São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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+ livros

O grande massacre

por Robert Darnton

Quando os jornalistas discutem seu ofício, citam clichês contraditórios: "O jornal de hoje é o primeiro rascunho da história" e "não há nada mais morto que o jornal de ontem". De certa forma ambos são verdadeiros: o noticiário alimenta a história com fatos, mas a maior parte deles é esquecida. Imagine se os jornais desaparecessem das bibliotecas: a história se esvairia da memória coletiva? Esse é o desastre que Nicholson Baker denuncia em "Double Fold" (Crença Dupla ou Dobra Dupla), um "j'accuse" dirigido à profissão bibliotecária.
Os bibliotecários expurgaram os jornais de suas estantes, ele afirma, porque são movidos por uma obsessão enganosa em ganhar espaço. E se iludem ao acreditar que nada se perdeu porque substituíram os papéis por microfilmes. O microfilme, porém, é inadequado, incompleto, ineficaz e muitas vezes ilegível. Pior ainda, nunca foi necessário, porque, ao contrário de outra ilusão corrente, os papéis não estavam se desintegrando nas prateleiras. Apesar de sua química, eles se mantêm muito bem. E agora o massacre do papel se estendeu aos livros. Eles também estão sendo liquidados, jogados fora e terrivelmente danificados em experimentos imbecis para preservá-los. Os guardiões de nossa cultura os estão destruindo.

Lamúrias e lamentações No que se refere a lamúrias, esta é estranha. A maldade forneceu material para lamentação nos EUA desde os tempos dos puritanos. Mas, em vez de arengar contra a prostituta da Babilônia, Baker dirige sua indignação para, por exemplo, Patricia Battin, ex-bibliotecária da Universidade Columbia, que liderou o "ataque ao papel" da Comissão de Preservação e Incorporação e recebeu um prêmio do presidente Clinton em 1999 por "salvar a história". Baker a acusa de destruir a história e a transforma em um dos principais vilões de seu livro. Os outros vêm de fundações (Ford, Mellon), bibliotecas de pesquisa (Yale, Chicago), da Fundação Nacional para Humanidades e sobretudo da Biblioteca do Congresso.
Eles formam um estranho elenco: açougueiros de livros vindos do mundo improvável das bibliotecas. Baker os descreve como civilizados, cultos e geralmente geniais -personagens discretos que esperaríamos encontrar atrás de velhas escrivaninhas de carvalho em salas forradas de livros. Essas almas delicadas jamais poderiam ser vândalos, você diz a si mesmo. E essa reação o coloca sob a magia da retórica de Baker, porque ele tenta mostrar que os bárbaros não estão no portão: já entraram no templo, destruindo seus tesouros e o fazendo de maneira ainda mais eficaz porque se movem em macios sapatos silenciosos e tweed.
A retórica serve de combustível ao argumento, mas qual é o argumento em si, resumido a um conjunto de proposições? É o seguinte:
1. O papel se conserva bem, mesmo o papel mais barato feito para novelas policiais com aparas de madeira, segundo os processos de fabricação desenvolvidos depois de 1850. Baker examina a química da acidificação, admitindo alguns pontos de menor importância: o papel com pH menor tende a ser mais fraco que o papel menos ácido, e os jornais revestidos de sulfato ficam amarelados quando expostos à luz excessiva. Mas ele transmite sua teoria principal: apesar das profecias catastróficas, o papel feito no final do século 19 não se desintegrou; pode ser lido hoje sem sofrer danos, e não há motivos para acreditar que não dure mais cem anos.
2. O microfilme não é um substituto adequado para o papel. Sua química é pior. Fotogramas que deveriam durar para sempre criaram manchas e bolhas. Desbotaram até ficar ilegíveis. Eles se rasgaram e encolheram, geraram fungos, emitiram mau cheiro e derreteram. Coleções de jornais microfilmadas muitas vezes contêm lacunas onde os técnicos saltaram páginas ou deixaram de ajustar o foco. O trabalho foi tão malfeito que os bibliotecários consideram os conjuntos "completos" quando faltam 6% de suas edições. E os conjuntos são terrivelmente caros -cerca de US$ 150 por volume.
Ler microfilmes é um inferno. As horas passadas ajustando imagens desfocadas sob uma luz quente e olhando para a tela podem fazê-lo desistir da pesquisa e até embrulhar seu estômago. Em muitos casos, no entanto, as cópias de jornais microfilmadas são tudo o que temos, e com frequência estão incompletas. Faltam anos inteiros de jornais importantes, e não existem conjuntos completos dos originais, porque os bibliotecários se desfizeram deles.
3. Os bibliotecários são loucos por espaço. Para eles o espaço, assim como o tempo, é dinheiro; e o dinheiro é escasso, porque seus orçamentos são apertados. Mas os jornais e livros continuam chegando, sua produção cresce inexoravelmente ano após ano. Como se pode conter a inundação? A resposta óbvia é a miniaturização: substituir volumes por microtextos, jogar fora todos os originais e expandir o acervo da biblioteca, enquanto mantém constante o espaço de prateleiras.
4. A obsessão por espaço degenerou em uma "ideologia". Levados pelo "medo do crescimento demoníaco", importantes bibliotecários "demonizaram o papel velho". Eles odeiam o material e querem se livrar dele a todo custo -um custo tão alto que poderia desencadear uma revolta dos contribuintes, para não falar dos amantes de livros.
Para evitar esse perigo, os principais bibliotecários do país disseminaram o pânico sobre a qualidade autodestrutiva do papel e promoveram tecnologias para destruí-lo em nome da preservação. Aqui, acredito, Baker leva seu argumento além da verossimilhança. Em vez de fornecer uma explicação plausível do que levou os bibliotecários a esvaziar as estantes, ele os transforma em vilões e pratica sua própria demonização. Não obstante, transmite uma idéia crucial:
5. Preservação significou destruição. Nem sempre, é claro. Algumas instituições nunca danificaram suas coleções. Mas a Biblioteca do Congresso assumiu a liderança, num massacre de livros e jornais de proporções assustadoras. Para microfilmar obras impressas após 1870, a biblioteca adotou uma política de "desencaderná-las" -isto é, desmembrá-las para que pudessem ser abertas e fotografadas de maneira eficaz.
6. A destruição era desnecessária. A partir de 1957, o Conselho de Recursos Bibliotecários, fundado por Verner Clapp, o segundo no comando da Biblioteca do Congresso, patrocinou experimentos para determinar a longevidade do papel feito de polpa de madeira. Os experimentadores rasgaram papel de livros impressos entre 1900 e 1950 e tentaram envelhecê-lo artificialmente, dobrando-o de um lado para outro numa máquina especialmente criada. Depois de dez anos e 500 livros arruinados, eles concluíram que a maior parte do material impresso na primeira metade do século 20 não chegaria ao ano 2000. A contagem de corpos provisória chegou a 1,75 bilhão de páginas, mais que o suficiente para espalhar o pânico entre os mantenedores das bibliotecas de pesquisa do país.
Bibliotecários e alunos auxiliares dobraram as pontas de 36.500 volumes em Yale. Sua conclusão: 1,3 milhão de volumes se autodestruiria antes do século 21. Yale adotou uma política agressiva de microfilmagem, que eliminou a metade dos livros de sua grande coleção de história americana. Esses livros continuariam lá hoje se os bibliotecários não tivessem entrado na moda da dobra dupla, porque essas dobras criam vincos que rasgam, enquanto a leitura exige apenas virar as páginas.
7. A destruição foi brutal. A microfilmagem pode ser feita sem prejudicar os volumes, colocando-os em suportes e ajustando a câmera do modo apropriado. No entanto esse procedimento leva tempo, e os preservacionistas estavam com tanta pressa de salvar livros e jornais de suas mortes mal diagnosticadas que os mataram na guilhotina -isto é, cortando suas lombadas para que as páginas soltas pudessem ser fotografadas rapidamente. Os especialistas da Biblioteca do Congresso e do Conselho de Recursos Bibliotecários também guilhotinaram livros para experimentar técnicas de retirar a acidez do papel. Seus experimentos mais espetaculares envolviam uma substância conhecida como DEZ, de dietil-zinco. Potencialmente, o DEZ destruiria a acidez, criando um "escudo alcalino" nas fibras do papel, mas ele tem um efeito colateral desagradável: se incendeia em contato com o ar e explode quando exposto à água. Embora funcione melhor em bombas e mísseis do que em livros, os experimentadores da biblioteca o usaram como principal ingrediente em uma instalação destinada a retirar a acidez de um milhão de livros por ano. Na verdade, como salienta Baker, eles criaram "uma grande bomba de combustível e ar que por acaso continha livros". Sem dúvida ela explodiu nos testes realizados pela Nasa no Centro Espacial Goddard em 1985 e 1986. Novos experimentos produziram mais desastres, até que, milhares de livros e milhões de dólares depois, o programa foi abandonado.
Enquanto isso, porém, os preservacionistas imaginaram outros experimentos, incluindo um projeto de milhares de dólares para forçar ratos a inalar óxido de zinco para provar que os livros sem acidez podiam ser cheirados sem causar danos. Junto com os microfilmadores, os desincorporadores e as equipes de demolição, eles cortaram, guilhotinaram, serraram, picaram, assaram, queimaram e dissolveram enormes quantidades de material impresso. Baker talvez exagere nos verbos antropomórficos e faça descrições técnicas de maneira que os bibliotecários parecem cientistas loucos. Mas ele oferece evidências concretas suficientes para causar calafrios nos amantes de livros.
8. A destruição foi cara. Baker dá inúmeros exemplos de livros e jornais que foram descartados ou vendidos por preços irrisórios pelas bibliotecas e depois revendidos por negociantes por altos valores. Ele também documenta casos em que é mais caro comprar o microfilme de um livro do que o original. E, depois de citar caso após caso de soluções caras para problemas mal avaliados, ele propõe uma solução relativamente simples e barata: guardar os originais em armazéns com ar-condicionado, onde vão durar indefinidamente.
Baker estima que as bibliotecas americanas se livraram de 975 mil livros, no valor de US$ 39 milhões. O prejuízo cultural é inestimável. As bibliotecas em geral começaram a retirar de suas prateleiras os jornais a partir de 1870 -isto é, quando começaram a surgir os diários de grande circulação. No final do século, graças ao papel barato, à linotipo e à impressão em alta velocidade, os jornais de Pulitzer, Hearst e outros barões da imprensa haviam se tornado uma grande força na vida americana. Eles moldaram o surgimento da cultura de massa, do consumo, dos esportes profissionais e grandes áreas da literatura americana -produzida em grande parte por repórteres que se transformaram em romancistas. Como podem os historiadores estudar esses assuntos sem ler os jornais diários? Mas como podem ler os jornais se eles desapareceram? O microfilme não serve, não apenas porque está cheio de erros e lacunas como também porque deixa de transmitir a textura da página impressa -o modo como as manchetes, os layouts, toques de cor e as qualidades táteis da página orientam o leitor e conduzem o olhar pelos trechos impressos significativos.
9. Talvez os bibliotecários tivessem boas intenções, mas agiram de má-fé. Depois de se convencer de que estavam ficando sem espaço e de que a microfilmagem era a solução, eles inventaram uma falsa crise para limpar as prateleiras. Os livros estavam pegando fogo, diziam. Eles usaram outras expressões como dissolver, apodrecer, esfarelar. "Transformando-se em poeira" era uma metáfora preferida, servida com o advérbio "literalmente" para significar que algum tipo de combustão química estava consumindo os livros nas prateleiras. De que tipo? Nenhum dos cientistas do papel ofereceu uma análise precisa.
Essas nove proposições representam uma terrível acusação para uma profissão venerável. Não há argumentos de defesa? Em vez de examiná-los imparcialmente, Baker dá plena vazão ao que chama de sua "urgência persecutória", cujo objetivo é produzir culpa; mas, em sua determinação de amaldiçoar alguns dos mais eminentes bibliotecários do país, Baker às vezes exagera.


Um número surpreendente de vilões da trama tem alguma conexão com a CIA ou algum ramo do complexo militar-industrial


Espaço é um problema sério para os bibliotecários, não é algo que eles tentem solucionar por meio da "demonização" ou dando rédeas livres a algum ódio psíquico ao papel. O papel pode ser frágil. Os livros são frequentemente danificados. A microfilmagem realmente preserva pelo menos uma parte do registro histórico, mesmo que possa não ser o substituto adequado para as obras originais. As bibliotecas não guilhotinam mais os livros para a microfilmagem há anos -e deixaram de jogar fora os originais.
A maioria das histórias de terror de Baker data de uma era passada, deixando um rastro de destruição, é claro, mas também uma reação contra suas políticas erradas. Não que o perigo tenha desaparecido. Baker adverte corretamente que o entusiasmo pela digitalização pode produzir outro expurgo de papel. Mas ele aplica a maior parte de sua indignação a práticas que foram abandonadas -com uma notável exceção.
Em abril de 1999, Baker leu um anúncio suspeitamente discreto da Biblioteca Britânica de que estava se livrando de jornais americanos impressos depois de 1850 -a maior coleção do mundo, porque incluía séries completas dos diários mais importantes, que haviam desaparecido das bibliotecas americanas. Eles seriam substituídos pelos microfilmes problemáticos que haviam causado a devastação inicial e seriam leiloados ou destruídos. O leilão parecia destinado a ser dominado por especuladores que os comprariam por preços baixos para recortá-los e vendê-los como lembranças.
Assim que soube desse desastre iminente, Baker tentou evitá-lo. Implorou à Biblioteca Britânica que mudasse de política, desse os jornais a alguma instituição que os preservasse, que aceitasse uma "proposta de preservação" ou pelo menos adiasse o leilão para que ele e outros bibliófilos pudessem montar uma operação de resgate. Mas a biblioteca não deu ouvidos. Em outubro de 1999 vendeu a coleção, em grande parte para especuladores. Apenas uma pequena parte da coleção sobreviveu, porque o próprio Baker a comprou depois de usar sua poupança e formar uma entidade sem fins lucrativos com a ajuda de algumas fundações. Séries completas e em bom estado de "World", "Herald", "Tribune" e outros grandes jornais diários hoje estão guardados em segurança num prédio que Baker construiu perto de sua casa no Maine. "Às vezes fico um pouco surpreso de pensar que me tornei um bibliotecário de jornais, mais ou menos, e tenho a função de cuidar dessa reserva ancestral e majestosa", ele conclui. É uma ótima história, contada com espírito e humor: Dom Quixote investindo contra a Biblioteca Britânica e ganhando pelo menos uma rodada. O que isso representa como história?
Uma versão resumida da tese de Baker surgiu originalmente em "The New Yorker". Ela funcionou bem como jornalismo investigativo, mas a versão em formato de livro levantou o problema de misturar reportagens com um relato geral da condução das bibliotecas nos EUA desde a Segunda Guerra Mundial. Baker usou o texto de "The New Yorker" nos primeiros capítulos e na conclusão do livro. No meio, ensanduichou uma narrativa histórica.
Implícitos nisso tudo estão argumentos sobre a mudança institucional, que podem ser resumidos da seguinte maneira: em 1944, um importante bibliotecário chamado Fremont Rider propôs uma "lei natural" do crescimento das bibliotecas. Ele parecia provar com fórmulas matemáticas impressionantes que as bibliotecas dos Estados Unidos estavam entrando numa espetacular crise de espaço. A única solução, segundo Rider, era a tecnologia criada pelo Departamento de Serviços Estratégicos durante a Segunda Guerra Mundial: os livros poderiam ser substituídos por microcartões ou algum outro produto da miniaturização. Vernon Clapp assumiu a causa e a difundiu pelo Conselho de Recursos Bibliotecários, do qual se tornou diretor em 1956. Durante mais de 30 anos no topo do mundo das bibliotecas, Clapp promoveu experimentos de "preservação" que levaram à microfilmagem e à perda de milhões de jornais e livros. De 1968 a 1984, o Departamento de Preservação e Microfilmagem da Biblioteca do Congresso filmou 93 milhões de páginas e ""jogou fora mais de 10 milhões de dólares" em propriedade pública".
Foi necessário certo esforço, porém, para afastar outros bibliotecários da idéia de que preservar significa guardar os livros. Assim, o sucessor de Clapp no conselho, Warren Haas, montou uma campanha de relações-públicas e contratou Patricia Battin, a poderosa bibliotecária-chefe da Universidade Columbia, para disseminar propaganda da Comissão de Preservação e Incorporação. O frenesi atingiu o clímax na década de 1980. Mas a maré virou por volta de 1994, quando Patricia Battin deixou a comissão. Surgiu uma reação liderada por bibliógrafos sensatos e a aniquilação dos jornais da Biblioteca Britânica forneceu um último escândalo que encerrou a história em 1999.
A história é surpreendentemente simples. Zelotes mal-orientados diagnosticaram mal um problema e produziram uma catástrofe nacional, disseminando informação errada. A disparidade entre causa e efeito exige explicação. O que basicamente funcionou no processo: mera estupidez, problemas nas instituições, a influência de uma ou duas personalidades poderosas e o apelo de algumas idéias notáveis? Perguntas desse tipo diferenciam a história do jornalismo. Baker não as faz; ele simplesmente aponta o dedo para os culpados. Mas há uma interpretação implícita nessa acusação.
Um número surpreendente de vilões da trama vem a ter alguma conexão com a CIA, Pesquisa de Operações, defesa de mísseis, o Pentágono ou algum ramo do complexo militar-industrial. Baker enfatiza que a obsessão pela microfilmagem surgiu, como a própria CIA, do Departamento de Serviços Estratégicos durante a Segunda Guerra. Verner Clapp a espalhou na Biblioteca do Congresso enquanto era secretamente "consultor da CIA", e a linhagem de consultores leva diretamente ao atual bibliotecário, James Bilington, cuja conexão anterior com a CIA é explicada numa longa e irrelevante nota final. Os "cientistas da guerra e consultores da CIA" eram muitos no Conselho de Recursos Bibliotecários -tantos, na verdade, que os resumos de Baker de seus currículos sugerem um dr. Strangelove espreitando em cada bebedouro de água.
Seu relato das loucas experiências com livros assados e DEZ lembram algo mais daninho -a aniquilação sistemática, o que ele chama de "destruir para preservar". Uma citação do "Washington Post" lembra tais associações: "A Biblioteca do Congresso precisa destruir livros para salvá-los?". O leitor não pode deixar de lembrar o comentário mais terrível da Guerra do Vietnã: "Era necessário destruir a aldeia para salvá-la" (não tenho a fonte no momento). E a cadeia de associações fica ainda mais sombria quando Baker fala em "colocar livros velhos nas câmaras de gás". Aqui a discussão por insinuações saiu do controle. Os bibliotecários não assassinaram livros como os nazistas aniquilaram pessoas.
E eles também deveriam ser condenados, como reivindica Baker, por destruir a história? Talvez, se os jornais realmente puderem ser contados como o primeiro esboço da história. Mas, assim como os microfilmes não devem ser confundidos com documentos originais, a história não deve ser equiparada a suas fontes.
Se Baker tivesse mantido essa linha de pensamento poderia ter reforçado seu caso; pois os jornais, estudados como fontes, abrem vastas possibilidades de aprofundar nossa compreensão do passado. Não que sejam janelas transparentes para um mundo que perdemos, como Baker parece pensar. Eles são coleções de histórias escritas por profissionais dentro das convenções de seu ofício. Mas, se tomadas como histórias -notícias, um tipo peculiar de narrativa-, elas transmitem o modo como os contemporâneos explicaram os fatos e encontraram algum significado na confusão fervilhante do mundo a seu redor.
Com certeza uma história de visões de mundo exige mais que a leitura cuidadosa de conjuntos originais de jornais. Jacob Burckhardt e Johan Huizinga indicaram o caminho consultando evidências de tudo, desde maneiras à mesa e rituais fúnebres a formas de linguagem e estilos de vestimenta. Os antropólogos demonstraram que esse material pode ser trabalhado em reconstruções rigorosas das atitudes e dos sistemas de valores. Mas as evidências diminuem quando o historiador de formação antropológica tenta penetrar mais longe no passado. Panfletos e brochuras eram o material impresso mais popular nos primórdios da Europa moderna -tão populares na verdade que as bibliotecas não os colecionavam. Historiadores vasculharam seus vestígios na tentativa de reconstruir "mentalités collectives", mas o resultado é decepcionante. Como os historiadores poderão reconstruir uma imagem da mentalidade americana na Era de Ouro se não tiverem jornais -de verdade- para consultar?
Em suma, Baker está certo ao condenar a desincorporação dos jornais; e ele poderia ter reforçado seu caso se tivesse trabalhado com uma noção de história mais adequada. Sua própria força está na literatura, especialmente em sua capacidade como romancista de transmitir emoção em passagens descritivas com detalhes minuciosos e maravilhosamente costurados. Quando lido por suas qualidades literárias, seu livro é ainda melhor que como reportagem.



Double Fold
288 págs., US$ 25,95
de Nicholson Baker. Random House (EUA).
Onde encomendar: Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, à livraria Fnac (tel. 0/ xx/11/ 3097-0022) e, no RJ, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/ 21/533-2237).



Robert Darnton é professor de história na Universidade Princeton (EUA) e autor de, entre outros, "Edição e Sedição" (Companhia das Letras). O texto publicado acima é uma versão de um artigo maior.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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