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BRASIL 500 D.C.
É cada vez mais árduo o trabalho do intelectual que tenta se manter, ao mesmo
tempo, íntegro e público
A vontade de abrangência
MILTON SANTOS
especial para a Folha
Qual o papel do intelectual nessa
encruzilhada turbulenta da história? Pode ele contribuir, pela reflexão, ao aperfeiçoamento da vida
democrática e das instituições? Cabe fazer tais perguntas no Brasil
deste fim de século, onde, aparentemente, homens de estudo se instalaram no poder?
O antigo debate sobre o papel social dos intelectuais, mais vivo em
países como a França, mais débil
noutros como os Estados Unidos,
onde a filosofia dominante do
pragmatismo constitui por si mesma uma dificuldade, merece ganhar nova força com a emergência
do fenômeno da globalização.
Diante do papel político das empresas e do mercado global, frequentemente mais ativos que os
Estados e os partidos na formação
da opinião, as massas atônitas reclamam explicações mais consistentes. Estarão os intelectuais preparados e dispostos ao enfrentamento dessa tarefa?
A questão essencial é que a centralidade do trabalho dito intelectual tem, hoje, como eixo a técnica
e o mercado, ambos planetários,
pois constituem os esteios centrais
da própria globalização. Enquanto
a velha oposição entre trabalho
manual e trabalho intelectual se
torna insuficiente, a tecno-ciência
acaba por obter um comando excessivo nas tarefas de elaboração
das idéias. Pede-se, agora, aos homens do saber a elaboração das soluções mercantis e o respectivo
discurso, a ser utilizado pelos governos e empresas. Não é essa a
cantilena dos Ministérios da Educação e da Ciência?
Desse modo, levantam-se graves
riscos às atividades de pensar, graças, sobretudo, às armadilhas da
instrumentalização. Esta é cada
vez mais presente, crescentemente
exercida pelo mercado; mas, também, pela reclamada busca de sucesso; pela substituição do modo,
isto é, a busca incessante da verdade, pela moda, com a qual a notoriedade é garantida à custa da inteireza; e até mesmo por toda sorte
de ativismos, isto é, partidismos,
militantismos, unilateralismos e
sloganismos, caminhos de facilidade que atropelam a possibilidade de um pensamento livre.
Para completar, provisoriamente, essa lista, lembremos que a institucionalização crescente da vida
universitária acaba por forjar uma
teia, cada dia mais sólida e visível,
em que o trabalho rasteiro é deixado a alguns assessores, que recrutam subserviências no baixo e médio clero, editando medidas ditas
saneadoras da administração e das
finanças, cujo resultado final é a limitação à liberdade do pensar e do
dizer, enquanto, espertamente, autoridades superiores cada vez mais
comprometidas com os meios e
mais descompromissadas com as
finalidades da educação inundam
o mercado com discursos eloquentes, mas vazios.
Esses riscos, que já se vinham delineando havia algum tempo, agravaram-se com a globalização, momento da história que consagra o
reino do efêmero e abre espaço,
tornado excessivo, às demandas de
um saber prático em detrimento
do saber filosófico, daí a confusão
cada vez maior entre ser letrado e
ser intelectual. Nas condições
atuais, quando, no dizer de Ramsey Clark, pensamos com um revólver apontado contra nossa cabeça, o exercício das idéias genuínas pode até parecer uma inutilidade. Tudo conspira para a primazia do pensamento calculante, a
começar pelas próprias dificuldades de difusão de idéias fundamentais.
Para isso, aliás, contribui uma indústria editorial cada vez mais inclinada à busca do lucro, em detrimento da qualidade das obras e ao
elogio da banalidade, com a fabricação de best sellers de retorno garantido e, também, com a síndrome do "show business" que agora
acompanha as atividades propriamente intelectuais, ameaçando-as
de prostituição desde a origem.
São, também, cada vez mais frequentes as manifestações organizadas como grandes promoções e
nas quais é difícil às estrelas escapar à condição de um produto oferecido, uma marca, uma grife, cuja
presença apenas legitima a ocasião. Hoje, a moda cruel no marketing de idéias é dar a palavra a um
oponente, a pretexto de democratizar o debate, enquanto o grosso
da tropa fala de outra coisa, isto é,
do que realmente conta.
Nessas condições, o intelectual
trabalha sobre o fio da navalha, já
que aos jovens se torna difícil ser
autêntico, e os intelectuais estabelecidos, frequentemente atraídos
por prementes solicitações para
aparecer, estão sob a mesma ameaça.
É normal que os produtores de
idéias aspirem a que o seu trabalho
seja conhecido: é a forma pela qual
podem, ao mesmo tempo, influenciar a evolução da sociedade e obter aquele reconhecimento indispensável à continuação da sua tarefa. O perigo é que o mundo do
marketing, sob diferentes disfarces, e a vontade, escancarada ou
secreta, de ser um intelectual
"bem-sucedido" levem à confusão
entre o exercício do papel de intelectual e o mero desempenho como um ator de vaudeville.
O intelectual público tem como
ponto de partida uma vontade de
abrangência, uma filosofia certamente banal, mas solidamente ancorada nos fatos e na reflexão, que
permite encontrar, ao mesmo tempo, as idéias, abertas a um público
maior, e as respectivas palavras:
simples, precisas, inteligíveis. Daí
seu papel pedagógico e, às vezes,
profético. As metáforas não serão
um artifício mercadológico, mas o
resultado de uma pesquisa frequentemente longa, tanto das
idéias como do discurso que as exprime. Cabe, todavia, na busca das
palavras justas e do discurso acessível, fugir ao escorregão nas banalidades e chavões, isto é, escapar ao
panfleto. É, talvez, esse o limite à
ação do intelectual público, uma
fronteira de reconhecimento difícil, inclusive porque é difícil avaliar a priori o jogo de influências
entre um autor e o seu público. Cabe, mesmo, indagar sobre o que é
esse público e como ele é conduzido, a partir da própria forma de
sua convocação.
As cascas de banana no caminho
daqueles que se querem manter,
ao mesmo tempo, intelectuais íntegros e intelectuais públicos são
numerosas, obrigando a um permanente estado de alerta para obedecer, ao mesmo tempo, ao imperativo da crítica da história e ao da
sua própria autocrítica, como seu
intérprete.
Milton Santos é geógrafo, professor emérito da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de "Pensando o Espaço do Homem" (editora Hucitec); ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
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