São Paulo, Domingo, 20 de Junho de 1999
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O herói Anakin Skywalker poderá ser "interpretado" por um ser gerado via computador
George Lucas inventa o e-cinema

Divulgação
O menino Anakin Skywalker é sabatinado por um conselho de cavaleiros Jedi em uma cidade do planeta Coruscant


ALVARO MACHADO
especial para a Folha

Um "contador de histórias que precisou de uma nova tecnologia" para partilhar os lances de sua imaginação com o público. É assim que George Lucas, o criador da saga "Star Wars", descreve a si mesmo: como a Sherazade da era moderna. Mas suas compulsões de narrador estão fazendo mais do que entreter platéias. A tecnologia digital desenvolvida especialmente para contar seu "Episódio 1 - A Ameaça Fantasma" consolida uma das mais importantes reviravoltas para o cinema desde o advento do som e da cor, nos anos 20 e 30.
Ao custo de US$ 115 milhões, "Episódio 1" é o artefato mais sofisticado entre as ficções científicas e aventuras calcadas em efeitos especiais que dominam bilheterias desde os anos 70. A diferença agora é o uso central do computador para forjar imagens antes obtidas por superposição de tomadas, maquiagem pesada, roupas de fantasia, bonecos de látex acionados por controle remoto e outros truques mecânicos. O novo gênero, que inclui outros sucessos, como "Matrix", "Vida de Inseto", além de experiências como "eXistenZ", de David Cronenberg, está sendo chamado "e-cinema" (cinema eletrônico ou digital).
Lucas investiu em tecnologia digital parte do lucro de sua série milionária e hoje comanda uma holding de cinco empresas (e uma fundação), entre as quais a gigantesca e muito requisitada Industrial Light & Magic (ILM), que em 93 deu o passo decisivo para o "novo cinema" -com a produção dos monstros de "Parque dos Dinossauros", de Spielberg- e que inicia agora um "Frankenstein" inteiramente digital.
"Episódio 1" esperou 16 anos pelo avanço tecnológico, desde a estréia de "O Retorno do Jedi". Só a produção tomou mais de dois anos. O resultado: 50% de suas 2.000 tomadas são totalmente criadas em computador, como num video game, e imagens ou efeitos digitais aparecem em 90% do total das cenas.
Na prática, "A Ameaça Fantasma" é um casamento entre processos fotográficos e tecnologia computadorizada, mas o divórcio já está previsto para este mês: Lucas inicia o projeto de um "Episódio 2", a ser lançado no verão americano de 2002, e, segundo o produtor Rick MacCallum, rodado inteiramente com câmeras digitais "de alta definição", mais modernas que as usadas em 50% das cenas de "Episódio 1".
As novas câmeras eliminarão, entre outras coisas, o mar de telões azuis usados nas locações e estúdios para facilitar o recorte do quadro com atores e a posterior colagem de cenários virtuais e efeitos especiais, que nesse filme chegaram ao inédito número de 2.000, criados por exército de quase 500 técnicos, divididos entre especializações como desenho, pintura, texturização, rotoscopia etc. Entre os efeitos, o lance mais ousado é a inclusão de personagens humanóides, com falas e expressões, inteiramente construídos em 3-D, como o reptílico Watto.
Dennis Muren, supervisor de efeitos especiais de "Ameaça Fantasma" e ganhador de oito Oscars, não nega, em entrevista concedida na última semana, a possibilidade de o herói Anakin Skywalker ser "interpretado", no próximo episódio, por um ser totalmente CG, ou seja, "computer-generated". A técnica CG é vantajosa apenas para personagens que aparecem muito; para quase todos os demais, atores ainda vestem máscaras de borracha.
Para Muren -que também criou, na ILM, os efeitos de "A Múmia"-, o novo "Star Wars" catalisa dez anos de aprimoramento de softwares mais leves e rápidos de animação. Repetindo a provação de escultores em mármore da Antiguidade clássica, a maior dificuldade, para os programadores, foi simular o movimento de roupas dos personagens. E alguns dos melhores resultados foram obtidos com o programa que construiu expressões faciais para o personagem Jar Jar.
Além dos softwares desenvolvidos pela própria ILM, "Ameaça Fantasma" utilizou equipamentos SGI para movimentar gráficos em "alta terceira dimensão" e Softimage para animação. Entre os softwares, Alias para modelagem; Flame e Inferno para mixagem; e Renderman para finalização. Quanto aos famosos sabres de luz -"emprestados" também a outros filmes e comerciais de TV, e nos quais trabalha equipe exclusiva-, ainda são feitos trabalhosamente como há 22 anos, à maneira do "cartoon", em animações coladas sobre as cenas. Mas "Episódio 2" pode trazer uma surpresa: considera-se fabricar exemplares verdadeiros dessas armas para as filmagens.
Outra tarefa-monstro de "Episódio 1" foi fazer parecer real a sequência da batalha dos Gungans com 4.000 andróides. Um recorde em construção virtual, mas, segundo Muren, no fundo "a mesma história contada há 30 anos com soldados romanos, porém em outro planeta, num outro "setting'". Muren foi o primeiro técnico a colocar, neste mês, suas impressões na Calçada da Fama, em Los Angeles.
A "coreografia espacial" da batalha final também envolveu problemas. Em "Episódio 1", a clonagem de manobras da Segunda Guerra -e estudos de dezenas de filmes ficcionais de guerra- não trouxe resultados, por causa dos novos desenhos das armas e das reações "retardadas" dos andróides. A sequência exigiu o estudo de movimentos artificiais, mais lentos que os de humanos.
Lucas, ao contrário, movimenta-se freneticamente. Na última semana, em vez de responder a acusações de sonegação de créditos da empresa Eletric Image -que colaborou nos efeitos de "Episódio 1"-, o diretor preferiu anunciar oficialmente a criação de um império de entretenimento, um Centro de Artes Digitais que ocupará área de um antigo presídio de San Francisco, em local privilegiado daquela cidade. Entre seus planos, a criação de um Instituto de Treinamento Digital Avançado.
Os avanços de "Star Wars" não se estendem, contudo, à informação via Internet. Pobre em animação e arte, o megasite oficial da série (www.starwars.com) é dominado pelo marketing de centenas de produtos. Detalhes sobre produção e efeitos são estrategicamente reservados para a promoção de CD-ROMs, entre eles um "definitivo tudo sobre" a feitura de "Episódio 1", que começa a ser vendido na próxima semana.
Amarrando no circuito da nova tecnologia os dois extremos do espetáculo cinematográfico, há, ainda, outro investimento: projetores digitais, que baixam arquivos-filmes de satélites ou da Internet. "No século 20, o cinema era celulóide; o cinema do século 21 será digital", vaticina Lucas.
James Cameron, o diretor de "O Segredo do Abismo" (com efeitos da ILM) e de "Titanic" -que tem centenas de tomadas com efeitos digitais, inclusive céus estrelados e golfinhos saltando-, parece concordar, especulando que, dentro de dois anos, o espetáculo "evoluirá" com personagens "humanos" obtidos por colagem digital, processo batizado "synthespians". Cameron considera, contudo, "sagradas as escolhas de um ator de verdade" e teme ter de assistir a Marilyns e Bogarts recriados virtualmente.
Segundo Lucas, o perigo de desumanização não existe. "Computadores são programados por humanos", argumenta, e sentencia: "Diz-se que os filmes feitos em computador são mentirosos, porém os filmes, sejam fotográficos ou digitais, nunca foram, não são e jamais serão reais".


Alvaro Machado é jornalista, editor da revista virtual "Opera Prima" (www.operaprima.com.br) e autor de "A Sabedoria dos Animais" (Ground).


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