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Para o historiador Mike Davis os imigrantes hispânicos
fazem da divisa entre EUA e México a utopia das multinacionais, que exploram a mão-de-obra abundante, não pagam impostos e poluem sem controle
Fronteira do capital
da Redação
O historiador americano Mike Davis é um crítico feroz da chamada Área de Livre Comércio
das Américas. Para ele, todo o continente corre sério risco de se tornar uma grande "La
Frontera", referindo-se à região que divide EUA e México e é famosa por concentrar multinacionais que exploram a mão-de-obra subassalariada dos imigrantes latinos. Isso é uma verdadeira "utopia para o capital", diz
Davis. Ele discorda inteiramente do linguista Ilan Stavans e diz que o spanglish é "sobretudo um fenômeno
de fronteira", que tende a desaparecer.
Por outro lado, Mike Davis vê com otimismo a reaproximação entre as lideranças negras e hispânicas para combater os cortes orçamentários do governo de
George W. Bush. Ele também atribui à imigração hispânica o renascimento do catolicismo nos EUA. Relativiza, porém: hoje a expansão das religiões pentecostais é
muito mais significativa, resultado de uma "corrida pelo pentecostalismo". Nesse aspecto, diz Davis, "Los Angeles é muito parecida a São Paulo ou Rio de Janeiro".
(MARCOS FLAMÍNIO PERES)
Apesar de sua crescente importância política e econômica, as estatísticas têm mostrado que, nos EUA, é mais
difícil para os latinos subirem na vida do que para alguém de outras minorias. Nos programas das grandes redes de TV também é muito pequeno o espaço para os latinos. A perspectiva de eleição de um prefeito de origem hispânica em Los Angeles pode mudar isso?
A experiência afro-americana sugere que há pouca
relação entre a proeminência de lideranças políticas
de minorias e estereótipos raciais enraizados na mídia. Se os hispânicos -mexicanos-americanos, sobretudo- são quase invisíveis nos programas das
principais redes de TV, por outro lado eles são "pintados de branco" pelas TVs de língua espanhola, que
quase sempre descrevem índios ou mestiços como
empregados domésticos ou criminosos.
Medidas como a ação afirmativa refletem essas mudanças por que passa a sociedade americana?
O elevado índice de desistência no ensino médio entre latinos -aproximadamente 40% na maior parte
das cidades- é um escândalo nacional. Crianças filhas de imigrantes são as principais vítimas do declínio dos sistemas públicos de ensino nas grandes cidades, da resistência ao ensino bilíngue e da neutralização da ação afirmativa. Isso é resultado em grande parte do descompasso entre a demografia dos latinos e sua cidadania. Na Califórnia, por exemplo, os
brancos não-hispânicos são 25% da população em
idade escolar, mas representam 75% do eleitorado.
Eleitores brancos não-hispânicos mais velhos, cujos
filhos já cresceram, votam sistematicamente pela redução ou supressão de programas que poderiam beneficiar crianças negras e hispânicas.
Simbolicamente, mexicanos e outras comunidades hispânicas estariam tomando posse do que perderam em
1848, com o tratado de Guadalupe Hidalgo?
O México perdeu boa parte de seu território em 1848
porque não tinha população suficiente para colonizar agressivamente sua fronteira norte. De fato, a catástrofe demográfica da colonização hispânica (estima-se que a população tenha se reduzido de cerca de
20 a 25 milhões em 1521 para 2 milhões em 1580) não
foi recuperada até 1940. Já à época da Primeira Guerra, as economias do região Sudoeste dos EUA já
eram dependentes de mão-de-obra importada do
México. O que é impressionante em relação aos dados divulgados pelo Censo 2000 não é a "reconquista" em curso no Sudoeste dos EUA, mas o crescimento exponencial da população imigrante mexicana em Estados sem ligações históricas com hispânicos: Oregon, Iowa, Carolina do Norte, Illinois etc.
A fusão linguística entre espanhol e inglês -o spanglish-pode representar também uma troca no plano
ético-religioso, entre catolicismo e protestantismo? Está
ocorrendo uma "catolicização" da sociedade americana?
Há muito pouco intercâmbio entre o espanhol e o
inglês em uma cultura tão intolerante com o bilinguismo quanto a americana. Enquanto a imigração
latina certamente revigorou o catolicismo nos EUA
(Los Angeles é uma das maiores dioceses católicas
do mundo), ela, da mesma forma, provocou uma
imensa "corrida pelo pentecostalismo". Los Angeles
é muito parecida com São Paulo ou Rio de Janeiro:
para cada templo da Igreja Católica há dúzias de
templos pentecostais cheios de vida localizados em
prédios comercias. De fato, o pentecostalismo de língua espanhola é provavelmente o movimento sociocultural mais dinâmico de todo o sul da Califórnia.
Ilan Stavans afirma ser bem provável que o spanglish se
torne no futuro uma língua autônoma. O sr. concorda?
Stavans está errado: o spanglish é sobretudo um fenômeno de fronteira. A grande questão, na verdade,
é saber quem defenderá e lutará por um autêntico bilinguismo. Nada é mais deprimente do que a covardia dos políticos democratas diante dos apelos nativistas do movimento "English Only". Na maior parte dos casos, o "bilinguismo" é simplesmente uma
fase intermediária para a aquisição do inglês, mais
do que propriamente um objetivo em si.
Como se relacionam as duas principais minorias da sociedade americana, afro-americanos e latinos?
A antiga coalizão entre negros e latinos pelos direitos
civis, construída pela primeira vez em 1940 e renovada temporariamente pelo pastor Jesse Jackson em
1980, entrou em colapso em todo o país nos anos 90.
Na medida em que o nó fiscal estrangulava os orçamentos municipais, a crescente comunidade hispânica -faminta por mais controle sobre escolas,
trânsito e empregos públicos- acabou rivalizando
com as lideranças políticas negras para tentar dividir
as perdas. Recentemente, porém, há sinais encorajadores de que ambos os grupos (que representam,
juntos, quase um terço da população dos EUA) estejam se reaproximando. As frentes políticas de negros
e hispânicos no Congresso estão começando a coordenar a resistência ao governo de George W. Bush.
Por muito tempo, especialmente entre acadêmicos americanos, o Brasil foi considerado um modelo de "democracia racial". É possível compará-la com a "mestizaje"
que ocorre nos EUA hoje?
A cidade de Nova York, muito mais do que a região
Sudoeste dos EUA (que inclui a Califórnia), é o mais
dinâmico exemplo de "melting pot" de identidades
do hemisfério Ocidental.
Metade dos casamentos envolvendo latinos é entre
hispânicos de diferentes nacionalidades e há uma
enorme e vigorosa interação entre afro-latinos, afro-caribenhos e afro-americanos. Os porto-riquenhos
-um povo muito mais misturado, em todos os sentidos, que o brasileiro- são o modelo do que ainda
está por vir.
As críticas feitas à Alca ressaltam que, se concretizada, as
economias latino-americanas ficarão inteiramente à
mercê das oscilações da economia americana. O sr. acredita que, como decorrência da integração econômica, algo similar possa ocorrer no plano cultural?
As instituições culturais e educacionais de todo o
continente americano estão sob ameaça real da Alca.
Do mesmo modo -como a experiência amarga do
Nafta dramatiza-, o livre mercado somente reduz
barreiras em benefício da mobilidade do capital, da
poluição, das drogas e da violência. O livre mercado
de fato cria mais obstáculos para o trabalho e culturas ditas marginais. Como outros progressistas americanos, creio mais na "Bolivarização" a partir do sul
do continente americano do que na "Disneyficação"
a partir do norte.
A América Latina irá se tornar, então, uma grande "La
Frontera"?
Partilho o sonho de Whitman, Martí, C.L.R. James e
Pablo Neruda -que imaginaram todas as Américas
reunidas em uma única celebração da democracia,
um carnaval hemisférico de sonhos compartilhados.
Mas, para chegar a isso, é preciso o oposto do que
propõe a Alca: é preciso um controle estrito do capital e a livre circulação de povos e idéias. O ponto de
partida deve ser a mobilização em torno da defesa
dos direitos humanos dos imigrantes e contra a violência nas fronteiras.
Como sugere o filme "Traffic", de Steve Soderbergh, o incremento no tráfico de drogas poderá ser, na prática, um
dos efeitos mais palpáveis do Nafta?
É difícil dizer qual é a façanha de que mais se orgulha
o Nafta: o império da droga da fronteira entre México e EUA, a exploração das indústrias "maquiladoras" ou o envenenamento por produtos tóxicos das
comunidades que ali vivem. "La Frontera" é
uma espécie de utopia para o capital, onde corporações gigantes não pagam impostos locais, não se
preocupam com a poluição que provocam e nunca
precisam negociar com sindicatos aumentos salariais. As campanhas de trabalhadores para criar sindicatos independentes nas cidades fronteiriças de
Cidade Juárez e Tijuana, no México, têm sido sistematicamente reprimidas pelo Estado.
A "guerra às drogas" constitui, na prática, uma
desculpa formidável para militarizar a região de
fronteira entre EUA e México.
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