São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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+ literatura

Passado no interior da Inglaterra, "Nunca Me Deixe Ir", novo romance de Kazuo Ishiguro, tece uma rede de sugestões

Memórias de uma evasão escolar

GEOFF DYER

Ao discutir um livro construído sobre memórias, rumores e fofocas, acredito que não seja inadequado começar com algumas das minhas. Ouvi dizer em algum lugar que o novo romance de Kazuo Ishiguro, o sexto, era uma obra de ficção científica.


A ficção de Ishiguro depende de coisas que não são exatamente ditas


Também me lembro de ter lido, nos anos 80, que antigamente a ficção científica avançava com ousadia no futuro em séculos ou meio-séculos, mas agora as extrapolações imaginativas eram feitas em incrementos de apenas alguns anos. Então é interessante que, no século da ficção científica, "Never Let Me Go" [Nunca Me Deixe Ir] seja ambientado no passado -"Inglaterra, final dos anos 90"- e que seu clímax ocorra em uma pequena casa em Littlehampton [sul da Inglaterra].
A narradora, Kathy, relembra sua vida em Hailsham, uma espécie de escola idílica situada "numa suave depressão com colinas de todos os lados", no interior de uma estranhamente deserta Inglaterra. Claramente, a escola, onde se dá grande ênfase à expressão artística, é para algum tipo de grupo eleito ou de elite.
Durante algum tempo parece que "O Jogo das Contas de Vidro", de Herman Hesse, teria sido replantado em Albion. Com pleno conhecimento, de que não temos a menor idéia, Ishiguro faz Kathy, "uma cuidadora", tagarelar sobre "o pavilhão", "doações", "coleções", "a galeria", "a Bolsa", como se soubéssemos exatamente o que ela quer dizer. Essencialmente, todo o movimento do romance repousa no esclarecimento do significado dessas palavras de carga inócua.
Os incidentes nessa utopia onírica são quase absurdamente insignificantes: Laura é apanhada correndo pelo canteiro de ruibarbo, há uma grande confusão sobre um estojo de lápis, Kathy fica devastada ao perder sua fita cassete favorita.
É desnecessário dizer que a própria inocência desses fatos é carregada, ameaçadora. A atmosfera é ao mesmo tempo arcádica e, como diz Kathy, "perturbadora e estranha" (todo mês uma grande van branca desce pelo longo caminho da escola). Uma professora irrompe em pranto. Diz um boato que certa vez o corpo de um aluno foi encontrado "amarrado a uma árvore com as mãos e os pés decepados".

Indo longe demais
"Seu verde é uma espécie de lamento", escreve Philip Larkin em seu poema "Árvores". As folhas brotam "quase como se dissessem alguma coisa". Os leitores dos romances anteriores de Ishiguro devem saber que sua ficção depende de coisas que não são exatamente ditas. Seus personagens se revelam ao se refrearem obsessivamente, nunca se libertando. "Estou indo longe demais?", pergunta alguém no novo romance, antes de responder à própria pergunta: "Estou indo longe demais".
Mais ou menos na metade do livro, nosso vocabulário de termos codificados se expande quando surge a idéia de um "adiamento". Isso é central para o livro e para o método de Ishiguro em geral. A narrativa exige que o significado de "adiamento" -e se essa opção é possível ou não- seja adiado.
É daí que vem o suspense -um suspense caracterizado pela evasão calculada de qualquer coisa que se assemelhe a excitação. Ainda mais importante, a compreensão do livro -e as questões éticas que ele levanta ao se esquivar constantemente- só será completa quando compreendermos o que se pretende dizer com a palavra "completude".
O problema para o resenhista, de modo bastante apropriado, é que, ao revelar mais sobre o livro, ele corre o risco de ir longe demais e destrinchar esse tecido meticulosamente tramado de sugestões e palpites.
Então paro por aqui. Basta dizer que este livro muito estranho é tão intricado, sutilmente perturbador e comovente quanto os outros escritos por Ishiguro.

Onde encomendar
"Never Let Me Go" (ed. Faber, 272 págs., 16,99 libras -R$ 85), de Kazuo Ishiguro, pode ser encomendado, em SP, na Fnac (tel. 0/xx/11/4501-3000) ou no site www.amazon.co.uk

Este texto foi publicado no "Independent".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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