São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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O professor Ilan Stavans fala sobre o dicionário que está preparando e que compila pela primeira vez a língua falada nas comunidades hispânicas dos EUA

As vozes do spanglish

Associated Press
O artista plástico James de la Vega tendo ao fundo um de seus murais, em Nova York




da Redação

Pela primeira vez o spanglish -a face linguística da latinização dos EUA- passará a ter estatuto de língua, e não de uma mera derivação corrompida do inglês e do espanhol. Na entrevista abaixo, Ilan Stavans fala de seu "Dictionary of Spanglish" (Dicionário de Spanglish), previsto para sair no segundo semestre. Trata-se do primeiro léxico dessa língua, reunindo mais de 6.000 verbetes tirados da linguagem das ruas, romances, anúncios publicitários e histórias em quadrinhos. Faz, também, um balanço do curso pioneiro sobre spanglish que ministra na Universidade Amherst desde o ano passado e defende que a hispanização não é mais um fenômeno periférico na sociedade americana.
De acordo com ele, o fenômeno irá levá-la a passar por "transformações sociopsicológicas profundas". Isso já seria visível, por exemplo, na enorme popularidade de ídolos pop como Ricky Martin e Jennifer Lopez. Citando a antropofagia de Oswald de Andrade, Stavans crê que a "mestizaje" irá enterrar definitivamente qualquer preocupação com a "autenticidade" que ainda resta na sociedade moderna. (MARCOS FLAMÍNIO PERES)

Qual a importância de um léxico do spanglish?
Meu "Dicionário de Spanglish" é de fato, até onde sei, a primeira tentativa de fixar, em todos os detalhes, as vozes do spanglish. É um léxico histórico em que constam referências desde 1848, quando foi assinado o tratado de Guadalupe Hidalgo, que permitiu que quase dois terços do território do México fossem cedidos aos EUA. Busca refletir as mudanças no vocabulário, na gramática e na sintaxe até hoje.
O dicionário tenta também estabelecer as diferenças entre o spanglish mexicano-americano, o cubano-americano, o dominicano e vários outros. Mostra que o spanglish não é um fenômeno apenas dos EUA, mas que também está vivo na Argentina, no México, na Espanha, no Caribe. No total deverá ter mais de 6.000 verbetes, com uma ou mais definições, pronúncia e exemplos contextualizados, incluindo poemas, romances, quadrinhos, classificados de jornais, letras de música etc. Uma versão menor está disponível no site www.spanglishlive.com
A grande popularidade de ídolos de origem hispânica nos EUA, como os cantores Ricky Martin e Jennifer Lopez, representa a ascensão legítima dessa cultura ou apenas sua instrumentalização pela mídia?
Ricky Martin, Jennifer Lopez são um sinal óbvio da aceitação pelos americanos da cultura hispânica. Mas esse não é um fenômeno recente: pense em Ricky Ricardo, Anthony Quinn, Carmen Miranda, Dolores del Rio... A diferença é que hoje a aceitação é mais comum. Esses indícios indicam que os hispânicos não estão mais na periferia, mas estão vindo para o centro da cena -são uma parte essencial da paisagem dos EUA. Paralelamente a isso, a maior aceitação de autores latinos, a exibição de novos programas de TV, a disseminação de emissoras de rádio em espanhol, a proeminência de figuras públicas em todas as frentes, o extraordinário aumento de interesse na mídia pelas questões hispânicas e assim por diante. Um programa compreensivo global que está diminuindo a distância entre Norte e Sul. Mas nos últimos anos houve casos flagrantes de discriminação contra hispânicos no interior dos EUA, como restrições a placas e anúncios em espanhol. Em nível nacional, há também a Proposição 227, que deseja "banir" o ensino bilíngue em território americano, e mesmo Estados mais liberais, como a Califórnia, a defendem. Quais são os limites da expansão do spanglish nos EUA?
O spanglish, tal como o conhecemos, certamente irrompeu na consciência coletiva americana como resultado da xenofobia e resistência contra a educação bilíngue. De acordo com o censo de 2000, há mais de 30 milhões de latinos ao norte do rio Grande (que divide Eua e México). E isso é só o número de imigrantes oficiais, sem incluir os milhões de ilegais. Não importa a acepção que adotemos, o spanglish é não apenas um veículo de comunicação, mas um "estado de espírito". Ataques contra ele, de dentro e de fora da população hispânica, continuarão. Mas a diferença é evidente: agora as pessoas prestam atenção. Então a criação de um curso de spanglish em uma instituição de prestígio como Amherst é um indício de que ele está entrando no "maistream"?
Isso anuncia que a cultura latina não está mais nas bordas e força os intelectuais a reconhecer a cultura popular não mais como uma manifestação passível de ser esquecida, mas como uma fonte de transformações sociopsicológicas profundas. Uma década atrás e até antes, o spanglish ainda era rejeitado como impuro e ilegítimo. Hoje reconhecemos que seu impacto é inevitável e que, no mínimo, ele requer toda a nossa atenção.
De que exatamente trata seu curso?
O curso é uma tentativa interdisciplinar de entender o fenômeno do spanglish não apenas nacionalmente, mas globalmente, a partir de uma miríade de perspectivas: histórica, demográfica, sintática, linguística, literária, sociológica etc. As aulas não são "em", mas "sobre" spanglish. Os alunos lêem Samuel Johnson, Antonio de Nebrija, Alfonso Reyes, Angel Rosenblatt, Octavio Paz, Fernando Ortiz, Giannina Braschi, Ana Lydia Vega (leia trecho de um conto seu à pág. 9) e vários outros etnógrafos, ensaístas, linguistas, poetas e romancistas. Ele se estende de 1848 até hoje e explora as manifestações do spanglish em países como Argentina, Colômbia, Porto Rico, Espanha e México.
Qual é a origem de seus alunos e o que buscam no curso?
Na primeira turma, no ano passado, houve cerca de 70 pessoas. Menos da metade era de origem hispânica. Havia vários americanos, asiáticos e afro-americanos. O objetivo era explorar o spanglish como um cruzamento de civilizações e linguagens. Os tópicos discutidos incluem portunhol, "franglês", tradução, modernidade, globalização, educação bilíngue, ação afirmativa, multiculturalismo e colonialismo.
Há distinções entre os falantes de spanglish de acordo com idade, sexo ou origem?
O spanglish não é uma forma homogênea e unificada de comunicação. Há diferenças agudas não só no spanglish falado por porto-riquenhos, cubanos, dominicanos e mexicanos, mas também no que é falado em Miami, San Antonio, Nova York ou Los Angeles. E também entre o spanglish urbano e rural. Do mesmo modo, o spanglish se modificou ao longo do tempo, e as formas usadas em um dado lugar no início do século 20 são diferentes das usadas hoje. O curso e o dicionário tentam explicar e enfatizar essas diferenças. Mas a meta é também mostrar em que medida a mídia e a internet estão criando um certo tipo de síntese "padronizada".
Como o spanglish está modificando a língua inglesa? Apenas semanticamente ou também a morfologia e a sintaxe?
As transformações ocorrem em ambas as direções. Há sentenças como "llamar para tras" ou "voy a shopear soketes a la marqueta", em que a estrutura sintática é basicamente a do espanhol, mas "marqueta" substituiu "supermarket" (supermercado), "soketes", "socks" (meias) e "shopear", "shop" (comprar). Estudos sobre a morfossintaxe do spanglish são cruciais para entender o fenômeno, mas também estudos sobre "code-switching" (troca de códigos). Tudo isso precisa ser visto a partir do contexto em que estão situados os latinos hoje nos EUA, não mais, repito, na periferia, mas no palco central.
O sr. tem afirmado que o spanglish deverá se tornar uma língua autônoma, embora várias pesquisas mostrem que um terço da população hispânica dos Estados Unidos não fala mais nem sequer o espanhol e que isso tende a se acentuar nos próximos anos. Não lhe parece mais provável que o spanglish seja ou assimilado pelo inglês ou simplesmente desapareça?
Eu tenho tido cuidado em não ser transformado em uma espécie de profeta. Meu papel como intelectual é viver "no" presente e reconsiderar o passado por meio do exame das idéias. O espanhol é a segunda língua mais falada dos EUA, mas ela não existe em forma pura, e seu futuro é certamente problemático. Mas é um fato que a Univision e Telemundo são as duas redes de TV que mais crescem nos EUA, à frente da CBS, ABC e NBC. Editoras lançam livros em espanhol para consumo nacional. Os cursos dos departamentos de espanhol nas universidades estão repletos de estudantes.
Esses são sinais óbvios das transformações por que passaram os Estados Unidos na segunda metade do século 20 e um anúncio do rumo que a nação como um todo está tomando.
Às vezes acho que o futuro irá se parecer com a Los Angeles do filme "Blade Runner", de Ridley Scott -uma mistura de espanhol, inglês e mandarim como uma "língua franca". Outras vezes acho que o spanglish será um estágio de transição, extinto quando da "assimilação total" da comunidade hispânica. Mas essa segunda opção me parece problemática, porque os latinos estão vindo para os EUA já há muito tempo, pelo menos desde a primeira metade do século 19. Mesmo o termo "vindo" é problemático, pois muitos mexicanos-americanos não "vieram" em nenhum sentido; ao contrário, foram os EUA que foram até eles, quando foi assinado o tratado de Guadalupe Hidalgo, permitindo que quase dois terços do território do México fossem para "el otro lado". Transição? Estágio de passagem? Novamente sou cético. Seja qual for a resposta, estou certo de que o tipo de espanhol e, em menor extensão, de inglês que falamos hoje será estranho aos cidadãos de amanhã. O que consideramos impuro, contaminado, ilegítimo e desagradável será percebido como convencional por nossos descendentes.


A antropofagia é um conceito muito mais adequado -ligeiramen te revisado, talvez- para entender o processo de mão dupla que estamos testemunhando: a hispanização dos EUA; nós estamos nos devorando uns aos outros


O spanglish é um fenômeno urbano?
Pelo menos dois terços da minoria latina dos EUA vivem hoje em cidades, mas um número considerável -trabalhadores imigrantes, sobretudo- permanece morando em zonas rurais. O spanglish, em seus vários aspectos, pertence a vários grupos, não somente àqueles das metrópoles.
Há uma arte, música ou literatura em spanglish?
Sim. O spanglish se manifesta tanto no hip hop quanto na poesia e em romances. Tem mostrado sua força em murais e em outras formas pictóricas. A internet também tem sido uma grande promotora dessas manifestações artísticas e culturais. Entre os nomes mais importantes estão os escritores Junot Diaz, Juan Felipe Herrera, Abraham Rodriguez Jr., Juan Luis Guerra ou grupos musicais como o Cafe Tacuba -que funde samba, bolero, polcas e outros ritmos- e os rappers do Chicano 2 the Bone. Eu mesmo já dei palestras e conferências em spanglish.
Por que a língua espanhola tem se mostrado tão mais vigorosa nos EUA -a ponto de dar origem a uma mescla como o spanglish- do que as línguas de outras comunidades de imigrantes, como alemães, poloneses e italianos, que desapareceram?
É uma pergunta complexa que pede uma resposta complexa. Hispânicos são e não são um grupo imigrante tradicional nos EUA. Outras comunidades de imigrantes que os antecederam, já na terceira geração, deixaram seu sotaque. Mas com os latinos, por causa do modo como chegaram aos EUA, é difícil dizer onde a primeira, segunda e terceira gerações realmente estão. Também os EUA -ao menos uma parte significativa de seu território- começaram na Espanha com a chegada dos colonizadores e missionários ibéricos. Além disso, a proximidade do México e da América Central, em contraste com as "distantes" Polônia, Itália ou Alemanha, tornaram a transição um processo ameaçador. Por tudo isso, os latinos podem ser vistos como um grupo imigrante étnico, mas são também uma extremidade da América Latina nos EUA: uma nova nação hispânica, a qual, a julgar pelo seu tamanho, é a quinta maior concentração de hispano-falantes do globo, depois de países como México e Argentina.
O crescimento da minoria latina levou a um outro nível o debate nacional nos EUA sobre "brancura" e "negritude". O conceito de "raça cósmica" de José Vasconcelos e a aceitação, nos anos 60, da categoria de "browness" (derivação de "brown", marrom, usada para designar os hispânicos) pelo Movimento Chicano estão, por razões óbvias, ganhando força hoje em dia e irão nos forçar a reconsiderar a história do país de maneiras ainda não imaginadas. O sr. conhece a música brasileira?
Conheço mais a literatura do que a música. Sou um entusiasta da obra de Moacyr Scliar, tenho o "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, na versão espanhola, na cabeceira de minha cama, acho Clarice Lispector mais interessante do que Virginia Woolf, fico impressionado com os ensaios sobre cultura brasileira de Roberto Schwarz e admiro os contos policiais de Rubem Fonseca. E com frequência invoco o conceito de antropofagia e as pinturas de Tarsila do Amaral para refletir sobre a arte latina.
Mas o sr. acredita que o conceito de antropofagia possa ajudar a entender a "mestizaje" que está ocorrendo hoje nos EUA?
A antropofagia é um conceito muito mais adequado -ligeiramente revisado, talvez- para entender o processo de mão dupla que estamos testemunhando: a hispanização dos Estados Unidos e também a norte-americanização do continente americano. Nós estamos nos devorando uns aos outros. Em outras palavras, somos ao mesmo tempo os criadores e os objetos do mundo transcultural em que vivemos. Nada é puro. A miscigenação reina e aumentará ainda mais. Acho que essa categoria é emblemática pelas implicações que tem em relação à "autenticidade". Nos Estados Unidos, os hispânicos são vistos como uma minoria étnica; na América Latina, são vistos como aqueles que partiram. Esse sentido de adição, de hibridismo, nos faz abandonar qualquer busca pela "autenticidade". Mas nos dias de hoje, com o novo espírito de conquista, o sentido de originalidade -isto é, o de autenticidade na ausência de autenticidade- está vivo.



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