São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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Ponto de fuga

O dom silencioso

Divulgação
Detalhe de foto de Claudia Andujar que faz parte de exposição na Pinacoteca do Estado de SP


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

As artes supõem sempre elaborações e habilidades técnicas. Entre a execução e a parte misteriosa, que não se aprende no colégio, há uma zona de passagem. Ela dissolve o corte da fronteira, a linha de demarcação. Do que pode ser ensinado e adquirido com objetividade, nascem os poderes da arte. Quando nascem, naturalmente, porque esses dados objetivos estão longe de serem suficientes: podem ser indispensáveis, mas não bastam.
Porém, na fotografia (não a de estúdio, mas aquela que se vincula ao instante e ao instantâneo, aquela que tem a natureza da reportagem visual) o enigma da criação artística desenha-se mais nítido. Surge de um mero clique, de um botão apertado. A técnica encontra-se na máquina, não no fotógrafo. Ao atingir a grandeza da obra de arte, a foto torna-se um milagre que depende apenas da dimensão criadora, não de um saber material.
A mostra que a Pinacoteca do Estado consagra a Claudia Andujar faz vir ao espírito essas questões. Apresenta imagens prodigiosas que instauram um mundo coerente, voltado para o humano: é biológico, sexuado e espiritual ao mesmo tempo. Índios tornam-se anjos ou demiurgos, enlaçam-se e enlaçam as pinturas do corpo sobre as palhas enlaçadas em que se deitam; fusquinhas se transfiguram, inquietantes e cósmicos.
Há mortos e recém-nascidos, há almas nos olhares, nos ventres, nas nádegas. Há índios, trabalhadores na construção de Brasília, gente modesta. As paisagens são marcadas pelos homens. Sem nenhuma exploração da miséria, sem astúcia, sem artifício de embelezamento. Não são imagens sedutoras, são profundas. Nutrem-se de sinceridade, o que é difícil de explicar, mas evidente ao olhar.

Tento
Claudia Andujar nasceu na Suíça, passou a infância na Hungria, formou-se em Nova York e se fixou no Brasil. A exposição reúne 70 estupendas fotografias, tiradas entre 1961 e 2003. Para a ocasião, a editora Cosacnaify publicou um livro com reproduções, entrevistas, depoimentos e ensaios sobre a artista.

Thriller
Foram-se os tempos em que Otto Maria Carpeaux podia escrever que Gustav Mahler conquistara "um público fiel, mas limitado, antes uma seita". Hoje, ao contrário, o compositor é favorito nas salas de concerto. Os ouvintes aderem sem reticências a seus desesperos exuberantes, à sua melancolia lírica. É adorado pelos maestros, já que ele explora o mais largo espectro orquestral, em espetaculares delírios sonoros ou meditações intimistas.
O avanço dessa popularidade teve um marco em 1971, ano de "Morte em Veneza", filme dirigido por Luchino Visconti. A terceira, a quinta sinfonias embebiam aquelas imagens; o "adagietto" da quinta associou-se para sempre à horizontalidade e à deliqüescência da laguna.
Para além de suas formidáveis qualidades, trata-se de música de execução muito difícil, de uma prova dos nove. Ora, a Orquestra Sinfônica de Campinas decidiu abrir sua temporada de 2005 exatamente com a sinfonia nš 5 de Mahler. Essa orquestra, que tem uma longa, excelente e digna história, passou por várias crises, algumas não muito antigas e bastante graves. Vem se refazendo há alguns anos, é fato, mas ainda assim o repertório escolhido podia parecer uma temeridade. Foi, ao contrário, um arrebatamento.
O maestro Cláudio Cruz, titular da formação, acerando arestas, ofereceu uma concepção áspera e contrastada da obra. Fazia ressaltar as "colagens" dos episódios sonoros, muitas vezes surpreendentes, que a povoam: era um pouco como se Mahler indicasse Charles Ives na linha do horizonte. A orquestra, que soava como nunca antes, respondeu, eletrizada, com brilhos enérgicos.

Ambívio
A récita inaugural da Sinfônica de Campinas ofereceu, em primeira parte, o concerto K.V. 207 de Mozart, para violino e orquestra. Cláudio Cruz era, ao mesmo tempo, regente e solista. Ele é um violinista de exceção, igual aos maiores. Revelou-se também notável maestro. É torcer para que uma carreira não sombreie a outra.

Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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