903-50] e de Soljenítsin
[1918], Llosa não pode deixar de referir o teor crítico dos livros a circunstâncias históricas determinadas, quando comenta Borges [1899-1986] e Nabokov [1899-1977], ele logo volta atrás: "A arte exímia que
criaram não foi uma crítica ao existente, mas uma maneira de desencarnar a vida, dissolvendo-a numa
fulgurante miragem de abstrações".
E isso resume o impulso predominante nas leituras de Llosa. O que interessava a Joyce [1882-1941], por
exemplo, "não era informar nem
opinar sobre uma determinada realidade, mas recriá-la, dando-lhe a
dignidade de um belo objeto, uma
existência puramente artística". O
herói de "O Grande Gatsby" [de
Scott Fitzgerald] "não é um homem
de carne e osso, mas pura literatura",
e os demais personagens são "habitantes num mundo de fantasia".
Em outras palavras, o possível teor
crítico dos livros deve ser neutralizado, desviado para generalidades inócuas e convertido em uma potência
retórica sem alvo específico. "A varinha mágica do estilo", "o banho de
bela poesia", "a fome de irrealidade", "o prestidigitador que faz aparecer de repente um lencinho desaparecido" -aí está, para todos os
efeitos, o fio condutor das leituras de
Vargas Llosa.
Cara a cara com "Santuário", de
[William] Faulkner [1897-1962], o
autor pergunta: "A humanidade é
essa imundície?". E apressa-se em
negar: "A vida nunca é como nas
obras de ficção. Às vezes é melhor, às
vezes é pior". De outro lado, repete
que a literatura tem uma "predisposição sediciosa", pois, "quando fechamos o livro, regressamos à nossa
vida real e a comparamos com o esplendoroso território que acabamos
de deixar, e que decepção nos espera". Entre os dois pontos de vista, está a pergunta sem resposta, a que o
autor tenta se furtar e justamente
com a ajuda dos livros: o que fazer
com toda essa literatura?
Num sinal de confiança, Llosa reitera as teses consagradas que visam
a evitar que a ficção se torne um reflexo passivo da realidade. "O romance deve emancipar-se da realidade real"; "o tema nunca é essencial, mas a forma"; "a ficção não reproduz a vida, completa-a". Mas o
que isso significa, de fato, nas leituras de Llosa? Significa que há uma
parte da realidade que não convém
ser observada com acuidade crítica.
Que a forma é "uma fulgurante miragem de abstrações" que se presta a
ocultá-la. Que a ficção toma a palavra de quem não a tem.
Claro, isso não está necessariamente nos livros nem nas teses em
si, mas na maneira como Llosa guia
sua leitura. Pois, diante das "terríveis
acusações contra a existência" que a
ficção comporta, Llosa encontra
sempre um modo de desarmá-las e
de traduzi-las numa defesa da "soberania individual", num repetitivo
louvor à "civilização industrial que
suprime a miséria, a ignorância, o
desemprego e chega a assegurar à
maioria uma vida materialmente
decente". À luz dessa fé, a obra de
John dos Passos [1896-1970] seria
válida até hoje porque nos lembra
que ainda falta "enriquecer os homens espiritual e moralmente".
Mas devemos, talvez, ser gratos a
quem desperta nosso apreço por um
tipo de mentira capaz de dizer "uma
verdade que só se pode expressar escondida, disfarçada do que não é".
Pois, sem querer, isso nos adverte
de que à mentira também pode ser
indispensável o belo disfarce. Em
honra aos romances e contos, cumpre reconhecer que mesmo o vigilante Llosa às vezes deixa que os livros falem mais do que ele gostaria
de ouvir. Por exemplo, certa situação num romance de Orwell lhe sugere que "verdade e mentira não são
mais do que meras retóricas reversíveis que o poder utiliza" -hipótese
que, se levada a sério, em vez de ser
tratada apenas como um fraseado
engenhoso, daria a suas leituras um
rumo bem mais relevante.
Coisas não-reversíveis
Ou também no caso de um conto
de Isak Dinensen [1885-1962]. Ali,
uma personagem "perversa e deliciosa" expõe a teoria de que "Deus
prefere as máscaras à verdade, pois
já a conhece", e que "a verdade é para sapateiros e alfaiates". Creio que o
leitor saberá ouvir nos termos dessa
distinção um sinal de que, apesar de
a retórica ser reversível, há coisas
que não o são. E também um alerta
de que por trás da máscara, talvez de
"bela poesia", pode estar não Deus,
mas um indivíduo bem alimentado
e bastante cioso de suas posses.
Rubens Figueiredo é escritor e tradutor. É
autor de "Barco a Seco" (Cia. das Letras).
A Verdade das Mentiras
416 págs., R$ 49,00
de Mario Vargas Llosa. Tradução de Cordelia
Magalhães. Ed. Arx (av. Raimundo Pereira
de Magalhães, 3.305, CEP 05145-200, São
Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3649-4600).
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