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Genealogia do homem sem qualidades
Juan José Saer
Um dia, em meados do século 9º,
no nordeste da China, no mosteiro que dirigia, Lin-Tsi, o
mestre da seita budista Tch'ang
(em japonês zen, ambas pronúncias locais do sânscrito Dhyâna, "meditação"),
subiu à cátedra e deu uma de suas mais
célebres lições. "Sobre vosso conglomerado de carne vermelha, há um homem
verdadeiro sem situação, que, sem cessar, entra e sai pelas portas do rosto. Vejamos o que pensa disso um dos que ainda não falaram!" Um dos monges saiu do
grupo e lhe perguntou como era o homem verdadeiro sem situação. O mestre
desceu de seu banco de meditação e,
agarrando e imobilizando o monge, ordenou: "Dize-o tu mesmo, anda!". O
monge hesitou. O mestre o soltou e disse:
"O homem verdadeiro sem situação é um
montinho qualquer de excremento". E
voltou para sua cela."
No original, a expressão "um montinho qualquer de excremento" é muito
mais crua e, para sua publicação na Folha, foi substituída pela presente, que
aparece em outra versão da mesma cena.
O eminente sinólogo francês Paul Demiéville, que traduziu as "Lições" de Lin-Tsi em 1977, comenta assim a brutal
comparação, que se revela mais surpreendente quando sabemos que é também utilizada muitas vezes para designar
Buda: "Toda definição do homem verdadeiro só pode ser imprópria, vil, suja,
posto que, por definição, é o que escapa
a toda definição".
Uma entidade indefinida No que se refere ao homem verdadeiro sem situação, o professor Demiéville oferece o
seguinte comentário: "A expressão homem verdadeiro vem diretamente dos filósofos taoístas da Antiguidade, embora
também tenha sido usada para designar
Buda e Arhat (o santo liberto) nas primeiras traduções chinesas dos textos búdicos. A palavra "situação" aplica-se, no
vocabulário administrativo, à situação
de um funcionário na hierarquia oficial.
Como essa hierarquia incluía toda a elite
social, que era o único grupo que contava
na antiga China, um homem sem situação era um ente marginal, carente de status, uma entidade indefinida.
É mais ou menos no sentido de Lin-Tsi
que o romancista austríaco Robert Musil, que tanto se interessou por Lao Tsé
pouco antes de sua morte trágica, em
1942, concebia seu herói como um homem sem características particulares,
"Der Mann ohne Eigenschaften" ("O
Homem sem Qualidades" na tradução
brasileira, ed. Nova Fronteira).
A exata referência acima contém apenas um erro: a morte de Robert Musil foi
talvez prematura (tinha 61 anos), mas
não trágica. Sua mulher, Martha Marcovaldi, conta-a assim numa carta: "Depois de uma manhã tranquila, passada
entre sua mesa de trabalho e o jardim,
ele subiu as escadas que levavam ao banheiro, dizendo: "Vou tomar um banho
antes de almoçar". E, enquanto se despia,
durante um exercício físico ou simplesmente por causa de um movimento
brusco, foi fulminado por um ataque.
Poucos minutos depois de ele subir, abri
a porta do banheiro para chamá-lo e o
encontrei sem vida. Era impossível aceitar que estivesse morto, a tal ponto ele
parecia vivo com sua expressão de surpresa irônica no rosto".
Uma morte sob medida para o discreto mentor do homem sem qualidades!
Morrer, poderíamos dizer, em plena
saúde e experimentar não temor, mas
uma surpresa irônica diante da irrupção
imprevista da morte, seja talvez a confirmação irrefutável de suas teorias. Porque o homem sem qualidades é aquele
que, desembaraçando-se de todas as
convenções, as posturas sociais, os conteúdos intelectuais e morais, as máscaras
de identidade, os sentimentos e emoções
calcados nos difundidos pelo entorno, a
sexualidade canalizada nos diques do
socialmente aceito, voltando ao grau zero da disponibilidade, construirá sua vida se opondo a todo automatismo e a todo lugar-comum da inteligência, da vida
afetiva e do comportamento.
No Império Austro-Húngaro decadente, ser um homem sem qualidades representava não uma forma de egoísmo ou um virar as costas para a realidade, mas uma saudável desconfiança quanto ao consabido, ao imposto pela esmagadora inércia do mundo
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No Império Austro-Húngaro decadente, acossado pelas pomposas pretensões da corte e pelas constantes reivindicações do arquipélago de pequenas e
grandes nações e culturas que o compunham, ser um homem sem qualidades,
reivindicar apenas a própria disponibilidade sem prévias adesões compulsórias
a supostas causas, sagradas ou não, a determinadas normas de conduta, ditadas
como eternas e pensadas para reger a sucessão de gerações fugitivas, supostamente idênticas umas às outras, representava não uma forma de egoísmo ou
um modo de virar as costas para a realidade, mas uma saudável desconfiança
quanto ao consabido, ao irrefletido, ao
imposto pela esmagadora inércia do
mundo.
Musil nasceu numa pequena cidade
austríaca em 1880. Destinado para a carreira militar ou científica, aos poucos foi
abandonando tudo, apesar das perspectivas promissoras em suas outras atividades, para se dedicar inteiramente às
letras. E, embora tenha escrito vários
magníficos contos, uma peça de teatro,
alguns ensaios minuciosos e um apaixonante diário íntimo, poderíamos dizer
que também abandonou a literatura para se entregar por completo à redação de
"O Homem sem Qualidades", romance
que tomou quase 30 anos de sua vida e
que ficou inacabado. Os únicos dois volumes que ele publicou em vida, em 1930
e 1933, tiveram grande sucesso de crítica,
mas não venderam, principalmente o
segundo, cuja aparição coincidiu com a
chegada de Hitler ao poder.
Musil, que estava em Berlim nesse momento, emigrou primeiro para Viena e
depois para Zurique e Genebra, onde viveu na miséria até sua morte. Em 1938,
os nazistas incluíram seus livros na lista
de obras "indesejáveis e nocivas" e as
proibiram na Alemanha. Mas, no ano
2000, uma enquete entre os principais
críticos literários da Alemanha mostrou
que a maioria deles considerava "O Homem sem Qualidades" o mais importante romance do século 20 escrito em
alemão.
Fiapos de homens Ulrich, o protagonista, não tem nada do aventureiro ou
sensualista que quisesse desfrutar indefinidamente de novas experiências, à maneira dos decadentistas do final do século 19. É um espírito racional, sistemático,
amável e jovial. Sua vida transcorre no
marco de uma banal existência burguesa. Seu único ato verdadeiramente transgressivo é a relação amorosa que mantém com sua meia-irmã, que, ao longo
do romance, vai se transformando no
elemento simbólico de uma vida sistematicamente voltada a transcender as
convenções exorbitantes que o mundo
impõe aos indivíduos.
Portanto o homem verdadeiro sem situação do enérgico mestre Lin-Tsi reaparece inesperadamente em nosso tempo no grande romance de Robert Musil.
Mas, em outro registro, ele também poderia ser representado por esses fiapos
de homens que são os personagens de
Samuel Beckett. Em todo caso, ele está
presente nas reflexões atuais sobre a crise e o estatuto do sujeito, bem como na
desconfiança de alguns sobre todas as
ideologias que exaltam, sem maior precisão, os discutíveis méritos do conceito
de identidade.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino,
autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém
Nada Nunca" (Companhia das Letras). Escreve
mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.
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