São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997.

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PONTO CRÍTICO
Uma estratégia socialista



Vinte teses em defesa de uma teoria democrática do Estado
TARSO GENRO
especial para Folha

1. A dificuldade mais visível de uma estratégia socialista democrática -na qual um projeto de Estado e sociedade, como em qualquer democracia, seja resultado de uma inteiração entre hegemonia e coerção legitimada, é, precisamente, o enfrentamento do fato de que o ``ser social, ao contrário da natureza, onde existe apenas causalidade'' (...) produz-se por ``uma peculiar e única articulação entre causalidades e teleologia, entre determinismo e liberdade'' (1).
2. Esta articulação entre causalidade e teleologia, entre determinismo e liberdade -causa e objetivo, força dos fatos externos e escolha- nunca se distribui de maneira uniforme. Se é verdade que há um crescente domínio sobre a exterioridade -``afastamento das barreiras naturais'', como diz Lukács-, grupos, classes, nacionalidades têm uma potência constitutiva da história, segundo o poder que acumulam, diante da desigual distribuição de riqueza, informação e cultura. O poder, alienado ao capital financeiro em escala global, subverte os Estados nacionais, reduz a eficácia da ação política tradicional, reorganiza os interesses imediatos de grupos e classes e também faz emergir um novo tipo de intelectuais ``orgânicos'', funcionários do capital financeiro.
3. Em síntese, as diversas formas da ``práxis`` afirmam o homem como ser social e, ao mesmo tempo, obrigam-no a conceber uma certa imprevisibilidade de seus projetos de futuro. Hoje esta indeterminação é mais acentuada, e o futuro mais imediato é sempre mais diverso. Mesmo que seja possível prever as suas linhas gerais, a sua realidade pensada é sempre diferente da sua realidade configurada na história, estruturada sob um cotidiano cada vez mais manipulado. A consequência é que as ``estratégias'' e os ``programas'' envelhecem sempre mais rapidamente, já que as mudanças no mundo social se dão de forma cada vez mais fluida e menos previsível.
4. Quando as classes estavam em repouso relativo no desenvolvimento do capitalismo industrial, a projeção dos desdobramentos do presente era menos incerta. A teleologia do trabalho operário, organicamente articulado na fábrica moderna e a teleologia do capital, voltado para um processo de acumulação, fundada principalmente na produção de bens corpóreos (átomos, não ``bits''), ofereciam parâmetros mais sólidos para pensar o mundo. Esta etapa do desenvolvimento da humanidade foi superada, e a mobilidade, a fragmentação, a emergência de novos processos de trabalho e dos novos padrões de acumulação fazem do futuro um momento sempre mais próximo e sempre menos previsível.
5. O confronto entre uma nova realidade espacial (globalização radicalizada) e temporal (novos ritmos de mudança do mundo social) e, de outro lado, a cultura socialista engendrada nas duas revoluções industriais é o conflito que se denomina de ``crise do marxismo''. Tempo e espaço mudam cada vez mais rapidamente na história e, consequentemente, desajustam programas e estratégias que se batem com novas formas de exploração e opressão.
6. O surgimento de fragmentados, mas consistentes, movimentos em ``defesa de direitos'' correspondem a uma impotência -atacar as fontes concretas das suas violações- e a uma força -vontade de resistir à violência do mundo ``pós-moderno''. Esta impotência e esta força fazem emergir uma enorme constelação de organizações civis, que abrangem desde as questões do consumo, defesa da saúde, direitos da sexualidade, direito a um mundo habitável (ambiente natural), passando pela luta afirmativa de culturas segregadas ou minoritárias, pelo direito de acesso à terra, à moradia, ao emprego e à própria integração na sociedade formal.
7. Ao ``governo-empresa'' -articulação direta do aparelho público com a ditadura do capital financeiro em escala mundial- corresponde o ``partido-empresa'' (2), que precisa se financiar e, ao mesmo tempo, considerar as exigências do capital para disputar eleitoralmente com viabilidade. De um novo espaço-tempo mundial (3) parte a exigência de uma política que precisa tender para um falso universal, ou seja, compartilhar por dentro da manipulação da ``opinião pública'', para direcioná-la, num ou noutro sentido, segundo os compromissos partidários originários das suas relações de classe, cultura, grupo ou nacionalidade.
8. Nos indivíduos que criam ou organizam idéias políticas, este processo gera uma devastação da cultura humanista moderna, especialmente na intelectualidade ``orgânica'' ou não, democrática, socialista ou social-democrática. Como não é mais possível prescrever uma hegemonia fundada num organismo uniforme e articulado socialmente -uma classe única propulsora-, a ausência de perspectivas previsíveis acentua a inorganicidade dos intelectuais e os libera para a cooptação.
9. O Estado -pelo seu Executivo- neste contexto, realiza um ``keynesianismo às avessas'' (4). À medida que a sua capacidade regulatória está voltada, principalmente, para compor com os interesses dos que manipulam a viagem virtual de trilhões de dólares que circulam no mundo, o Estado torna-se uma instituição macrorregulatória para viabilizar este movimento. Ele emite, ao contrário do que apregoam os neoliberais, uma forte carga normativa que submete não só a totalidade da ordem jurídica, mas a cotidianidade dos indivíduos.
O Estado atual é tão ``intervencionista'' como o Estado ``keynesiano'', só que seu poder regulatório adquire a sua força na total submissão às imposições do capital financeiro volatilizado, a quem ele responde para ordenar as relações socioeconômicas segundo as suas necessidades.
10. Por isso, a própria economia ficou mais difícil de ser entendida como resultado consequente da práxis. A alienação da vida cotidiana hipertrofia-se numa sucessão de respostas fragmentadas e despolitizadas, porque o Estado está ``ocupado'' e, aparentemente, sem capacidade de criar alternativas confiáveis. Seu momento de criação positiva seria ``romper com a atual ordem mundial'', que faz dos chefes de Estado gerentes diretos de interesses de corporações empresariais.
11. O ``localismo'' (5) torna-se, desta forma, o refúgio da política sem se transcender. Trata-se do surgimento de uma nova impotência -a justiça social como virtude circunscrita geograficamente-, mas também de uma nova possibilidade: a experimentação localizada. Esta, como momento de fundação de novas instituições públicas capazes de criar uma nova política, pode referenciar a disputa por um novo tipo de Estado.
12. É consequência também desta nova complexidade o fato de que a linguagem política não está mais composta só pela política (6): a reprodução do senso comum está, hoje, muito mais distante da história (como grande processo moldado por vontades estratégicas realizáveis) e mais próxima do imediatismo (como fluidos processos de mudanças incessantes que exigem respostas urgentes).
O acúmulo de estímulos locais, regionais e globais (7), originários da mundialização dos processos econômicos e do modo de vida tutelado pelo consumismo predatório, gera mais individuação, mais individualismo, mais disputa entre as pessoas, que procuram abrigo nos escassos lugares sólidos e estáveis da nova ``sociedade informática''. O assalariamento minimamente estável já passa a ser visto como privilégio.
13. A resposta é buscar uma estratégia que consiga fundir ação política e modo de vida; direito a exercer pressão em função dos direitos setoriais de cada grupo e demandas dotadas de universalidade; ação estratégica combinada com busca de respostas imediatas; demandas legítimas de caráter privado e demandas de interesse público; educação pela prática social e experiência política ``estatal'', movimentos que só podem se referir ao Estado, com ele, sobre ele ou contra ele: para gerar disputas e consensos na cena pública, na qual as demandas possam ser postas em confronto aberto e produzir novos consensos por meio de uma via democrática plebéia.
14. Habermas falou numa ``esfera pública cidadã'', um espaço de organização e diálogo na defesa de direitos, sem presumir que o Estado pode e deve ser radicalmente mudado, e que na sua mudança estrutural está o ``motor'' da transformação democrática da sociedade. Oscar Negt teorizou sobre uma ``esfera pública proletária'' sem conceber que, 20 anos depois, o proletariado seria apenas um dos integrantes do novo mundo do trabalho da nova ``sociedade informática''. Para uma estratégia socialista-democrática para um futuro aberto é preciso ``reduzir o poder regulatório de outras fontes de poder'' (8), que, na atual etapa histórica, é quase absoluto: o capital financeiro na ordem global. Aumentar crescentemente o poder da sociedade consiste em ter a democracia não como conceito fechado, mas como ``busca permanente, por parte dos homens, do controle sobre o Estado e suas instituições'' (9).
15. Fazer o Estado ``descer'' à sociedade não mais é possível pela pura representação política. Daí a necessidade de se criar um novo espaço público não-estatal, que terá, pela representação dos Executivos, a proposta de um novo contrato político, pelo qual ele se abre, por decisão programática e definição ideológica dos seus gestores, a uma nova esfera de decisões. Esta, assim, emerge do diálogo, das decisões elaboradas sob tensão e induzem e/ou acordam, com a representação política, respostas imediatas e projetos de longo curso. Trata-se -o espaço público não-estatal- de um sistema-processo baseado na democracia representativa combinada com a participação direta de caráter voluntário, um espaço integrado pelas representações do mundo do trabalho e organizações surgidas da autonomia popular, que contestam a ``abdicação'' das funções públicas do Estado na ordem neoliberal.
16. O projeto é democratizar radicalmente o Estado atual para criar outro Estado, com duas esferas de decisão combinadas e contraditórias: uma esfera decisória, oriunda da representação política, que já existe; e uma segunda esfera de decisões, oriunda de um novo espaço público, originário da presença direta das organizações da sociedade civil, que deve ser combinada com mecanismos universais consultivos, de referendo e plebiscitários. O Estado representativo passa a produzir e a implementar suas políticas -nestas condições- por meio de uma dinâmica democrática inovadora, que incorpora à vida pública todos os que quiserem dela participar.
17. Por esta estratégia os Executivos, em qualquer instância, adquirem importância fundamental para um projeto socialista democrático que se baseie na democratização crescente do Estado, seja por ruptura ou evolução, pois dos Executivos é que pode partir o compromisso de um novo contrato político entre Estado e sociedade: um compromisso que combaterá a causalidade e a determinação da economia, expressas de maneira concentrada no capital financeiro globalizado, subordinando-se à criação de políticas produzidas, como queria Bloch, pelas ``energias vivas dos homens vivos''. A representação política será permanentemente relegitimada sob pressão democrática e decidirá, com maior grau de autenticidade, pelo conhecimento atuante das aspirações sociais majoritárias.
18. Para que isto seja possível, o próprio processo eleitoral, para o partido democrático do socialismo, deve ser entendido como uma afirmação da representação política e também como negação dos seus limites. Estes ficam claros quando o representante eleito submete-se ao funcionamento autoritário do Estado atual, que implementa suas principais decisões induzido pela pura lógica dos interesses econômicos hegemônicos e se desprende da base da sociedade, que não conta com poder e influência para tornar públicas as suas demandas e necessidades.
19. Uma visão que se sustente puramente nas lutas sociais -seja das organizações civis, seja das entidades sindicais- é absolutamente impotente para reformar o Estado e democratizá-lo efetivamente. Uma visão puramente eleitoral, de outra parte, só afirma a representação política como representação logo deslegitimada e, assim, incapaz de se opor à ordem do capital volátil que constrange o Estado. Como estratégia democrática só o Executivo, enquanto poder macrorregulador da ordem social, sujeito à indução da sociedade civil, pode afirmar a autonomia desta, submetendo-se a ela para ter força constitutiva de políticas de caráter democrático-popular.
20. O pressuposto básico, que deve informar o partido democrático do socialismo, orientador deste movimento, é a defesa de um projeto econômico-social para o desenvolvimento da sociedade como um todo. Um projeto de caráter pluriclassista, gerador de um deslocamento do poder político e econômico dos monopólios privados, que promovem a integração dependente e submissa do Brasil à ordem global, para um bloco de alianças capaz de promover um desenvolvimento não-dependente, autônomo e cooperativo, que combata radicalmente a exclusão e reduza crescentemente as diferenciações sociais.

Notas:
1. Coutinho, Carlos Nelson. ``Marxismo e Política - a Dualidade de Poderes'', Cortez Editora, pág. 149.
2. Ferrajoli, Luigi. ``El Estado Constitucional de Derecho Hoy: el Modelo y su Divergencia de la Realidad'', in: ``Corrupcion y Estado de Derecho - el Papel de la Jurisdiccion'', Editorial Trotta, pág. 17.
3. Santos, Boaventura de Souza. ``Pela Mão de Alice - O Social e o Político na Pós-Modernidade'', Edições Afrontamento, 3¦ edição, pág. 246.
4. Pereira, Raimundo Rodrigues. Nota: a expressão é usada sistematicamente pelo jornalista e me parece teoricamente correta. A expressão coloca num novo patamar a discussão sobre a desregulamentação, que é a bandeira do neoliberalismo.
5. Dowbor, Ladislau. ``O Que É Poder Local'', Coleção ``Primeiros Passos'', Editora Brasiliense, 1994, pág. 27.
6. Buey, Francisco Fernándes et Richmann, Jorge. ``Ni Tribunos - Ideas y Materiales para un Programa Ecosocialista'', Siglo Veintiuno Editores, pág. 14.
7. Izquierdo, Ivan. In: ``Os Construtores do Futuro - Entrevistas com Lurdete Ertel'', Ed. Artes e Ofícios, pág. 30.
8. Genro, Tarso. In: ``Os Construtores do Futuro - Entrevistas com Lurdete Ertel'', Ed. Artes e Ofícios, pág. 123.
9. Pacheco, Eliezer. ``Marxismo e Democracia'', mimeografado, pág. 124.


Tarso Genro é advogado; foi prefeito de Porto Alegre (RS) de 1993 a 1996 e deputado federal pelo PT-RS entre 1989-1990.

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