São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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Para o historiador Mike Davis os imigrantes hispânicos fazem da divisa entre EUA e México a utopia das multinacionais, que exploram a mão-de-obra abundante, não pagam impostos e poluem sem controle

Fronteira do capital

da Redação

O historiador americano Mike Davis é um crítico feroz da chamada Área de Livre Comércio das Américas. Para ele, todo o continente corre sério risco de se tornar uma grande "La Frontera", referindo-se à região que divide EUA e México e é famosa por concentrar multinacionais que exploram a mão-de-obra subassalariada dos imigrantes latinos. Isso é uma verdadeira "utopia para o capital", diz Davis. Ele discorda inteiramente do linguista Ilan Stavans e diz que o spanglish é "sobretudo um fenômeno de fronteira", que tende a desaparecer.
Por outro lado, Mike Davis vê com otimismo a reaproximação entre as lideranças negras e hispânicas para combater os cortes orçamentários do governo de George W. Bush. Ele também atribui à imigração hispânica o renascimento do catolicismo nos EUA. Relativiza, porém: hoje a expansão das religiões pentecostais é muito mais significativa, resultado de uma "corrida pelo pentecostalismo". Nesse aspecto, diz Davis, "Los Angeles é muito parecida a São Paulo ou Rio de Janeiro". (MARCOS FLAMÍNIO PERES)

Apesar de sua crescente importância política e econômica, as estatísticas têm mostrado que, nos EUA, é mais difícil para os latinos subirem na vida do que para alguém de outras minorias. Nos programas das grandes redes de TV também é muito pequeno o espaço para os latinos. A perspectiva de eleição de um prefeito de origem hispânica em Los Angeles pode mudar isso?
A experiência afro-americana sugere que há pouca relação entre a proeminência de lideranças políticas de minorias e estereótipos raciais enraizados na mídia. Se os hispânicos -mexicanos-americanos, sobretudo- são quase invisíveis nos programas das principais redes de TV, por outro lado eles são "pintados de branco" pelas TVs de língua espanhola, que quase sempre descrevem índios ou mestiços como empregados domésticos ou criminosos.
Medidas como a ação afirmativa refletem essas mudanças por que passa a sociedade americana?
O elevado índice de desistência no ensino médio entre latinos -aproximadamente 40% na maior parte das cidades- é um escândalo nacional. Crianças filhas de imigrantes são as principais vítimas do declínio dos sistemas públicos de ensino nas grandes cidades, da resistência ao ensino bilíngue e da neutralização da ação afirmativa. Isso é resultado em grande parte do descompasso entre a demografia dos latinos e sua cidadania. Na Califórnia, por exemplo, os brancos não-hispânicos são 25% da população em idade escolar, mas representam 75% do eleitorado. Eleitores brancos não-hispânicos mais velhos, cujos filhos já cresceram, votam sistematicamente pela redução ou supressão de programas que poderiam beneficiar crianças negras e hispânicas.
Simbolicamente, mexicanos e outras comunidades hispânicas estariam tomando posse do que perderam em 1848, com o tratado de Guadalupe Hidalgo?
O México perdeu boa parte de seu território em 1848 porque não tinha população suficiente para colonizar agressivamente sua fronteira norte. De fato, a catástrofe demográfica da colonização hispânica (estima-se que a população tenha se reduzido de cerca de 20 a 25 milhões em 1521 para 2 milhões em 1580) não foi recuperada até 1940. Já à época da Primeira Guerra, as economias do região Sudoeste dos EUA já eram dependentes de mão-de-obra importada do México. O que é impressionante em relação aos dados divulgados pelo Censo 2000 não é a "reconquista" em curso no Sudoeste dos EUA, mas o crescimento exponencial da população imigrante mexicana em Estados sem ligações históricas com hispânicos: Oregon, Iowa, Carolina do Norte, Illinois etc.
A fusão linguística entre espanhol e inglês -o spanglish-pode representar também uma troca no plano ético-religioso, entre catolicismo e protestantismo? Está ocorrendo uma "catolicização" da sociedade americana?
Há muito pouco intercâmbio entre o espanhol e o inglês em uma cultura tão intolerante com o bilinguismo quanto a americana. Enquanto a imigração latina certamente revigorou o catolicismo nos EUA (Los Angeles é uma das maiores dioceses católicas do mundo), ela, da mesma forma, provocou uma imensa "corrida pelo pentecostalismo". Los Angeles é muito parecida com São Paulo ou Rio de Janeiro: para cada templo da Igreja Católica há dúzias de templos pentecostais cheios de vida localizados em prédios comercias. De fato, o pentecostalismo de língua espanhola é provavelmente o movimento sociocultural mais dinâmico de todo o sul da Califórnia.
Ilan Stavans afirma ser bem provável que o spanglish se torne no futuro uma língua autônoma. O sr. concorda?
Stavans está errado: o spanglish é sobretudo um fenômeno de fronteira. A grande questão, na verdade, é saber quem defenderá e lutará por um autêntico bilinguismo. Nada é mais deprimente do que a covardia dos políticos democratas diante dos apelos nativistas do movimento "English Only". Na maior parte dos casos, o "bilinguismo" é simplesmente uma fase intermediária para a aquisição do inglês, mais do que propriamente um objetivo em si.
Como se relacionam as duas principais minorias da sociedade americana, afro-americanos e latinos?
A antiga coalizão entre negros e latinos pelos direitos civis, construída pela primeira vez em 1940 e renovada temporariamente pelo pastor Jesse Jackson em 1980, entrou em colapso em todo o país nos anos 90. Na medida em que o nó fiscal estrangulava os orçamentos municipais, a crescente comunidade hispânica -faminta por mais controle sobre escolas, trânsito e empregos públicos- acabou rivalizando com as lideranças políticas negras para tentar dividir as perdas. Recentemente, porém, há sinais encorajadores de que ambos os grupos (que representam, juntos, quase um terço da população dos EUA) estejam se reaproximando. As frentes políticas de negros e hispânicos no Congresso estão começando a coordenar a resistência ao governo de George W. Bush. Por muito tempo, especialmente entre acadêmicos americanos, o Brasil foi considerado um modelo de "democracia racial". É possível compará-la com a "mestizaje" que ocorre nos EUA hoje?
A cidade de Nova York, muito mais do que a região Sudoeste dos EUA (que inclui a Califórnia), é o mais dinâmico exemplo de "melting pot" de identidades do hemisfério Ocidental.
Metade dos casamentos envolvendo latinos é entre hispânicos de diferentes nacionalidades e há uma enorme e vigorosa interação entre afro-latinos, afro-caribenhos e afro-americanos. Os porto-riquenhos -um povo muito mais misturado, em todos os sentidos, que o brasileiro- são o modelo do que ainda está por vir.
As críticas feitas à Alca ressaltam que, se concretizada, as economias latino-americanas ficarão inteiramente à mercê das oscilações da economia americana. O sr. acredita que, como decorrência da integração econômica, algo similar possa ocorrer no plano cultural?
As instituições culturais e educacionais de todo o continente americano estão sob ameaça real da Alca. Do mesmo modo -como a experiência amarga do Nafta dramatiza-, o livre mercado somente reduz barreiras em benefício da mobilidade do capital, da poluição, das drogas e da violência. O livre mercado de fato cria mais obstáculos para o trabalho e culturas ditas marginais. Como outros progressistas americanos, creio mais na "Bolivarização" a partir do sul do continente americano do que na "Disneyficação" a partir do norte.
A América Latina irá se tornar, então, uma grande "La Frontera"?
Partilho o sonho de Whitman, Martí, C.L.R. James e Pablo Neruda -que imaginaram todas as Américas reunidas em uma única celebração da democracia, um carnaval hemisférico de sonhos compartilhados. Mas, para chegar a isso, é preciso o oposto do que propõe a Alca: é preciso um controle estrito do capital e a livre circulação de povos e idéias. O ponto de partida deve ser a mobilização em torno da defesa dos direitos humanos dos imigrantes e contra a violência nas fronteiras.
Como sugere o filme "Traffic", de Steve Soderbergh, o incremento no tráfico de drogas poderá ser, na prática, um dos efeitos mais palpáveis do Nafta?
É difícil dizer qual é a façanha de que mais se orgulha o Nafta: o império da droga da fronteira entre México e EUA, a exploração das indústrias "maquiladoras" ou o envenenamento por produtos tóxicos das comunidades que ali vivem. "La Frontera" é uma espécie de utopia para o capital, onde corporações gigantes não pagam impostos locais, não se preocupam com a poluição que provocam e nunca precisam negociar com sindicatos aumentos salariais. As campanhas de trabalhadores para criar sindicatos independentes nas cidades fronteiriças de Cidade Juárez e Tijuana, no México, têm sido sistematicamente reprimidas pelo Estado.
A "guerra às drogas" constitui, na prática, uma desculpa formidável para militarizar a região de fronteira entre EUA e México.

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