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São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

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Em "O Que Sobrou do Paraíso?", o francês Jean Delumeau refaz a história das representações do céu na cultura ocidental desde o Gênesis até o século 20

Uma geografia da paz eterna

Reprodução
"Livro do Céu e do Mundo" (1377), iluminura de Nicolas Oresme


Mary del Priore
especial para a Folha

Se "o inferno são os outros", como dizia Sartre, o que seria o paraíso? Para Voltaire, era lá onde ele estivesse. Para Baudelaire, seriam as drogas. Hoje, os verdadeiros paraísos -tudo indica- são os perdidos. São aqueles que, na linha do horizonte, recuam a cada vez que nos aproximamos, tornando-nos mais infelizes do que já somos. As variações na compreensão do que seja o céu e o inferno mostram que essa simetria quase perfeita se modificou ao longo do tempo, ensejando uma proliferação de discursos. Mas seria preciso voltar no tempo para assinalar os primeiros passos da história da idéia de paraíso, alguns deles correspondendo ao nascimento da modernidade. O maior especialista no assunto é Jean Delumeau, que, em livros sobre a história do sentimento religioso, vem se perguntando sobre sua evolução. "A história do paraíso", explica, "é, sobretudo, aquela de suas evocações sucessivas". Tendo exaurido a história do medo e da culpa, o renomado professor do Collège de France examina, em "O Que Sobrou do Paraíso?", o que considera uma necessidade inalienável, a felicidade, sublinhando que essa busca se exprimiu, entre os séculos 13 e 20, por meio do mito do paraíso. Um mito que ele desvela e estuda no texto de místicos como Teresa d'Ávila, escritores como Dante, pintores como El Greco e Pozzo.

Textos fundadores
Quase 600 páginas perfazem um fascinante itinerário. Primeiramente, Delumeau examina os textos fundadores, como o Gênesis ou "A Cidade de Deus", o céu na cosmografia medieval, sonhos e visões, as viagens ao além e a literatura mística. A seguir, analisa a Jerusalém celeste em escritos e em imagens, suas transformações em palácio, igreja e jardim, sua flora e perfumes. Os anjos merecem um capítulo extraordinário. Como se vestiam, qual o significado das cores e o simbolismo do ouro. Quem mais habitava o paraíso? Deus na forma de cordeiro, Maria, Adão e Eva, os santos e os eleitos brindados com juventude eterna. Na terceira parte, estuda o aparecimento da música celestial e depois o apagamento dos anjos músicos, as relações entre a verticalidade e a horizontalidade na perspectiva pictórica e na arquitetura, o papel do círculo e da cúpula, símbolos da união entre Deus e os homens na arte barroca e as tentativas, na arquitetura, de captar a irrupção do divino. A quarta parte, a mais pessoal delas, é consagrada ao processo de desconstrução das representações do paraíso, sublinhando as rupturas trazidas pela modernidade na forma de uma poetização constante do paraíso na literatura e uma crescente abstração no discurso teológico.

Corações e mentes
Além disso, Delumeau demonstra como as teses heliocêntricas fazem desaparecer as esferas celestiais, desvalorizando a noção de repouso enquanto Galileu detona a idéia de um céu harmônico e inalterável. Delumeau lembra, contudo, que, apesar do medo da morte e da crescente secularização, a esperança de um dia reencontrar parentes e amigos segue interpelando a cultura ocidental. Eis por que, em filigranas, o autor se interroga sobre o futuro dessa aspiração que a cultura medieval transformara numa virtude: a esperança cristã, em um tempo a eternidade e, num lugar, o paraíso.
Tributário de pioneiros como Lucien Febvre e, depois, Philippe Ariès, a quem atribui enorme influência em seus trabalhos, Delumeau optou por estudar sentimentos e comportamentos coletivos sob o guarda-chuva da chamada "história das mentalidades". Aí instalado, deparou-se com temas incomuns que lhe permitiram desvendar abordagens e problemas pouco ou nunca frequentados pela historiografia.
O atual trabalho inscreve-se num tríptico que já pensou antes o horror do pecado e o desejo de proteção. Pensa agora as delícias da vida eterna. Sempre munido de volumosos dossiês documentais, Delumeau faz emergir continentes submersos graças à firmeza e erudição de seu discurso, convidando o leitor a percorrer um vasto afresco da civilização cristã e das sobrevivências pagãs dentro dela. Criticado por utilizar documentos que provêm de camadas cultivadas da sociedade e que, portanto, não revelariam as formas de sentir e pensar na mentalidade popular, ele se defende dizendo que os dois principais materiais sobre os quais trabalha, a imagem e o escrito, são efetivamente privilégios das elites. Mas que os estudos sérios consagrados às relações entre "cultura de elite" e "cultura popular" chegaram à conclusão de que as duas se interpenetram. Afinal a sociedade não é composta por conjuntos estanques.
Ao retraçar com grande competência o imaginário e a dimensão do paraíso perdido, Delumeau nos dá, em tempos de guerra, uma irônica lição: na geografia medieval, um dos lugares do paraíso era justamente entre o Tigre e o Eufrates. Lá mesmo, no atual Iraque. A pergunta que dá título ao livro, "O Que Sobrou do Paraíso?", nesse caso já tem resposta: nada! Ainda assim, vale a pena, e muito, essa viagem até lá...


Mary del Priore é professora de história na USP e coordenadora do Arquivo Nacional (RJ). É autora de, entre outros, "Revisão do Paraíso" (Campus).

O Que Sobrou do Paraíso?
566 págs., R$ 54,00 de Jean Delumeau. Tradução de Maria Lúcia Machado. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/ xx/11/3707-3500).


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