São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

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Em "A Verdade das Mentiras", Mario Vargas Llosa discute o estatuto da ficção em escritores como Borges, Joyce, Orwell e Scott Fitzgerald

Fábulas libertadoras

RUBENS FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A menos que um livro seja muito irritante, o leitor não sente necessidade de se perguntar para que está lendo. Mas, para o escritor, não é tão fácil. Ainda que ele o negue, ainda que desdenhe o problema, relegando-o aos pobres de espírito, justificar sua atividade é uma exigência tão inerente à própria atividade que já nem se distingue dela com clareza. Por isso o escritor pode tentar justificar-se apenas escrevendo mais livros, ao mesmo tempo em que acredita que o problema não o afeta.
O peruano Mario Vargas Llosa ronda essa questão ao longo dos textos reunidos em "A Verdade das Mentiras". Os 35 livros e autores do século 20 comentados nesses artigos de jornal acenam com a pergunta, de longe ou a meia distância e de vários ângulos.
Mas Vargas Llosa se desvia como pode e se esforça para abrir em todos os casos o mesmo caminho, que o leva sempre ao mesmo ponto: os romances são mentiras que dão prazer; são a cidadela que nos livra do "cárcere da história"; "brincar com mentiras é uma maneira de afirmar a soberania individual e defendê-la"; a ficção é "um paliativo astuto e sutil"; ela nos compensa da condição de "sonhar mais do que podemos alcançar".
A repetição pode até fazer as vezes de um argumento e convencer pelo cansaço. Mesmo assim Llosa se dá conta de que algo está faltando, de que não pode haver só isso. E pergunta: por que nos empolgamos com "personagens de mentira"? "Porque eles encarnam um ideal universal", responde, "a aspiração do absoluto que se aninha no coração humano". O fato de serem chavões murchos é o que menos incomoda nessas afirmações. O pior é para o que servem.

"Mundo de fantasia"
O autor até reconhece que a ficção "não é uma fabulação gratuita" e que "ela afunda suas raízes na experiência humana". E reforça: "A ficção é uma acusação terrível contra a existência, sob qualquer regime ou ideologia". Mas falar é fácil, como sabe todo ficcionista. Se, ao tratar de Orwell [1903-50] e de Soljenítsin [1918], Llosa não pode deixar de referir o teor crítico dos livros a circunstâncias históricas determinadas, quando comenta Borges [1899-1986] e Nabokov [1899-1977], ele logo volta atrás: "A arte exímia que criaram não foi uma crítica ao existente, mas uma maneira de desencarnar a vida, dissolvendo-a numa fulgurante miragem de abstrações".
E isso resume o impulso predominante nas leituras de Llosa. O que interessava a Joyce [1882-1941], por exemplo, "não era informar nem opinar sobre uma determinada realidade, mas recriá-la, dando-lhe a dignidade de um belo objeto, uma existência puramente artística". O herói de "O Grande Gatsby" [de Scott Fitzgerald] "não é um homem de carne e osso, mas pura literatura", e os demais personagens são "habitantes num mundo de fantasia".
Em outras palavras, o possível teor crítico dos livros deve ser neutralizado, desviado para generalidades inócuas e convertido em uma potência retórica sem alvo específico. "A varinha mágica do estilo", "o banho de bela poesia", "a fome de irrealidade", "o prestidigitador que faz aparecer de repente um lencinho desaparecido" -aí está, para todos os efeitos, o fio condutor das leituras de Vargas Llosa.
Cara a cara com "Santuário", de [William] Faulkner [1897-1962], o autor pergunta: "A humanidade é essa imundície?". E apressa-se em negar: "A vida nunca é como nas obras de ficção. Às vezes é melhor, às vezes é pior". De outro lado, repete que a literatura tem uma "predisposição sediciosa", pois, "quando fechamos o livro, regressamos à nossa vida real e a comparamos com o esplendoroso território que acabamos de deixar, e que decepção nos espera". Entre os dois pontos de vista, está a pergunta sem resposta, a que o autor tenta se furtar e justamente com a ajuda dos livros: o que fazer com toda essa literatura?
Num sinal de confiança, Llosa reitera as teses consagradas que visam a evitar que a ficção se torne um reflexo passivo da realidade. "O romance deve emancipar-se da realidade real"; "o tema nunca é essencial, mas a forma"; "a ficção não reproduz a vida, completa-a". Mas o que isso significa, de fato, nas leituras de Llosa? Significa que há uma parte da realidade que não convém ser observada com acuidade crítica. Que a forma é "uma fulgurante miragem de abstrações" que se presta a ocultá-la. Que a ficção toma a palavra de quem não a tem.
Claro, isso não está necessariamente nos livros nem nas teses em si, mas na maneira como Llosa guia sua leitura. Pois, diante das "terríveis acusações contra a existência" que a ficção comporta, Llosa encontra sempre um modo de desarmá-las e de traduzi-las numa defesa da "soberania individual", num repetitivo louvor à "civilização industrial que suprime a miséria, a ignorância, o desemprego e chega a assegurar à maioria uma vida materialmente decente". À luz dessa fé, a obra de John dos Passos [1896-1970] seria válida até hoje porque nos lembra que ainda falta "enriquecer os homens espiritual e moralmente".
Mas devemos, talvez, ser gratos a quem desperta nosso apreço por um tipo de mentira capaz de dizer "uma verdade que só se pode expressar escondida, disfarçada do que não é".
Pois, sem querer, isso nos adverte de que à mentira também pode ser indispensável o belo disfarce. Em honra aos romances e contos, cumpre reconhecer que mesmo o vigilante Llosa às vezes deixa que os livros falem mais do que ele gostaria de ouvir. Por exemplo, certa situação num romance de Orwell lhe sugere que "verdade e mentira não são mais do que meras retóricas reversíveis que o poder utiliza" -hipótese que, se levada a sério, em vez de ser tratada apenas como um fraseado engenhoso, daria a suas leituras um rumo bem mais relevante.

Coisas não-reversíveis
Ou também no caso de um conto de Isak Dinensen [1885-1962]. Ali, uma personagem "perversa e deliciosa" expõe a teoria de que "Deus prefere as máscaras à verdade, pois já a conhece", e que "a verdade é para sapateiros e alfaiates". Creio que o leitor saberá ouvir nos termos dessa distinção um sinal de que, apesar de a retórica ser reversível, há coisas que não o são. E também um alerta de que por trás da máscara, talvez de "bela poesia", pode estar não Deus, mas um indivíduo bem alimentado e bastante cioso de suas posses.


Rubens Figueiredo é escritor e tradutor. É autor de "Barco a Seco" (Cia. das Letras).


A Verdade das Mentiras
416 págs., R$ 49,00 de Mario Vargas Llosa. Tradução de Cordelia Magalhães. Ed. Arx (av. Raimundo Pereira de Magalhães, 3.305, CEP 05145-200, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3649-4600).


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