|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Espalhados pelo país, os Centros de Tradições Gaúchas reinventam
as políticas de identidade
Geléia geral brasileira
HERMANO VIANNA
especial para a Folha
Há muitas estradas, todas de terra e não exatamente bem conservadas, que podem ser bravamente
percorridas por quem quiser conhecer a região dos chapadões e
rios que atuam como uma espécie
de "atrator estranho" geográfico,
"o meio do mundo", na narrativa
de "Grande Sertão: Veredas". O
viajante pode começar sua aventura em Januária, nas margens do rio
São Francisco, quase fronteira entre Minas Gerais e Bahia. De lá,
aconselho dois trajetos. O primeiro passa pelas cidades de São Francisco, São Romão e depois por Arinos e Buritis, quase sempre margeando ou o Velho Chico ou o
Urucuia, aquele que para Riobaldo
é o "rio meu de amor", "rio de braveza", de águas "claras certas".
O segundo trajeto tem relevo
mais acidentado: logo na saída de
Januária, passa pelas cachoeiras do
rio Pandeiros; vai direto para serra
das Araras, "aonde tudo que era
bandido em folga se escondia"; e,
antes de corrigir o rumo na direção
de Arinos, cruza mais uma chapada, talvez a mais inesquecível de
todas elas, cuja paisagem não foi
descrita nem por Riobaldo nem
por nenhuma outra personagem
de Guimarães Rosa.
A travessia das chapadas é quase
sempre monótona. O emocionante, o pitoresco são suas beiras,
quando o viajante sobe ou desce.
Lá em cima, a reta domina, se perdendo no horizonte. Mas naquela
chapada pós-serra das Araras não
há nem a vegetação contorcionista
do cerrado para distração. O que se
vê quando se atinge seu topo, sem
nenhum aviso, sem nenhuma preparação emocional, é uma imensa
plantação de soja, de perder de vista, de ofuscar os olhos, como se todo o mundo tivesse se transformado num deserto verde ou em semelhante inferno ecológico. Um "Liso
do Sussuarão" às avessas.
A surpresa não termina por aí.
Depois de dezenas de quilômetros
naquela "nonada" total, quando os
olhos do viajante conseguem se
acostumar com o verde apocalíptico da paisagem, é possível identificar cabeças louras no meio da soja.
Demora um pouco, mas logo aparecem também crianças louras
brincando na beira da estrada, e
em breve tempo se chega à Vila dos
Gaúchos, lugarejo ignorado pelo
mapa do IBGE, o último publicado
em escala 1:1.000.000. Qual seria a
reação de Riobaldo ao se deparar
com essa gente? Ainda pensaria estar no sertão?
O sertão está em toda parte. Os
gaúchos também estão em toda
parte: em Roraima, em Rondônia,
no Ceará, em São Paulo. Eles arrumam um jeito de permanecer gaúchos, tomando chimarrão, mantendo sua "tradição", em qualquer
lugar, mesmo no meio do mundo
do Urucuia, a 5 km do posto do
Ibama que assinala o início do Parque Nacional Grande Sertão: Veredas. Os gaúchos inventaram uma
rede de CTGs, ou Centros de Tradições Gaúchas, como máquina
poderosa para a replicação de seu
código "tradicionalista" e seu peculiar "modo de vida". Não há nada parecido, nem tão eficaz, em
outros movimentos culturais brasileiros. Não há, por exemplo, um
CTC, Centro de Tradições Cariocas, ou Cearenses.
Imagine um baile "tradicionalista" em Jequié, terra de Waly Salomão, com todas as meninas vestidas de baianas e os meninos de capoeiristas. Imagine um forró nordestino no Acre, em que só se pudesse dançar com chapéu de couro. Pois no CTG de Boa Vista, a
maior associação civil de Roraima,
ou em qualquer outro dos 2.000
CTGs registrados em território nacional (1.500 no Rio Grande do
Sul), os homens comparecem às
festas de bombachas e as crianças
têm aulas de rancheira, maçanico
ou chimarrita, seguindo os passos
exatos descritos no "Manual de
Danças Gaúchas", editado em 1955
por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa,
dois tradicionalistas pioneiros,
fundadores em 1948 do primeiro
CTG, o famoso "35".
Tanta empolgação por determinado estilo de vida e festa acaba
chamando a atenção das comunidades de não-gaúchos que vivem
nos arredores do lugar onde foi
implantado um novo CTG, seja ele
no sertão de Guimarães Rosa ou
no sertão de Graciliano Ramos.
Como a Carta do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), documento que tenta regulamentar as
ações dos CTGs, não define precisamente quem é gaúcho, então, em
princípio, qualquer pessoa pode se
associar a um CTG e reivindicar
sua identidade de gaúcho. Em
muitas cidades brasileiras, para
muitos jovens, ser gaúcho se tornou uma "opção identitária" tão
válida, tão "reconfortante" e tão
divertida (até porque, naqueles
"meios de mundo", os CTGs organizam as melhores festas) quanto
ser punk ou ser surfista.
A situação pode se tornar auspiciosamente confusa. Em São Mateus, cidade "polonesa" do Paraná,
jovens totalmente pilchados (isto
é, vestidos com os trajes tradicionalistas), no intervalo de um show
de nativismo pop da banda Tchê
Guri, ficaram espantados por eu
ainda pensar que para ser gaúcho é
preciso ter nascido no Rio Grande
do Sul ou, "pelo menos" (eu suplicava, para salvar minha "caretice"
classificatória), ser descendente de
imigrantes vindos do Rio Grande
do Sul.
Para me confundir mais ainda,
outros gaúchos, estes de Porto Alegre, em pleno "35", me contaram
orgulhosos que a menina que foi
eleita a prenda (mulher em gauchês) mais bonita num dos últimos
concursos desse tipo promovidos
pela Confederação Brasileira de
Tradições Gaúchas (CBTG) é uma
morena maranhense, filha de maranhenses, associada a um CTG de
Brasília, que nunca tinha posto os
pés no Rio Grande do Sul, apesar
de ter respondido acertadamente a
todas as perguntas sobre a história
desse Estado, etapa obrigatória da
eleição.
Com tantos casos como esses, os
CTGs se tornaram locais privilegiados para observar os mecanismos daquilo que um dia Eric
Hobsbawm denominou, com uma
eficácia mimética invejável, a "invenção das tradições", e os problemas que todas invenções desse tipo acarretam. O difícil não é apenas saber quem é ou pode ser gaúcho, mas também, identificando o
gaúcho, definir o que vem a ser sua
tradição ou o que torna um gaúcho
diferente dos não-gaúchos, ou ainda o que faz um gaúcho para ser
gaúcho. O gaúcho dança danças
gaúchas? O gaúcho veste roupas
gaúchas e assim por diante? Mas
quem determina o que há de gaúcho numa roupa, numa dança?
Quem diz o que é gaúcho e o que
não é? A carta do MTG? Os manuais de Paixão Côrtes?
Um debate fascinante, travado
no âmbito dos extremamente populares concursos de dança entre
CTGs, mostra como, no interior do
tradicionalismo, há várias definições contrastantes sobre o que é
pureza e autenticidade em termos
de costumes gaúchos. O próprio
Paixão Côrtes combate, ao mesmo
tempo, a "falsa arte nativa" ("há
muita gente brincando de fazer
tradição") e a "mesmice" criadas,
muitas vezes, por "aqueles que
atribuem ao livro "Manual de Danças Gaúchas" a função representativa de uma Bíblia sobre nossos temas coreográficos".
Com a autoridade de quem fundou o primeiro CTG, falando em
nome da "ciência folclórica", ele
condena os trajes "erroneamente
seriados" dos grupos de dança (cada CTG costuma, ou costumava,
mandar fazer trajes iguais, uniformizados, para todos seus dançarinos) e pede uma dança que não seja "uma ação matemática, mecanizada, robotizada". Em outras palavras: "Preservar a tradição não significa só ficar nos mesmíssimos fatos de restringidas informações do
passado". Paixão Côrtes, o defensor da autenticidade, quer renovação!
Essa intervenção só aparentemente paradoxal deixou os grupos
de dança gaúcha apavorados e tontos. Afinal, estavam seguindo regulamentos de concursos. Agora
há visões diferentes na interpretação desses regulamentos, sobre
qual é a maneira certa de dançar,
sobre qual é o autêntico traje gaúcho. Como agradar a todos os lados e não perder pontos?
A questão da renovação também
virou pauta do Congresso Tradicionalista de 1998, em que foi aprovada por unanimidade uma proposta que alterava os trajes dos
peões e prendas. Mudanças lentas:
um pequeno decote foi permitido
para as prendas. Mas os homens
ainda não podem usar manga curta.
O debate revela impasses e dúvidas de qualquer tipo de tradição. A
conquista da autenticidade não é a
descoberta de uma pureza perdida
num remoto início da História. Parodiando Cazuza: nossa autenticidade a gente inventa, às vezes pra
se distrair, às vezes pra guerrear. É
bom que os CTGs discutam em público essas questões. É bom saber
que os gaúchos podem mudar seu
traje autêntico. É bom saber que eu
posso ser gaúcho, se quiser. Pois eu
não posso escolher ser sérvio. Nem
posso escolher "pertencer" à etnia
albanesa. Pena.
A autenticidade muda porque as
pessoas mudam. Os CTGs parecem estar inventando uma outra
política da identidade. Uma política que, para dar certo, deve partir
de uma visão da natureza humana
que leva em conta o que um dia,
perto da futura Vila dos Gaúchos,
disse Riobaldo: "Mire, veja: o mais
importante e bonito, do mundo, é
isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam.
Verdade maior. É o que a vida me
ensinou. Isso que me alegra, montão".
Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O
Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba"
(Jorge Zahar Editor). Ele escreve mensalmente
na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
Texto Anterior: Brasil 500 d.c. - Milton Santos: A vontade de abrangência Próximo Texto: A ciência e a Força Índice
|