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O professor Ilan Stavans fala sobre o dicionário que está preparando e que compila pela primeira vez a língua falada
nas comunidades hispânicas dos EUA
As vozes do spanglish
Associated Press
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O artista plástico James de la Vega tendo ao fundo um de seus murais, em Nova York
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da Redação
Pela primeira vez o spanglish -a face linguística
da latinização dos EUA- passará a ter estatuto
de língua, e não de uma mera derivação corrompida do inglês e do espanhol. Na entrevista abaixo, Ilan Stavans fala de seu "Dictionary of Spanglish"
(Dicionário de Spanglish), previsto para sair no segundo semestre. Trata-se do primeiro léxico dessa língua,
reunindo mais de 6.000 verbetes tirados da linguagem
das ruas, romances, anúncios publicitários e histórias
em quadrinhos. Faz, também, um balanço do curso
pioneiro sobre spanglish que ministra na Universidade
Amherst desde o ano passado e defende que a hispanização não é mais um fenômeno periférico na sociedade
americana.
De acordo com ele, o fenômeno irá levá-la a passar
por "transformações sociopsicológicas profundas". Isso já seria visível, por exemplo, na enorme popularidade de ídolos pop como Ricky Martin e Jennifer Lopez.
Citando a antropofagia de Oswald de Andrade, Stavans
crê que a "mestizaje" irá enterrar definitivamente qualquer preocupação com a "autenticidade" que ainda resta na sociedade moderna.
(MARCOS FLAMÍNIO PERES)
Qual a importância de um léxico do spanglish?
Meu "Dicionário de Spanglish" é de fato, até onde
sei, a primeira tentativa de fixar, em todos os detalhes, as vozes do spanglish. É um léxico histórico em
que constam referências desde 1848, quando foi assinado o tratado de Guadalupe Hidalgo, que permitiu
que quase dois terços do território do México fossem
cedidos aos EUA. Busca refletir as mudanças no vocabulário, na gramática e na sintaxe até hoje.
O dicionário tenta também estabelecer as diferenças entre o spanglish mexicano-americano, o cubano-americano, o dominicano e vários outros. Mostra que o spanglish não é um fenômeno apenas dos
EUA, mas que também está vivo na Argentina, no
México, na Espanha, no Caribe. No total deverá ter
mais de 6.000 verbetes, com uma ou mais definições,
pronúncia e exemplos contextualizados, incluindo
poemas, romances, quadrinhos, classificados de jornais, letras de música etc. Uma versão menor está
disponível no site www.spanglishlive.com
A grande popularidade de ídolos de origem hispânica
nos EUA, como os cantores Ricky Martin e Jennifer Lopez,
representa a ascensão legítima dessa cultura ou apenas
sua instrumentalização pela mídia?
Ricky Martin, Jennifer Lopez são um sinal óbvio da
aceitação pelos americanos da cultura hispânica.
Mas esse não é um fenômeno recente: pense em
Ricky Ricardo, Anthony Quinn, Carmen Miranda,
Dolores del Rio... A diferença é que hoje a aceitação é
mais comum. Esses indícios indicam que os hispânicos não estão mais na periferia, mas estão vindo para
o centro da cena -são uma parte essencial da paisagem dos EUA. Paralelamente a isso, a maior aceitação de autores latinos, a exibição de novos programas de TV, a disseminação de emissoras de rádio
em espanhol, a proeminência de figuras públicas em
todas as frentes, o extraordinário aumento de interesse na mídia pelas questões hispânicas e assim por
diante. Um programa compreensivo global que está
diminuindo a distância entre Norte e Sul.
Mas nos últimos anos houve casos flagrantes de discriminação contra hispânicos no interior dos EUA, como restrições a placas e anúncios em espanhol. Em nível nacional,
há também a Proposição 227, que deseja "banir" o ensino bilíngue em território americano, e mesmo Estados
mais liberais, como a Califórnia, a defendem. Quais são
os limites da expansão do spanglish nos EUA?
O spanglish, tal como o conhecemos, certamente irrompeu na consciência coletiva americana como resultado da xenofobia e resistência contra a educação
bilíngue. De acordo com o censo de 2000, há mais de
30 milhões de latinos ao norte do rio Grande (que divide Eua e México). E isso é só o número de imigrantes oficiais, sem incluir os milhões de ilegais. Não importa a acepção que adotemos, o spanglish é não
apenas um veículo de comunicação, mas um "estado de espírito". Ataques contra ele, de dentro e de fora da população hispânica, continuarão. Mas a diferença é evidente: agora as pessoas prestam atenção.
Então a criação de um curso de spanglish em uma instituição de prestígio como Amherst é um indício de que ele
está entrando no "maistream"?
Isso anuncia que a cultura latina não está mais nas
bordas e força os intelectuais a reconhecer a cultura
popular não mais como uma manifestação passível
de ser esquecida, mas como uma fonte de transformações sociopsicológicas profundas. Uma década
atrás e até antes, o spanglish ainda era rejeitado como impuro e ilegítimo. Hoje reconhecemos que seu
impacto é inevitável e que, no mínimo, ele requer toda a nossa atenção.
De que exatamente trata seu curso?
O curso é uma tentativa interdisciplinar de entender
o fenômeno do spanglish não apenas nacionalmente, mas globalmente, a partir de uma miríade de
perspectivas: histórica, demográfica, sintática, linguística, literária, sociológica etc. As aulas não são
"em", mas "sobre" spanglish. Os alunos lêem Samuel Johnson, Antonio de Nebrija, Alfonso Reyes,
Angel Rosenblatt, Octavio Paz, Fernando Ortiz,
Giannina Braschi, Ana Lydia Vega (leia trecho de
um conto seu à pág. 9) e vários outros etnógrafos,
ensaístas, linguistas, poetas e romancistas. Ele se estende de 1848 até hoje e explora as manifestações do
spanglish em países como Argentina, Colômbia,
Porto Rico, Espanha e México.
Qual é a origem de seus alunos e o que buscam no curso?
Na primeira turma, no ano passado, houve cerca de
70 pessoas. Menos da metade era de origem hispânica. Havia vários americanos, asiáticos e afro-americanos. O objetivo era explorar o spanglish como um
cruzamento de civilizações e linguagens. Os tópicos
discutidos incluem portunhol, "franglês", tradução,
modernidade, globalização, educação bilíngue, ação
afirmativa, multiculturalismo e colonialismo.
Há distinções entre os falantes de spanglish de acordo
com idade, sexo ou origem?
O spanglish não é uma forma homogênea e unificada de comunicação. Há diferenças agudas não só no
spanglish falado por porto-riquenhos, cubanos, dominicanos e mexicanos, mas também no que é falado em Miami, San Antonio, Nova York ou Los Angeles. E também entre o spanglish urbano e rural. Do
mesmo modo, o spanglish se modificou ao longo do
tempo, e as formas usadas em um dado lugar no início do século 20 são diferentes das usadas hoje. O
curso e o dicionário tentam explicar e enfatizar essas
diferenças. Mas a meta é também mostrar em que
medida a mídia e a internet estão criando um certo
tipo de síntese "padronizada".
Como o spanglish está modificando a língua inglesa?
Apenas semanticamente ou também a morfologia e a
sintaxe?
As transformações ocorrem em ambas as direções.
Há sentenças como "llamar para tras" ou "voy a shopear soketes a la marqueta", em que a estrutura sintática é basicamente a do espanhol, mas "marqueta"
substituiu "supermarket" (supermercado), "soketes", "socks" (meias) e "shopear", "shop" (comprar). Estudos sobre a morfossintaxe do spanglish
são cruciais para entender o fenômeno, mas também estudos sobre "code-switching" (troca de códigos). Tudo isso precisa ser visto a partir do contexto
em que estão situados os latinos hoje nos EUA, não
mais, repito, na periferia, mas no palco central.
O sr. tem afirmado que o spanglish deverá se tornar uma
língua autônoma, embora várias pesquisas mostrem que
um terço da população hispânica dos Estados Unidos não
fala mais nem sequer o espanhol e que isso tende a se
acentuar nos próximos anos. Não lhe parece mais provável que o spanglish seja ou assimilado pelo inglês ou simplesmente desapareça?
Eu tenho tido cuidado em não ser transformado em
uma espécie de profeta. Meu papel como intelectual
é viver "no" presente e reconsiderar o passado por
meio do exame das idéias. O espanhol é a segunda
língua mais falada dos EUA, mas ela não existe em
forma pura, e seu futuro é certamente problemático.
Mas é um fato que a Univision e Telemundo são as
duas redes de TV que mais crescem nos EUA, à frente da CBS, ABC e NBC. Editoras lançam livros em espanhol para consumo nacional. Os cursos dos departamentos de espanhol nas universidades estão
repletos de estudantes.
Esses são sinais óbvios das transformações por que
passaram os Estados Unidos na segunda metade do
século 20 e um anúncio do rumo que a nação como
um todo está tomando.
Às vezes acho que o futuro irá se parecer com a Los
Angeles do filme "Blade Runner", de Ridley Scott
-uma mistura de espanhol, inglês e mandarim como uma "língua franca". Outras vezes acho que o
spanglish será um estágio de transição, extinto
quando da "assimilação total" da comunidade hispânica. Mas essa segunda opção me parece problemática, porque os latinos estão vindo para os EUA já
há muito tempo, pelo menos desde a primeira metade do século 19. Mesmo o termo "vindo" é problemático, pois muitos mexicanos-americanos não
"vieram" em nenhum sentido; ao contrário, foram
os EUA que foram até eles, quando foi assinado o
tratado de Guadalupe Hidalgo, permitindo que quase dois terços do território do México fossem para
"el otro lado". Transição? Estágio de passagem? Novamente sou cético. Seja qual for a resposta, estou
certo de que o tipo de espanhol e, em menor extensão, de inglês que falamos hoje será estranho aos cidadãos de amanhã. O que consideramos impuro,
contaminado, ilegítimo e desagradável será percebido como convencional por nossos descendentes.
A antropofagia é um conceito muito mais adequado -ligeiramen te revisado, talvez- para entender o processo de mão dupla que estamos testemunhando: a hispanização dos EUA; nós estamos nos
devorando uns aos outros
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O spanglish é um fenômeno urbano?
Pelo menos dois terços da minoria latina dos EUA
vivem hoje em cidades, mas um número considerável -trabalhadores imigrantes, sobretudo- permanece morando em zonas rurais. O spanglish, em
seus vários aspectos, pertence a vários grupos, não
somente àqueles das metrópoles.
Há uma arte, música ou literatura em spanglish?
Sim. O spanglish se manifesta tanto no hip hop
quanto na poesia e em romances. Tem mostrado sua
força em murais e em outras formas pictóricas. A internet também tem sido uma grande promotora
dessas manifestações artísticas e culturais. Entre os
nomes mais importantes estão os escritores Junot
Diaz, Juan Felipe Herrera, Abraham Rodriguez Jr.,
Juan Luis Guerra ou grupos musicais como o Cafe
Tacuba -que funde samba, bolero, polcas e outros
ritmos- e os rappers do Chicano 2 the Bone. Eu
mesmo já dei palestras e conferências em spanglish.
Por que a língua espanhola tem se mostrado tão mais vigorosa nos EUA -a ponto de dar origem a uma mescla
como o spanglish- do que as línguas de outras comunidades de imigrantes, como alemães, poloneses e italianos, que desapareceram?
É uma pergunta complexa que pede uma resposta
complexa. Hispânicos são e não são um grupo imigrante tradicional nos EUA. Outras comunidades de
imigrantes que os antecederam, já na terceira geração, deixaram seu sotaque. Mas com os latinos, por
causa do modo como chegaram aos EUA, é difícil dizer onde a primeira, segunda e terceira gerações realmente estão. Também os EUA -ao menos uma
parte significativa de seu território- começaram na
Espanha com a chegada dos colonizadores e missionários ibéricos. Além disso, a proximidade do México e da América Central, em contraste com as "distantes" Polônia, Itália ou Alemanha, tornaram a
transição um processo ameaçador. Por tudo isso, os
latinos podem ser vistos como um grupo imigrante
étnico, mas são também uma extremidade da América Latina nos EUA: uma nova nação hispânica, a
qual, a julgar pelo seu tamanho, é a quinta maior
concentração de hispano-falantes do globo, depois
de países como México e Argentina.
O crescimento da minoria latina levou a um outro
nível o debate nacional nos EUA sobre "brancura" e
"negritude". O conceito de "raça cósmica" de José
Vasconcelos e a aceitação, nos anos 60, da categoria
de "browness" (derivação de "brown", marrom,
usada para designar os hispânicos) pelo Movimento
Chicano estão, por razões óbvias, ganhando força
hoje em dia e irão nos forçar a reconsiderar a história
do país de maneiras ainda não imaginadas.
O sr. conhece a música brasileira?
Conheço mais a literatura do que a música. Sou
um entusiasta da obra de Moacyr Scliar, tenho o
"Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, na
versão espanhola, na cabeceira de minha cama, acho
Clarice Lispector mais interessante do que Virginia
Woolf, fico impressionado com os ensaios sobre cultura brasileira de Roberto Schwarz e admiro os contos policiais de Rubem Fonseca. E com frequência
invoco o conceito de antropofagia e as pinturas de
Tarsila do Amaral para refletir sobre a arte latina.
Mas o sr. acredita que o conceito de antropofagia possa
ajudar a entender a "mestizaje" que está ocorrendo hoje
nos EUA?
A antropofagia é um conceito muito mais adequado
-ligeiramente revisado, talvez- para entender o
processo de mão dupla que estamos testemunhando: a hispanização dos Estados Unidos e também a
norte-americanização do continente americano.
Nós estamos nos devorando uns aos outros. Em outras palavras, somos ao mesmo tempo os criadores e
os objetos do mundo transcultural em que vivemos.
Nada é puro. A miscigenação reina e aumentará ainda mais. Acho que essa categoria é emblemática pelas implicações que tem em relação à "autenticidade". Nos Estados Unidos, os hispânicos são vistos
como uma minoria étnica; na América Latina, são
vistos como aqueles que partiram. Esse sentido de
adição, de hibridismo, nos faz abandonar qualquer
busca pela "autenticidade". Mas nos dias de hoje,
com o novo espírito de conquista, o sentido de originalidade -isto é, o de autenticidade na ausência de
autenticidade- está vivo.
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