São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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A nova antropofagia

Marcos Flamínio Peres
Editor-adjunto do Mais!

Fusão. Miscigenação. Devoração. Esses termos que definem tão bem o "Manifesto Antropofágico" (1928) do modernista brasileiro Oswald de Andrade foram um anúncio premonitório do fenômeno de proporções inéditas por que tem passado a sociedade americana nas últimas décadas: a latinização. É o que defende o linguista mexicano Ilan Stavans, professor na Universidade Amherst, em Massachusetts.
Para ele, o sucesso de cantores como Ricky Martin, Jennifer Lopez e Christina Aguilera mostra que os hispânicos nos EUA "não estão mais na periferia, mas já são uma parte essencial da paisagem". Outra prova disso, para Stavans, é que a cidade de Los Angeles -a segunda mais populosa dos EUA e com 46% de moradores "chicanos"- poderá eleger no dia 5, pela primeira vez desde o final do século 19, um prefeito de origem latina, o descendente de mexicanos Juan Villaraigosa.
Stavans (leia entrevista) é um especialista na faceta mais dinâmica desse processo, a linguagem. No próximo semestre, deve lançar seu "Dictionary of Spanglish" (Dicionário de Spanglish, Basic Books), o primeiro glossário dedicado inteiramente à língua que funde elementos do espanhol e do inglês, falada nos guetos de Los Angeles, nas ruas do Harlem hispânico -"El Barrio"- ou ouvida nas várias emissoras de rádio e TV espalhadas pelas cidades grandes e médias do país.
Exemplo disso é a FM "La Mega". Com locução quase toda em espanhol salpicado de spanglish, ela conseguiu a proeza de ser a primeira emissora não falada em inglês a liderar o enorme e disputado mercado de rádios de frequência modulada de Nova York.
Por tudo isso, defende Stavans, o impacto do spanglish "é inevitável" e, com a hispanização, irá "nos forçar a reconsiderar a história dos EUA de maneiras ainda não imaginadas".
Stavans, que também criou no ano passado em Amherst o primeiro curso sobre spanglish dos EUA, pretende coligir em seu glossário cerca de 6.000 termos, como "marketa", do inglês "market" (mercado), ou "emilio", e-mail, termo que exemplifica a variante tecnológica da língua, o "cyberspanglish".
Os verbetes são tirados de placas publicitárias, da literatura -de autores como Junot Diaz (leia entrevista na pág. 11) e Abraham Rodríguez- e de letras grupos musicais. Mas também de publicações como a comportada e familiar "Latina", cujo número de abril traz uma matéria sobre como escolher o nome de seu filho: "Choosing your baby's nombres...".
Para Stavans, ao tomar de empréstimo elementos do espanhol e do inglês para criar uma nova forma de expressão, o spanglish acaba interferindo diretamente na morfologia e na sintaxe de ambas as línguas, como na oração "voy a shopear soquetas a la marketa".

O escândalo nacional americano A crítica mais consistente aos limites da expansão do spanglish e à própria "mestizaje" vem do professor de história da Universidade do Estado de Nova York, Mike Davis. Marxista de formação, Davis tem uma visão orgânica da chamada "latinização dos EUA" que o opõe em vários aspectos ao culturalismo de Ilan Stavans. Para Davis, há questões de fundo econômico e social que simplesmente banem a maior parte dos hispânicos dos benefícios da sociedade americana.
Ele cita o elevado índice de imigrantes latinos que abandonam os estudos -"um escândalo nacional"-, a resistência cada vez maior ao ensino bilíngue nas escolas -oficializado na polêmica Proposição 227 e defendido pelo movimento "English Only"- e à chamada ação afirmativa -que prevê, por exemplo, reserva de vagas para minorias nas universidades.
Davis também relativiza, com estatísticas, a entusiasmada defesa da miscigenação feita por Stavans: metade dos casamentos inter-raciais nos EUA se realiza entre os próprios hispânicos. Davis, autor de "Ecologia do Medo" (lançado há pouco no Brasil pela ed. Record) e "Magical Urbanism" (Urbanismo Mágico, Verso), afirma que o spanglish é apenas um estágio intermediário até o domínio completo do inglês pelos hispânicos.
Nesse sentido, caminha na mesma direção do professor de literatura comparada da Universidade Yale Roberto González-Echevarría, que chamou o spanglish, em artigo publicado no "The New York Times", de "língua de hispânicos pobres, muitos dos quais analfabetos nos dois idiomas". O spanglish, conclui Echevarría, "indica marginalização, não liberação".
Mas Mike Davis vai mais longe. Vê um sinistro paralelo entre a marginalização das comunidades hispânicas nos EUA e o futuro de todo o continente. A Área de Livre Comércio das Américas (Alca), cujo último round de discussão ocorreu na Cúpula de Quebec, em abril passado, só beneficiará "a mobilidade do capital, da poluição, das drogas e da violência". Como contrapartida, prossegue Davis, "o livre mercado cria mais obstáculos para o trabalho e as culturas ditas marginais".
Como se vê, "devoração", para Ilan Stavans e Mike Davis, carrega sentidos e produz significados diametralmente opostos -para o bem e para o mal.


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