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Um sistema dois países
Thomas Skidmore
defende que
o abandono
das políticas
desenvolvimentistas
de longo prazo
e o investimento
no consumo,
tanto nos governos
Lula e FHC,
estão levando
a uma cisão
entre o sul
e o norte do Brasil
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Há mais de meio século, a
ausência, no Brasil, de políticas de desenvolvimento
concretas e a de prioridades nesse sentido preocupam Thomas Skidmore, reputado historiador, "brasilianista", professor aposentado da Universidade Brown
(EUA) e autor dos clássicos "Brasil
-De Getúlio a Castelo", "Brasil - De
Castelo a Tancredo" e "O Brasil Visto de Fora" (todos pela Paz e Terra).
Em 2005, a situação não teria mudado, e ele reitera: "O Brasil está perdendo, mais uma vez, o trem da história no que tange às chances de
atingir níveis razoáveis de desenvolvimento sustentado".
Skidmore diz que uma política
consistente do Brasil deveria sacrificar o consumo atual -"as elites brasileiras do Sudeste e do Sul agem como se estivessem em Paris ou em
Milão"- para investir no futuro.
Leia a seguir os trechos da entrevista por telefone que ele concedeu à
Folha, na última quarta-feira, depois
de passar "dez agradáveis dias no
Brasil".
Folha - Na semana passada, o sr.
afirmou, em São Paulo, que, mais
uma vez, o Brasil está perdendo o
trem da história. Por quê?
Thomas Skidmore - Fiz essa afirmação porque o nível do crescimento
econômico brasileiro foi bom no
ano passado, mas isso ocorreu pela
primeira vez em dez anos. Infelizmente, o Brasil atingiu um equilíbrio, consolidando o aspecto "Belíndia" de sua sociedade [em 1974, o
economista Edmar Bacha cunhou a
expressão para definir o que, à época, via como a distribuição de renda
no Brasil -uma pequena e rica Bélgica e uma imensa e pobre Índia].
O Sul e o Sudeste vão relativamente bem, mas o restante do país está
em estado vegetativo. Não há nenhum plano de desenvolvimento
nacional, pois ele não é prioritário. A
economia brasileira depende muito
da performance dos Estados meridionais. Assim, acredito que o Brasil
esteja se dirigindo rapidamente a
uma situação em que haverá dois
países diferentes em seu território.
Folha - O que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deveria
fazer para mudar o quadro?
Skidmore - Ele tem de renovar suas
prioridades, privilegiando áreas básicas, como a educação, que continua sendo negligenciada, e a infra-estrutura, já que as estradas de ferro
e as de rodagem estão em mau estado. Além disso, é absolutamente necessário aumentar os níveis de investimento.
O Brasil investe hoje cerca de 18%
[de seu PIB; os números de 2004 ainda não foram divulgados, mas espera-se algo pouco acima de 18%]. Seria preciso investir 25%.
Com esses níveis de investimento,
o país não terá um crescimento econômico considerável e poderá se estagnar. Se o governo não estabelecer
reais prioridades, visando a redução
do consumo e a elevação dos investimentos, o Brasil permanecerá na
mesma situação. Ou seja, o governo
não conseguirá estimular o desenvolvimento.
Folha - Num mundo globalizado, em
que os mercados financeiros e instituições como o FMI (Fundo Monetário
Internacional) e o Banco Mundial ditam as regras, Lula dispõe de que
margem de manobra?
Skidmore - É verdade que ele não
tem muita margem de manobra para introduzir grandes reformas, pois
Fernando Henrique Cardoso [presidente entre 1994 e 2002] e vários presidentes que o precederam deixaram o Brasil tão endividado que o
atual governo tem de carregar um
fardo considerável ao ser compelido
a gerar dinheiro para bancar o serviço da dívida.
Devemos reconhecer que FHC,
que foi muito bom em várias áreas,
cometeu um grande erro ao permitir
o aumento da dívida brasileira.
Embora tudo isso seja verdade, todavia, o governo atual tem de fazer
alguma coisa. É necessário acelerar
ainda mais as exportações e restringir as importações voltadas para o
consumo direto da população. Há
carros novos e importados por toda
parte no Sul e no Sudeste, imensos
edifícios residenciais, shopping centers etc. Trata-se de um luxo que o
Brasil não tem como financiar se
pretende se desenvolver.
Se nada for feito, os brasileiros
continuarão a viver na "Belíndia" e
só os habitantes dos Estados mais
abastados vão lucrar com isso. Sei
que há um problema financeiro, porém creio que qualquer governo
brasileiro possa fazer muito mais do
que vem sendo feito para aumentar
sua margem de manobra.
Para tanto, seria preciso melhorar
ainda mais a balança de pagamentos
e usar o comércio externo como um
instrumento para desenvolver todo
o país, e não apenas as regiões mais
ricas. O que existe hoje é uma falta
total de planejamento para o desenvolvimento e de vontade de sacrificar o consumo atual para investir no
futuro. As elites brasileiras do Sudeste e do Sul agem como se estivessem em Paris ou em Milão, e isso é
prejudicial.
Elas poderiam manter o mesmo
padrão de vida, no entanto isso levaria o país à estagnação econômica. E,
como salientei há pouco, isso geraria
uma absoluta divisão do Brasil em
duas partes.
Folha - Ante esse quadro sombrio
que o sr. acaba de descrever -que,
em alguns aspectos, foge ao controle
governamental-, como o presidente
Lula conseguirá aplicar seu tão propalado programa social?
Skidmore - Não sei. Mas uma coisa
é certa: ele deveria recuperar o idealismo que o PT tinha originalmente.
Não é possível simplesmente manter
um modelo de consumo elevado e
esperar que a economia melhore.
Sem sacrifícios, não haverá crescimento sustentado. O governo tem
um política fiscal dura, mas não consegue obter grandes resultados com
isso. O mais importante é que não
existe no país um sentimento de que
é preciso estabelecer prioridades para o desenvolvimento de todo o seu
território. As autoridades do país estão à deriva.
Folha - Quais serão as conseqüências do agravamento das divisões
existentes entre os Estados mais ricos
e os mais pobres?
Skidmore - As conseqüências sociais serão graves. Em termos práticos, uma conseqüência básica é que
será preciso impor sacrifícios à população e começar a taxar mais o
consumo para gerar dinheiro para
os investimentos.
Os brasileiros não parecem entender que, para ter uma situação de
prosperidade no futuro, é preciso
começar a investir seriamente agora.
A sociedade brasileira é centrada demais no consumo. Assim, o Brasil
continuará dividido em dois.
Folha - Em termos históricos, como
chegamos a essa situação?
Skidmore - A razão básica é que as
melhores oportunidades para estabelecer prioridades surgiram na década de 60, quando os militares tomaram o poder. O problema é que
os militares diziam ter políticas de
desenvolvimento bem definidas e
prioridades claras, mas, na verdade,
não as tinham. Os militares apenas
reforçaram a tendência de encaminhar a maior parte dos recursos para
o Sudeste e para o Sul e o fizeram durante mais de 20 anos.
Acredito que isso tenha desacreditado a idéia de que é preciso fazer sacrifícios para atingir níveis sustentáveis de desenvolvimento. Como reação ao regime autoritário, o Brasil
acabou tendo um sistema partidário
fragmentado e um modelo de desenvolvimento baseado no consumo, do qual a indústria automobilística se tornou um exemplo emblemático. Isso é muito custoso porque
desvia dinheiro de investimentos
mais importantes, como no setor da
educação.
A motivação
dos quadros do PT é a ascensão social, não o desenvolvimento durável do Brasil
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Outro sintoma das imperfeições
desse sistema é o mundo universitário. As universidades públicas brasileiras são um escândalo. A quantidade de dinheiro que sai dos cofres públicos para bancar esse sistema é
enorme. E não há nenhuma inclinação na atual administração para atacar o problema mais grave desse sistema: o fato de o ensino ser gratuito.
Esse também é um escândalo porque faz com que as diferenças sociais
se agravem ainda mais. Os pobres
pagam impostos para que os ricos
estudem gratuitamente.
Folha - O sr. crê que o PT tenha perdido seu idealismo?
Skidmore - O poder tende a distrair
os políticos, tirando sua atenção de
certos temas. O PT sempre foi uma
coalizão. De um lado, havia muitas
pessoas que eram idealistas, que
acreditavam em ideais de melhora
social, mas não sabiam como fazê-lo. De outro, havia os pragmáticos.
Agora o PT encaixou-se no clássico
modelo de prosperidade brasileiro,
que vê empregos públicos como forma de ascensão social.
Assim, o governo federal está aparelhando o Estado e elevando o peso
dos gastos com funcionários públicos. Trata-se de uma tradição brasileira e de um modo de diminuir o
desemprego e de agradar a seus simpatizantes. Contudo essa é uma atitude míope, que custa caro ao país.
Folha - O sr. acha que FHC também
perdeu seu idealismo ao chegar à Presidência?
Skidmore - Sem dúvida, mas seu
caso é mais complicado, pois ele não
tinha os mesmos ideais que o PT.
Não acredito que ele tenha a mesma
visão de desenvolvimento que eu.
FHC é mais parecido com um político brasileiro tradicional, embora seja bem mais elegante e inteligente.
Não creio que ele possa imaginar
que seja necessário sacrificar alguns
hábitos das classes mais abastadas
para atingir níveis sustentáveis de
crescimento.
O problema com o PT é que seus
membros pensavam que o governo
brasileiro já tivesse a riqueza e que
fosse preciso apenas redistribuí-la.
Porém eles se esqueceram de que o
Brasil não é, de jeito nenhum, um
país rico e que, para desenvolver todo o seu território, é imprescindível
ter prioridades.
Com isso, eles abraçaram a tese desenvolvimentista baseada no consumo e nos juros altos e negligenciaram políticas que criariam condições para o crescimento futuro. O
PT não é, em princípio, um partido
desenvolvimentista. Temo que os
políticos brasileiros tenham abandonado a idéia de que é preciso desenvolver todo o país, não apenas
parte dele.
Ninguém mais fala do Nordeste,
uma região que está ficando cada
vez mais esquecida. Nesses dias que
passei no Brasil, mal ouvi falar do
Nordeste. Às vezes, tenho a impressão de que, para boa parte da população brasileira mais abastada, os Estados mais pobres simplesmente
não existem.
Folha - O sr. não vê, portanto, luz no
fim do túnel?
Skidmore - Não, pois não vejo líderes capazes de demonstrar o patriotismo necessário para a aplicação de
políticas desenvolvimentistas que
visam o longo prazo. Estas são dolorosas. Penso que o Brasil vá continuar nessa situação de divisão.
Acabei de escrever um artigo que
compara a Coréia do Sul com o Brasil [que ainda não tem data de publicação], e as constatações são devastadoras.
O que a Coréia do Sul fez desde a
década de 70 em comparação com o
que fez o Brasil é extraordinário. E,
para piorar a situação, a Coréia do
Sul é um país bem mais pobre que o
Brasil no que se refere a recursos naturais. Assim, não creio que as elites
brasileiras tenham aprendido as lições sobre desenvolvimento direto
que deveriam ter aprendido e estão
contentes com suas regalias.
Folha - O sr. pensa que a solução esteja num esforço conjunto entre países sul-americanos?
Skidmore - Trata-se de uma grande
bobagem. O único país da região
que soube estabelecer prioridades e
mudar sua sociedade foi o Chile. O
restante dos Estados sul-americanos
só usa a retórica para manter o status quo. O México também está numa situação desfavorável, pois privilegia o modelo de consumo norte-americano.
Folha - A única esperança é, conseqüentemente, esperar o surgimento
de um "salvador da pátria"?
Skidmore - Já houve "salvadores
da pátria", como Jânio Quadros, na
década de 60, e Fernando Collor de
Mello, na de 90; contudo eles também não encontraram a solução do
problema. Os brasileiros devem esperar que haja algum tipo de renovação do establishment político do
país. Caso contrário, nada vai mudar. É preciso recuperar os ideais de
desenvolvimento nacional que existiam na década de 60.
A motivação dos quadros do PT é
a ascensão social, não o desenvolvimento durável do Brasil. Assim,
uma renovação política é crucial.
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