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São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

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+ cultura

Ensaísta italiano aborda as manifestações da cólera na história da literatura

IRA E CIVILIZAÇÃO

Associated Press/Christies
Detalhe de "Auto-Retrato" (1991), do pintor Jean-Michel Basquiat


Claudio Magris
especial para "Il Corriere della Sera"

Nas origens e nas raízes do Ocidente está a ira, inseparável da aurora da poesia que funda a nossa civilização: "Canta-me, ó musa, a funesta ira de Aquiles, filho de Peleu", diz o primeiro verso da Ilíada. O poema que se identifica com a poesia tout court é, acima de tudo, a epopéia da cólera. Esta aparece de repente como uma paixão negativa, portadora de desventura: é dito que trouxe infinitos males aos aqueus, conduziu à morte tantos heróis e deu aos cães e às aves seus corpos para comer. A ira de Aquiles não é a única; há a ira de Zeus pelo rapto de Helena, a de Apolo pela ofensa sofrida por seu sacerdote Crises, a de Agamênon pela escrava que lhe é tomada. A cada paixão que se une ela é danosa, mas nesse caso a cólera ameaça destruir por completo uma grande coletividade e fazer com que toda a Grécia coligada perca a guerra contra Tróia. Não se trata, de resto, de uma cólera qualquer; a palavra grega "menis" -lembra Maria Grazia Ciani- tem um valor sacro e indica a reação a uma profunda e injusta ofensa à honra pública (de um deus ou de um guerreiro), ou seja, a um profundo direito da pessoa, sancionado por um ritual ou por um direito consuetudinário vividos como uma lei religiosa. A ira é, portanto, ao menos inicialmente, justa e também obrigatória, uma resposta não apenas psicologicamente, mas também e sobretudo eticamente motivada e necessária. Ela é todavia imoderada, transgride a medida -a selvagem e incontrolável fúria de Aquiles- e é fonte de desgraça. Nasce da digna reivindicação do próprio direito/dever e, portanto, de si mesma, mas é perigosamente próxima da loucura, da perda de si. Como diz o ditado latino, "ira brevis furor", a ira é um breve furor. Da cólera de Aquiles à demência de Ájax, o passo é breve. Desde a origem, a civilização ocidental está familiarizada com a cólera e, mesmo atenta a seus perigos, reconhece nela uma grandeza. Iram-se heróis e deuses gregos, mas também o Senhor da Bíblia mostra frequentemente um vulto irado: a sua cólera, que abate os soberbos e orgulhosos, é inseparável da sua justiça e é necessária para a salvação do mundo. Mesmo Jesus manifesta sem inibições a sua cólera, por exemplo quando expulsa os mercadores do templo. O último dia -o dia do Senhor, da verdade- é um "Dies Irae". As divindades -os valores- de outras civilizações talvez não conheçam essa ambivalência da ira e não dêem a mesma relevância à cólera.


A cólera parece uma paixão ambivalente, perigosa, mas também nobre; expressão de grandeza, muitas vezes mortal e tragicamente desviada


Prós e contras
Quando Shiva dá a morte ou quando Krishna, no "Bhagavad-Gita", o texto sacro hindu, explica a Arjuna o dever de combater e portanto também de matar, não há ira nenhuma, e sim apenas a obediência a um código. Taoísmo e budismo ignoram a cólera ou a refutam como ilusão, desejo, engano da sede de viver. Apenas para os estóicos, os filósofos ocidentais mais próximos do ideal oriental de serenidade imperturbável, toda ira é viciosa, ao passo que os peripatéticos, seguidores de Aristóteles, distinguem, como seu mestre, a ira boa da má. O pensamento ocidental sempre se pergunta se e quando a cólera é justificada -ou necessária- ou não. Tomás de Aquino, em sua análise dos vícios ou pecados capitais, expõe todos os prós e contras a respeito da ira; mede profundamente as suas manifestações para distinguir a ira boa e virtuosa, que nasce do desdém objetivo pela injustiça, da ira malvada, nutrida de espírito de vingança, a ira justa contra o pecado daquela má, contra o pecador. Crisóstomo, comentando o "Evangelho de são Mateus", diz que, enquanto a ira imotivada é culpável, a motivada é necessária, porque sem esta "nem os julgamentos seriam saldados nem os crimes seriam reprimidos". Para são Tomás, ao contrário, a precipitação iracunda impede o juízo correto, pois o antecipa confusamente, como servos que -diz ele, citando Aristóteles- se apressam a executar uma ordem antes de escutá-la por inteiro e assim erram. A cólera alimenta a punição, mas a polui e a deforma, como pensava Archita di Taranto quando dizia ao servo que o havia ofendido: "Punir-te-ia gravemente se não estivesse irado contigo". À ira são associadas blasfêmia e insolência -à medida que o homem que a ela se abandona se arroga o direito de fazer justiça, que diz respeito a Deus-, mas também uma função útil, já que -agora quem diz é Crisóstomo- o "apoio irracional (...) convida ao mal não apenas os malvados, mas também os bons". A ira, diz Ugo di San Vittore, "tira o homem de si mesmo" -o furor que arranca o eu de si-, enquanto outros comentadores medievais afirmam que ela cega o olho da razão e do coração. Com seu gênio, mestre não apenas em classificações, mas também em ambiguidades, Aristóteles escreve na "Ética a Nicômaco": "A ira parece escutar a razão, mas a escuta de viés". A cólera parece portanto, para a reflexão filosófica, uma paixão ambivalente, perigosa, mas também nobre; expressão de grandeza, muitas vezes mortal e tragicamente desviada, mas de grandeza. Um sal que, se abusado incontrolavelmente, pode ser letal, mas que, na medida justa, não pode faltar; uma pessoa incapaz de cólera parece humanamente carente, privada de uma corda fundamental da humanidade. Enquanto a inveja, por exemplo, é só negativa -uma mesquinhez venenosa para si mesmo e para os outros, que em dose nenhuma e em nenhuma circunstância pode ser boa-, a ira se trança, perigosamente, com a magnanimidade, com a alma grande. Deus -e também o homem, segundo alguns feito à imagem e semelhança daquele- às vezes deve se irar, mas obviamente é impensável que se morda de inveja.

Defeito feio, defeitinho
A ira, em proporções não miticamente gigantescas, mas psicologicamente realistas, é um defeito feio, não um defeitinho. E, se dizemos de alguém -como eu disse uma vez de Alberto Cavallari, impávido, generoso e iracundo- que ele tem muitos defeitos feios, mas nenhum defeitinho, lhe fazemos um cumprimento. Como todas as paixões, a ira está obviamente bem presente na literatura. Trata-se de um tema, um objeto de representação literária e, sobretudo, de um modo de viver e representar o mundo típico dos escritores, um modo de ser deles.
Impossível fazer um catálogo das descrições poéticas da cólera: o furor de Aquiles, a explosão selvagem de dor e desgosto do rei Lear, o arrebentar irreprimível do dócil Pierre Bezuchov e tantas outras páginas imortais da literatura, radiografia e eletrocardiograma de todas as afeições da mortalidade humana. Para muitos escritores, a cólera não é simplesmente um motivo, como o ciúme de Otello ou a ignávia de Oblomóv, que não significam necessariamente que Shakespeare fosse ciumento ou Gontcharóv, indolente. Para alguns escritores, a cólera é o seu próprio olhar que se pousa sobre o mundo ou o retrai.
Os grandes escritores satíricos vêem, representam e agridem a realidade com os óculos da cólera, que a distorcem, mas lhe conferem, graças a essa deformação, uma verdade insólita. Os escritores satíricos são os vingadores da natureza -também e sobretudo da natureza humana- ultrajada, reprimida, alterada ou falsificada. A ira de Juvenal, de Swift, de Karl Kraus ou de Gadda, para citar apenas alguns exemplos; escritores que vingam as injustiças sofridas pelos homens por sua própria obra ou por obra de outros homens.
A cólera está ligada estreitamente à vingança. O escritor satírico vinga uma presumida pureza originária corrompida, constrangendo quem a violentou -violentando assim a si mesmo- a ter consciência dessa violência destrutiva e autodestrutiva, a se dar conta de que falsificou a vida e de que vive de modo e em um mundo falsos; a perceber o desconforto, o desgosto, a diminuição, a impotência da própria condição. Como cada cólera e cada vingança, essa fúria é necessariamente tendenciosa e repugnante; vê apenas aquele mal que quer agredir, ignorando todo o resto. Desse ponto de vista, o escritor colérico-satírico é frequentemente injusto e errado no caráter absoluto de sua agressão; mas sem a sua unilateralidade hiperbólica e sua grandiosa deformação não teríamos jamais descoberto -graças à lente da ira, que deforma, mas engrandece e constrange a ver tantas coisas- alguns aspectos, algumas verdades essenciais da vida, da história, da sociedade, da civilização, do homem. A cólera exaspera, mas essa exasperação pode pôr no fogo de modo insólito um lado insólito do real, que pode ser percebido apenas sob essa ótica distorcida.

Realidade aberrante
A ira vê as coisas a uma distância zero, como o doutor Kien no "Auto-de-Fé" de Canetti, e desvela a desmesura objetiva e a loucura das coisas vistas. A cólera fria e gélida de Flaubert rasga o véu fictício que envolve e atenua a violência das coisas e apenas desse modo torna possível o acesso a uma autêntica ternura e pureza. Talvez hoje a nossa realidade aberrante, reduzida à sátira de si mesma e a uma careta irreconhecível, possa ser entendida e resgatada apenas a partir de uma perspectiva que saiba unir à angústia e à ironia a cólera. O lêvedo de que precisamos deve conter alguns gramas de ira bíblica e flaubertiana. A vida implica o juízo universal sobre a ira, e este requer uma justa composição de amorosa piedade e sanguinária cólera. Ninguém o revela melhor do que Dante, o maior poeta de uma cólera inseparável da tensão moral, do sentimento forte da vida e da história, da grandeza de ânimo. Dante parece demonstrar que a capacidade de se irar é uma qualidade necessária à plena humanidade de um indivíduo, como a capacidade de amar. Mas Dante sabia bem que o valor da cólera subsiste apenas enquanto esta permanece dentro do limite justo e transcende a mera subjetividade do impulso e do sentimento individual; ele sabia também quão facilmente a ira ultrapassa esse limite e degenera em excesso e no desencadeamento de furiosos desejos pessoais. Nesse caso a ira é pecado mortal, vício capital; aos iracundos é reservado o quinto círculo do inferno. Os iracundos, além disso, estão próximos, em seu castigo, dos preguiçosos, culpados de um pecado passivo que não pareceria ter nada em comum com a fúria imoderada dos primeiros, mas que em vez disso mantêm com esta última ligações estreitas e ambíguas.

Tristeza
Aristóteles já havia percebido o nexo entre ira e tristeza. A cólera é triste porque arranca o eu de si mesmo, turva o olhar e ofusca a visão desfrutável das coisas, a capacidade de gozá-las com aquele livre abandono à sedução do viver que só é possível em júbilo, em comunhão fraterna com os outros. A cólera impede essa fraterna igualdade porque faz de quem a experimenta um juiz, fatalmente acima dos outros -e julgar, por si só, é sempre triste. Brecht sabia bem quando dizia que a ira -a sua ira política- altera o rosto, e se salvava dessa alteração graças à consciência que tinha disso. Sem essa consciência tornamo-nos vítima do ressentimento, de uma raiva mesquinha e caricatural que impede o livre relacionamento com o mundo e prende o ânimo na frustração. O ressentimento permanece preso na viscosidade dos erros súbitos, verdadeiros ou presumidos, dos quais apresenta sempre a conta e aos quais atribui cada falta. A cólera se torna nesse caso um rancor, um comportamento coagido e repetitivo, uma retórica do sentir e do dizer; frequentemente um enfático moralismo declamatório. Numerosos escritores, inclusive alguns bons, cederam a essa cólera vestida de terno e tornada estereotipia mecânica travestida de nobre desdém permanente. Esse comportamento caracteriza muitos escritores obstinadamente críticos nos confrontos com a modernidade, a burguesia, a democracia, as massas, o "bem-pensar" e o conformismo progressista. Léon Bloy é um exemplo dessa ira que teve muitos imitadores, grandes, médios e pequenos. Também nesse caso a ira denuncia e agride distorções reais, mas se reduz à fórmula pré-fabricada, objetivamente apodrecida apesar de sofrida passionalmente; a ladainha previsível, que sempre retorna, repetida com prazer.

Arma retórica
A cólera é, literariamente, também uma retórica -com as suas figuras, as suas metáforas, as suas amplificações. A retórica pode ser o sistema linguístico que um grande poeta atinge criativamente ou um repertório cobiçado pelo seu desfrute. Os coléricos antidemocráticos enumeram muitos medíocres que abusam esterilmente de tal retórica e fazem sempre a mesma face feroz. Entre esses há também alguns grandes, irrepetíveis e inimitáveis, frequentemente imitados por tantos desdenhosos iracundos de profissão, que se sentem autorizados a falar como se fossem Céline.
A ira, diz Kipling, é o ovo do medo; a cólera nasce muitas vezes daquilo que obscuramente turva e ameaça. "Dominar a cólera", escreve Adam Smith em sua "Teoria dos Sentimentos Morais", "parece não menos generoso e nobre do que dominar o medo". Esse domínio, continua Smith, só é bom quando se opõe a um impulso livre e forte, quando não nasce por sua vez de um medo reprimido e mistificado: se há algo no universo que nos dá medo, diz Chesterton, é necessário se enfurecer contra isso, desenterrá-lo e golpeá-lo na cara.
A cólera contra quem é mais forte que não seja dominada; que seja reprimida aquela, tão vil e frequente, contra quem é mais fraco. A nobre ira, como aquela generosamente experimentada e rapidamente esquecida pelo senhor Pickwick, o imortal herói de Dickens, se faz una com a generosidade do sentir e é antitética ao ressentimento, que se alinha e se radica rancoroso no ânimo e se torna natureza estável do indivíduo.
Nenhum desdém iracundo, por mais motivada, necessária e justa que seja a sua origem, pode se tornar aflição permanente sem se transfigurar em uma falsa posição. A cólera é libertadora apenas se for possível libertar-se também dela; "Que o sol", diz são Paulo na epístola aos efésios, "não se ponha sobre a vossa ira".

Claudio Magris é escritor e crítico literário italiano, professor na Universidade de Trieste e autor de "Danúbio" e "Microcosmos" (ed. Rocco).
Tradução de Victor Aiello Tsu.


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