São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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Um sistema dois países

Thomas Skidmore defende que o abandono das políticas desenvolvimentistas de longo prazo e o investimento no consumo, tanto nos governos Lula e FHC, estão levando a uma cisão entre o sul e o norte do Brasil

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Há mais de meio século, a ausência, no Brasil, de políticas de desenvolvimento concretas e a de prioridades nesse sentido preocupam Thomas Skidmore, reputado historiador, "brasilianista", professor aposentado da Universidade Brown (EUA) e autor dos clássicos "Brasil -De Getúlio a Castelo", "Brasil - De Castelo a Tancredo" e "O Brasil Visto de Fora" (todos pela Paz e Terra).
Em 2005, a situação não teria mudado, e ele reitera: "O Brasil está perdendo, mais uma vez, o trem da história no que tange às chances de atingir níveis razoáveis de desenvolvimento sustentado".
Skidmore diz que uma política consistente do Brasil deveria sacrificar o consumo atual -"as elites brasileiras do Sudeste e do Sul agem como se estivessem em Paris ou em Milão"- para investir no futuro.
Leia a seguir os trechos da entrevista por telefone que ele concedeu à Folha, na última quarta-feira, depois de passar "dez agradáveis dias no Brasil".
 

Folha - Na semana passada, o sr. afirmou, em São Paulo, que, mais uma vez, o Brasil está perdendo o trem da história. Por quê?
Thomas Skidmore -
Fiz essa afirmação porque o nível do crescimento econômico brasileiro foi bom no ano passado, mas isso ocorreu pela primeira vez em dez anos. Infelizmente, o Brasil atingiu um equilíbrio, consolidando o aspecto "Belíndia" de sua sociedade [em 1974, o economista Edmar Bacha cunhou a expressão para definir o que, à época, via como a distribuição de renda no Brasil -uma pequena e rica Bélgica e uma imensa e pobre Índia].
O Sul e o Sudeste vão relativamente bem, mas o restante do país está em estado vegetativo. Não há nenhum plano de desenvolvimento nacional, pois ele não é prioritário. A economia brasileira depende muito da performance dos Estados meridionais. Assim, acredito que o Brasil esteja se dirigindo rapidamente a uma situação em que haverá dois países diferentes em seu território.

Folha - O que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deveria fazer para mudar o quadro?
Skidmore -
Ele tem de renovar suas prioridades, privilegiando áreas básicas, como a educação, que continua sendo negligenciada, e a infra-estrutura, já que as estradas de ferro e as de rodagem estão em mau estado. Além disso, é absolutamente necessário aumentar os níveis de investimento.
O Brasil investe hoje cerca de 18% [de seu PIB; os números de 2004 ainda não foram divulgados, mas espera-se algo pouco acima de 18%]. Seria preciso investir 25%.
Com esses níveis de investimento, o país não terá um crescimento econômico considerável e poderá se estagnar. Se o governo não estabelecer reais prioridades, visando a redução do consumo e a elevação dos investimentos, o Brasil permanecerá na mesma situação. Ou seja, o governo não conseguirá estimular o desenvolvimento.

Folha - Num mundo globalizado, em que os mercados financeiros e instituições como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial ditam as regras, Lula dispõe de que margem de manobra?
Skidmore -
É verdade que ele não tem muita margem de manobra para introduzir grandes reformas, pois Fernando Henrique Cardoso [presidente entre 1994 e 2002] e vários presidentes que o precederam deixaram o Brasil tão endividado que o atual governo tem de carregar um fardo considerável ao ser compelido a gerar dinheiro para bancar o serviço da dívida.
Devemos reconhecer que FHC, que foi muito bom em várias áreas, cometeu um grande erro ao permitir o aumento da dívida brasileira.
Embora tudo isso seja verdade, todavia, o governo atual tem de fazer alguma coisa. É necessário acelerar ainda mais as exportações e restringir as importações voltadas para o consumo direto da população. Há carros novos e importados por toda parte no Sul e no Sudeste, imensos edifícios residenciais, shopping centers etc. Trata-se de um luxo que o Brasil não tem como financiar se pretende se desenvolver.
Se nada for feito, os brasileiros continuarão a viver na "Belíndia" e só os habitantes dos Estados mais abastados vão lucrar com isso. Sei que há um problema financeiro, porém creio que qualquer governo brasileiro possa fazer muito mais do que vem sendo feito para aumentar sua margem de manobra.
Para tanto, seria preciso melhorar ainda mais a balança de pagamentos e usar o comércio externo como um instrumento para desenvolver todo o país, e não apenas as regiões mais ricas. O que existe hoje é uma falta total de planejamento para o desenvolvimento e de vontade de sacrificar o consumo atual para investir no futuro. As elites brasileiras do Sudeste e do Sul agem como se estivessem em Paris ou em Milão, e isso é prejudicial.
Elas poderiam manter o mesmo padrão de vida, no entanto isso levaria o país à estagnação econômica. E, como salientei há pouco, isso geraria uma absoluta divisão do Brasil em duas partes.

Folha - Ante esse quadro sombrio que o sr. acaba de descrever -que, em alguns aspectos, foge ao controle governamental-, como o presidente Lula conseguirá aplicar seu tão propalado programa social?
Skidmore -
Não sei. Mas uma coisa é certa: ele deveria recuperar o idealismo que o PT tinha originalmente. Não é possível simplesmente manter um modelo de consumo elevado e esperar que a economia melhore.
Sem sacrifícios, não haverá crescimento sustentado. O governo tem um política fiscal dura, mas não consegue obter grandes resultados com isso. O mais importante é que não existe no país um sentimento de que é preciso estabelecer prioridades para o desenvolvimento de todo o seu território. As autoridades do país estão à deriva.

Folha - Quais serão as conseqüências do agravamento das divisões existentes entre os Estados mais ricos e os mais pobres?
Skidmore -
As conseqüências sociais serão graves. Em termos práticos, uma conseqüência básica é que será preciso impor sacrifícios à população e começar a taxar mais o consumo para gerar dinheiro para os investimentos.
Os brasileiros não parecem entender que, para ter uma situação de prosperidade no futuro, é preciso começar a investir seriamente agora. A sociedade brasileira é centrada demais no consumo. Assim, o Brasil continuará dividido em dois.

Folha - Em termos históricos, como chegamos a essa situação?
Skidmore -
A razão básica é que as melhores oportunidades para estabelecer prioridades surgiram na década de 60, quando os militares tomaram o poder. O problema é que os militares diziam ter políticas de desenvolvimento bem definidas e prioridades claras, mas, na verdade, não as tinham. Os militares apenas reforçaram a tendência de encaminhar a maior parte dos recursos para o Sudeste e para o Sul e o fizeram durante mais de 20 anos.
Acredito que isso tenha desacreditado a idéia de que é preciso fazer sacrifícios para atingir níveis sustentáveis de desenvolvimento. Como reação ao regime autoritário, o Brasil acabou tendo um sistema partidário fragmentado e um modelo de desenvolvimento baseado no consumo, do qual a indústria automobilística se tornou um exemplo emblemático. Isso é muito custoso porque desvia dinheiro de investimentos mais importantes, como no setor da educação.


A motivação dos quadros do PT é a ascensão social, não o desenvolvimento durável do Brasil


Outro sintoma das imperfeições desse sistema é o mundo universitário. As universidades públicas brasileiras são um escândalo. A quantidade de dinheiro que sai dos cofres públicos para bancar esse sistema é enorme. E não há nenhuma inclinação na atual administração para atacar o problema mais grave desse sistema: o fato de o ensino ser gratuito. Esse também é um escândalo porque faz com que as diferenças sociais se agravem ainda mais. Os pobres pagam impostos para que os ricos estudem gratuitamente.

Folha - O sr. crê que o PT tenha perdido seu idealismo?
Skidmore -
O poder tende a distrair os políticos, tirando sua atenção de certos temas. O PT sempre foi uma coalizão. De um lado, havia muitas pessoas que eram idealistas, que acreditavam em ideais de melhora social, mas não sabiam como fazê-lo. De outro, havia os pragmáticos. Agora o PT encaixou-se no clássico modelo de prosperidade brasileiro, que vê empregos públicos como forma de ascensão social.
Assim, o governo federal está aparelhando o Estado e elevando o peso dos gastos com funcionários públicos. Trata-se de uma tradição brasileira e de um modo de diminuir o desemprego e de agradar a seus simpatizantes. Contudo essa é uma atitude míope, que custa caro ao país.

Folha - O sr. acha que FHC também perdeu seu idealismo ao chegar à Presidência?
Skidmore -
Sem dúvida, mas seu caso é mais complicado, pois ele não tinha os mesmos ideais que o PT. Não acredito que ele tenha a mesma visão de desenvolvimento que eu. FHC é mais parecido com um político brasileiro tradicional, embora seja bem mais elegante e inteligente. Não creio que ele possa imaginar que seja necessário sacrificar alguns hábitos das classes mais abastadas para atingir níveis sustentáveis de crescimento.
O problema com o PT é que seus membros pensavam que o governo brasileiro já tivesse a riqueza e que fosse preciso apenas redistribuí-la. Porém eles se esqueceram de que o Brasil não é, de jeito nenhum, um país rico e que, para desenvolver todo o seu território, é imprescindível ter prioridades.
Com isso, eles abraçaram a tese desenvolvimentista baseada no consumo e nos juros altos e negligenciaram políticas que criariam condições para o crescimento futuro. O PT não é, em princípio, um partido desenvolvimentista. Temo que os políticos brasileiros tenham abandonado a idéia de que é preciso desenvolver todo o país, não apenas parte dele.
Ninguém mais fala do Nordeste, uma região que está ficando cada vez mais esquecida. Nesses dias que passei no Brasil, mal ouvi falar do Nordeste. Às vezes, tenho a impressão de que, para boa parte da população brasileira mais abastada, os Estados mais pobres simplesmente não existem.

Folha - O sr. não vê, portanto, luz no fim do túnel?
Skidmore -
Não, pois não vejo líderes capazes de demonstrar o patriotismo necessário para a aplicação de políticas desenvolvimentistas que visam o longo prazo. Estas são dolorosas. Penso que o Brasil vá continuar nessa situação de divisão.
Acabei de escrever um artigo que compara a Coréia do Sul com o Brasil [que ainda não tem data de publicação], e as constatações são devastadoras.
O que a Coréia do Sul fez desde a década de 70 em comparação com o que fez o Brasil é extraordinário. E, para piorar a situação, a Coréia do Sul é um país bem mais pobre que o Brasil no que se refere a recursos naturais. Assim, não creio que as elites brasileiras tenham aprendido as lições sobre desenvolvimento direto que deveriam ter aprendido e estão contentes com suas regalias.

Folha - O sr. pensa que a solução esteja num esforço conjunto entre países sul-americanos?
Skidmore -
Trata-se de uma grande bobagem. O único país da região que soube estabelecer prioridades e mudar sua sociedade foi o Chile. O restante dos Estados sul-americanos só usa a retórica para manter o status quo. O México também está numa situação desfavorável, pois privilegia o modelo de consumo norte-americano.

Folha - A única esperança é, conseqüentemente, esperar o surgimento de um "salvador da pátria"?
Skidmore -
Já houve "salvadores da pátria", como Jânio Quadros, na década de 60, e Fernando Collor de Mello, na de 90; contudo eles também não encontraram a solução do problema. Os brasileiros devem esperar que haja algum tipo de renovação do establishment político do país. Caso contrário, nada vai mudar. É preciso recuperar os ideais de desenvolvimento nacional que existiam na década de 60.
A motivação dos quadros do PT é a ascensão social, não o desenvolvimento durável do Brasil. Assim, uma renovação política é crucial.


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