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São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

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+ sociedade
O escritor argentino, que virá à Bienal do Rio, em maio, diz que a simulação democrática é a grande ameaça aos países latino-americanos

A doença do dogmatismo

Giovanna Bartucci
especial para a Folha

Ensaísta e poeta premiado, com obras traduzidas para diversas línguas, tradutor para o espanhol de autores como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond, Mario de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, Santiago Kovadloff estará no Rio de Janeiro, a convite da editora José Olympio, para o lançamento de seu livro "O Silêncio Primordial" (tradução de Eric Nepomuceno e Luis Carlos Cabral), que acontece durante a Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, entre 15 e 25 de maio. Nascido em Buenos Aires, em 1942, Kovadloff é professor convidado e conferencista em universidades na América Latina, EUA, Europa e Israel. Em 1998, incorporou-se à Academia Argentina de Letras.

Poeta, contista, autor de literatura para crianças e tradutor, o sr. afirma ter escolhido o ensaio como território para suas idéias. Por quê?
Em primeiro lugar, penso que os escritores não escolhem os gêneros nos quais trabalham. Somos escolhidos por eles. Parece-me que, se eu pudesse escolher um gênero literário, eu gostaria de escrever teatro. No entanto nunca tive o desejo de escrever teatro e, sim, a fantasia de querer escrever teatro. E não saberia lhe dizer a razão.

Em um de seus livros, o sr. afirma que a "fé não implica a confiança no possível, senão que é o resultado da entrega ao impossível". O sr. é um homem religioso?
Sou. Mas não sou um homem ritualista. Não acredito na palavra inamovível, à medida que respeito a interpretação. Não acredito na existência de um Deus criador, mas na existência de um enigma da origem. Eu não devo resolver esse enigma, e, sim, sustentá-lo. Daí que o dogmatismo é, para mim, uma doença.

Parece-me que sua obra repousa na idéia de que uma das mensagens essenciais da literatura consiste em dizer que nada caberia definitivamente na palavra e que, assim sendo, seria imprescindível voltar a dizer. O que o sr. acha disso?
Sim. E acredito que a tradição judaica tenha grande influência na minha formação. Sinto que, não tendo tido a chance de ter uma herança direta grega, tive a sorte de ser judeu, uma tradição que penso ser o maior capital espiritual que poderia ter recebido. Dentro desse capital, há um conceito fundamental, que tem agido em mim de maneira fundante, o de interpretação. A interpretação é, de fato, a grande tarefa encomendada aos judeus, ou seja, a interpretação da palavra bíblica como uma tarefa imprescindível e infinita. Interpretar é indispensável. A interpretação é a necessidade de você se apropriar da palavra de Deus, para trabalhá-la segundo as necessidades da sua experiência. Assim, o ensaio é o gênero que me permite dramatizar ao máximo a experiência da interpretação, uma vez que é um gênero de elaboração hipotética incessante, no qual você não pode findar a interpretação numa tese que não possa ser revista. Assim, interpretação e ensaísmo são experiências correlativas, em mim. Some-se a isso, também, o fato de que o escritor é, para mim, o homem que risca. Riscar, corrigir, isso é escrever. Penso que a maior virtude do escritor é a de uma infinita paciência.

O que o sr. pensa do conflito entre judeus e palestinos no Oriente Médio?
Essa é uma das tragédias mais profundas de Israel e do povo palestino. O povo palestino não só tem direito de ter o seu próprio Estado como também é indispensável para o judaísmo de Israel que esse Estado exista. [O premiê] Ariel Sharon é uma figura trágica na vida do judaísmo contemporâneo, uma vez que mostra a incapacidade que o governo israelense tem de levar adiante projetos de conciliação pacífica com a cultura palestina. Israel, que é uma nação democrática, não terá porvir em termos democráticos se a sua liderança continuar sendo militarista.

Uma das grandes ameaças à democracia é a simulação, ou seja, a manutenção de uma aparência de democracia.
Acho que você tem razão. Os países da América Latina correm o risco permanente de uma simulação democrática porque não é possível conciliar a estabilidade constitucional e a legitimidade institucional das democracias com a injustiça social. À medida que as nossas democracias não resolverem o problema da estabilidade constitucional e do desenvolvimento de políticas de justiça social, são democracias aparentes.

Como no caso argentino?
Acredito que a democracia argentina seja um processo incompleto e permanecerá assim enquanto o peronismo continuar à frente do país, uma vez que é uma força antidemocrática na sua estrutura, ao não privilegiar a supremacia do ideal republicano acima dos interesses corporativos. Tivemos, nos últimos 20 anos, um progresso importante. No entanto a atual crise argentina só poderá começar a ser resolvida por aqueles líderes que agirem em razão da desestruturação do sindicalismo, da possibilidade de outorgar à Justiça a autonomia que hoje ela não tem e à medida que as corporações privilegiarem consideravelmente os interesses da nação acima dos interesses setoriais.

Qual é, da sua perspectiva, a responsabilidade do intelectual, no que diz respeito à atual crise mundial?
A responsabilidade primeira do intelectual é fazer com que o relacionamento entre ética e política seja cada vez mais profundo, ainda que essa conciliação jamais possa ser definitiva. Mas é preciso que a política reconheça a sua dívida para com a ética e que a ética compreenda que o seu porvir é político, ou seja, que todos os relacionamentos éticos devem se desenvolver numa práxis política, uma vez que a política é o cenário em que os homens tentam aprofundar a sua capacidade de convivência.

"Ao alcance do homem está sempre a faculdade de legitimar o que lhe acontece": essa é outra idéia que impregna a sua obra. O sr. diria que a sua proximidade com a psicanálise freudiana é grande?
A psicanálise é, hoje, cultura, ou seja, um dos instrumentos que a cultura tem para pensar a experiência histórica do homem. Nesse sentido, a minha aproximação é dupla: fui e serei paciente psicanalítico, mas, além disso, a leitura da produção psicanalítica nos possibilita entender de maneira original uma das condições da finitude humana, ou seja, o fato de que o homem não é essencialmente um possuidor da realidade. É uma criatura sujeita a leis tão determinantes da sua idiossincrasia, como uma criatura capaz de transformar a realidade por meio de sua própria iniciativa criadora. A psicanálise ilumina os limites e as possibilidades da nossa experiência.


Giovanna Bartucci é psicanalista, ensaísta, membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e autora de, entre outros, "Borges - A Realidade da Construção" (Imago).


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